Que venha o inferno ou a Suprema Corte. Vamos publicar!

Por Aldo De Luca | MediaTalks, Londres

Até pouco tempo antes de sua morte, ocorrida em 23 de setembro, aos 92 anos, Sir Harold Evans (o título de Cavaleiro lhe foi dado em 2004 pela rainha, por sua inestimável colaboração ao jornalismo) declarava-se tão apaixonado pela profissão como quando começou, aos 16. 

Seus obituários destacaram que ele revolucionou o jornalismo investigativo, mudou a forma como contamos as notícias e estabeleceu o padrão ouro para o jornalismo mundial. Além disso,  incentivou o jornalismo em equipe, tendo criado unidades especiais para levar adiante suas campanhas investigativas e de interesse público, como a de exame de câncer de colo de útero, que ainda salva milhares de vidas todos os anos.

Ele deixou muitas histórias inspiradoras contadas em seu livro My Paper Chase, lançado em 2009, e até uma polêmica: a discussão ética por ter pago por documentos vazados por informantes do próprio fabricante da talidomida. 

Aos celebrar 90 anos, deu uma entrevista para um podcast da BBC relembrando os fatos mais marcantes da carreira. 

O escândalo da Talidomida, marco no jornalismo 

No início da década de 1960, nascia mais um bebê com membros deformados no Reino Unido. A mãe não sabia, mas centenas de mulheres passavam por isso no país e milhares no mundo, inclusive no Brasil. Tudo por causa de um remédio contra enjoo. 

Assim nasceu o caso da talidomida, um dos piores desastres médicos produzidos pelo homem e um dos pontos altos do jornalismo investigativo mundial. Nesse contexto, surgiu o processo The Sunday Times x Reino Unido, um marco na luta pela liberdade de imprensa. No episódio brilharia Harold Evans, lendário editor do jornal. 

Ao longo do escândalo da talidomida, que começou na década de 1950 e só foi terminar nos anos 70, Evans arriscou-se a ser preso, colocou a existência de seu jornal em risco, não se intimidou com advogados e tribunais, foi à Suprema Corte do Reino Unido e recorreu até à Corte Europeia de Direitos Humanos para defender seu direito de denunciar a negligência dos fabricantes e exigir uma compensação adequada às vítimas. Não é a toa que durante as homenagens póstumas foi ressaltado que ele estabeleceu o padrão ouro do jornalismo mundial.

O aniversário da vitória do The Sunday Times na Corte Europeia é comemorado até hoje como um marco da luta pela liberdade de imprensa. Era a época de ouro vivida pelo jornalismo britânico, e mais especificamente pelo The Sunday Times, que já brilhava com sua equipe Insight, de jornalismo investigativo. 

Criada em 1963, essa equipe foi potencializada por Evans e tornou-se fundamental na investigação do escândalo da talidomida. Evans permaneceu como editor do The Sunday Times de 1967 a 1981. Sairia em 1982, depois de uma rápida passagem como editor do The Times, demitido por Rupert Murdoch. 

No ano anterior, o magnata havia comprado o grupo, que mantém sob seu controle até hoje (mas isso é outra história, contada por Evans em seu livro publicado em 1983, Good Times, Bad Times, cujo nome brinca com o nome do jornal e suas fases).

O caso The Sunday Times x Reino UnidoA lei vigente na época submetia a sanções por crime de desacato ao tribunal (contempt of court) qualquer jornalista britânico que publicasse matérias sobre processos judiciais em andamentoõt. A intenção era evitar interferências externas nos processos, incluindo a da imprensa. 

Mas como a lei estabelecia sanções a partir do primeiro dia em que a ação era proposta, na prática ela retirava o direito de livre expressão da imprensa até que o processo fosse encerrado. Isso poderia fazer o público ficar sem saber, por exemplo, de escândalos como o da talidomida por mais de uma década. O processo começou em 1962 e só terminou em 73.

Na verdade, o segredo perduraria até mais não fosse a coragem de Evans. Mesmo nesse cenário, ele arriscou-se a publicar matérias sobre o caso. Para fazê-lo parar, a Procuradoria Geral do Reino Unido, acionada pelo fabricante da droga, utilizou-se da lei e acionou os tribunais. 

Em resposta, Evans e o Sunday Times levaram o caso à Corte Europeia de Direitos Humanos e lá obtiveram uma vitória histórica. A principal consequência foi garantir o direito à livre expressão dos veículos britânicos. Hoje eles podem publicar reportagens sobre processos, quando forem de interesse público, sem que seus jornalistas corram o risco de prisão.

A decisão também garantiu o direito de o público receber informações dessa relevância pela imprensa, mesmo se houver processos judiciais em andamento. Mais ainda: por força da decisão, a lei britânica passou a tipificar o contempt of court somente no momento em que o caso é analisado no tribunal, e não mais durante todo o processo. Com o novo entendimento, o caso da talidomida não teria ficado em segredo por tanto tempo e suas consequências não teriam sido tão catastróficas. 

A sentença do caso The Sunday Times x Reino Unido já foi invocada mais de 200 vezes em causas pela liberdade de expressão nos tribunais de países da Comunidade Britânica, desde a Nova Zelândia até o Canadá.

Jornalista desde criancinha

Evans começou a batalhar no jornalismo em plena Segunda Guerra. No verão de 1944, abandonou a escola aos 16 anos e aceitou a oferta de 1 libra por semana para trabalhar como jornalista adolescente do Ashton-under-Lyne Reporter. Dois anos depois prestou serviço militar na Força Aérea Real e lá decidiu completar uma educação adequada. Escreveu para 14 universidades e Durham o aceitou. Formou-se em Política e Economia, enquanto editava o jornal estudantil Palatinate.

Depois de uma passagem pelo Manchester Evening News e de uma bolsa nos Estados Unidos, foi nomeado editor do Northern Echo, um jornal diário matinal de Darlington, mas com uma influência grande no nordeste da Inglaterra. Lá começou a ficar conhecido ao ganhar um prêmio nacional por suas campanhas. Acabou por chamar a atenção de Denis Hamilton, que o convidou para o The Sunday Times em 1966 e ​​ungiu-o como seu sucessor menos de um ano depois.

Um dos primeiros a publicar as fotos dos “bebês da talidomida”

Foi enquanto editava o Northern Eco que Evans tomou conhecimento dos “bebês da talidomida”. Ele foi um dos primeiros no Reino Unido a publicar as fotos dos nascidos com focomelia, caracterizada pela ausência dos membros, ou com eles encurtados ou em forma de nadadeiras. 

A gravidade dos casos variava de acordo com o momento em que a mãe começara a tomar o remédio. Os bebês cujas mães começaram a se medicar logo nos primeiros dias de gravidez, tinham mais órgãos afetados. Os problemas podiam incluir cegueira, surdez, distúrbios cardiológicos ou renais e deficiência mental.

Uma invenção alemã que pode ter sido criada pelos nazistas

Com o nome comercial de Contergan, a talidomida começou a ser vendida na Alemanha em 1957 pela Chemie Grünenthal. Até 2016, o que se sabia era que fora desenvolvida em 1953 pela equipe de pesquisa da empresa, liderada por Heinrick Muecker, que antes trabalhara na pesquisa de antivirais no exército alemão. 

O documentário Attacking the Devil − Harold Evans and the last nazi war crime, lançado em 2006 tendo o próprio jornalista no elenco, revelou pela primeira vez uma nova versão: a de que a talidomida teria sido criada em campos de concentração nazistas como um experimento mal-sucedido de antídoto para os gases que atacam o sistema nervoso. Depois da guerra, teria sido retomada devido ao seu poder sedativo, mas, sem os devidos testes, teria passado a atacar o sistema nervoso dos fetos em gestação. 

 Os produtores do filme têm no currículo indicações para o BAFTA e a obra ganhou o principal prêmio do Festival de Sheffield, um dos mais importantes do setor de documentários. Além da investigação sobre a talidomida, o filme mostra outras campanhas jornalísticas bem-sucedidas encampadas por Evans e pode ser assistido na Netflix. E  um trailer pode ser visto aqui. 

Crianças deformadas em 79 países

Na Alemanha, o Contergan logo se tornou um dos líderes de vendas. Foi lançado inicialmente como tranquilizante, e posteriormente tornou-se popular para o enjôo matinal de grávidas. Sua compra podia ser feita sem receita, com base na alegação de segurança do fabricante.

Até o fim da década de 1960, sempre sob licença da Chemie Grünenthal, companhias farmacêuticas por ela autorizadas venderiam a talidomida em 79 países, sob 49 denominações comerciais diferentes. No Brasil, ela passou a ser vendida a partir de março de 1958 pelo Instituto Pinheiros Produtos Terapêuticos com o nome comercial de Sedalis e posteriormente também com as marcas Sedalis 100, Sedin e Slip.

Estima-se que o número de crianças nascidas com deformidades provocadas pela talidomida tenha sido superior a dez mil no mundo, metade delas na Alemanha. Cerca de 40% nem completaram o primeiro ano de vida e acredita-se que duas mil morreram antes de nascer.

451 crianças deformadas no Reino Unido 

A partir de 1958, sob licença da Chemie Grünenthal, a empresa britânica Distillers Biochemicals  passou a fabricar e comercializar a talidomida no Reino Unido, na Austrália e na Nova Zelândia. 

A talidomida começou a ser vendida no Reino Unido com o nome comercial Distaval, e posteriormente com as marcas Dismaval, Tensival, Valgis e Valgraine. Era receitada no serviço público de saúde e por médicos particulares, inicialmente como sedativo e depois para enjôo e náusea da gravidez. Os folhetos distribuídos pela fabricante enfatizavam que o remédio poderia ser usado com segurança, “livre de efeitos colaterais indesejáveis”.

A publicidade seguia a mesma linha. Um anúncio publicado no British Medical Journal afirmava  que a vida das crianças podia depender da segurança do remédio: “Distaval pode ser tomado com completa segurança por grávidas e mulheres em fase de amamentação, sem efeitos adversos para a mãe ou a criança”.

A realidade foi bem diferente. No Reino Unido, nasceram 451 crianças deformadas. Uma longa batalha jurídica seria necessária para que tivessem respeitados seus direitos. Outros jornais chegaram a fazer matérias. Mas o processo só andou e chegou a um final adequado para as famílias por causa do The Sunday Times, com Evans à frente.

Artigo na The Lancet provocou retirada do mercado

Em 1961, logo após uma publicação do médico australiano William McBride na revista científica The Lancet associando a talidomida  a deformidades de bebês, a droga foi retirada do mercado alemão em novembro. 

No início de 1962 foi retirada do mercado britânico e suspensa no mesmo ano na maioria dos países da Europa e da América do Norte. A suspensão no Brasil só ocorreria em 1965, apesar de já em 1962 os jornais brasileiros terem publicado notícias dando conta da existência de 300 bebês nascidos no país com deformidades.

A talidomida hoje em dia é utilizada para outros fins, em circunstâncias limitadas, para ajudar no tratamento de determinados tipos de câncer, complicações da lepra e doenças crônicas como HIV, mas sempre com contraindicação expressa para grávidas, mulheres em fase de amamentação ou que queiram engravidar. Também é contra-indicada para homens que queiram ter filhos, pois pode ser transmitida pelo sêmen.

Primeiras ações do Reino Unido

Logo depois da retirada do medicamento do mercado no Reino Unido, as primeiras famílias entraram em 1962 com uma ação contra a Distillers Biochemicals. Dentro do prazo legal de três anos imposto pela lei britânica em casos desse tipo, 62 famílias inscreveram-se na ação.

A partir desse momento, por estar o caso sub judice, a lei impedia que a imprensa publicasse reportagens sobre ele.

O primeiro acordo

Em fevereiro de 1968, parecia que o caso chegaria ao fim. O acordo celebrado estabelecia que a Distillers pagaria 1 milhão de libras às 62 famílias. 

Mas o processo não acabou. Com a divulgação do acordo, outras famílias argumentaram que não sabiam que poderiam ter solicitado indenização e obtiveram um prazo adicional de um ano para novas ações.

Evans entra no jogo

Evans acompanhava os desdobramentos do caso quando foi nomeado, em 1967, editor do The Sunday Times. Ele transformou o jornal no líder do jornalismo investigativo e de campanhas do Reino Unido. Tinha equipe, dinheiro e apoio para perseguir as causas nas quais acreditava. E a primeira delas seria justamente sobre a tragédia da talidomida, a partir do ano seguinte.  

O tema foi escolhido sem se importar com a proibição legal e com o fato de a Distillers Biochemicals pertencer a um dos maiores anunciantes do jornal, a Distillers Company (que desde 1997 passou a pertencer à Diageo), gigante de bebidas que tinha várias marcas famosas, como o whisky Johnie Walker.

Assim, em 19 de maio de 1968, o jornal publicou uma ampla reportagem de quatro páginas na seção Weekly Review com o título The Thalidomide File. Embora pela lei britânica não pudesse falar dos processos em andamento no país, nada impedia o jornal de falar do processo judicial que seria iniciado na semana seguinte na Alemanha, para trazer o tema à tona.

A matéria ressaltava as 70 mil páginas de evidências coletadas ao longo do processo e dizia não ter havido nenhum julgamento comparável no país, tanto em tamanho como em escala emocional, desde Nuremberg. Em determinado trecho, a reportagem pergunta como foi possível que os cientistas da empresa pudessem ter cometido tamanho erro e como podiam insistir em não o admitir.

Duas mil libras por cada membro das crianças afetadas

Ao final do prazo para inscrição de mais interessados no processo, 266 famílias que ainda não haviam sido indenizadas se apresentaram. Antes do fim de 1969, a Distillers Biochemicals tentou novo acordo, oferecendo a elas 3,25 milhões de libras ao longo de dez anos. Mas com a condição de que todas aceitassem abrir mão do direito de processar a empresa por negligência.

Praticamente todas as famílias concordaram, à exceção de cinco. O novo acordo representava uma indenização por família equivalente à metade do que fora pago às famílias do acordo inicial. 

David Masson, que liderava o grupo dos cinco pais resistentes ao acordo, conta: “Eles ofereceram cerca de oito mil libras para ressarcir os danos a cada criança. Grosseiramente falando,  duas mil libras por membro”.

O caso volta à estaca zero

As famílias favoráveis ao acordo tentaram uma manobra jurídica para obrigar as cinco discordantes a aceitarem. Essa disputa durou mais três anos, e em abril de 1972 a Corte de Apelação decidiu que as cinco famílias não poderiam ser removidas do processo e deveriam ter sua opinião respeitada. 

O caso voltava ao impasse, agora sem qualquer perspectiva de ser finalizado. Até que Evans voltasse a se arriscar, intervindo de novo. 

A compra de informações vazadas

Com o impasse no processo, Evans decidiu criar, ainda em 1972, uma equipe só para cuidar do caso da talidomida, sob o comando do veterano editor Bob Page, que se somava aos esforços do time investigativo Insight.

As provas decisivas que demonstravam a negligência da fabricante vieram em um lote de documentos vazados da companhia, pelos quais Evans tomou a decisão de pagar. Eles foram oferecidos por um perito, Dr. Phillips, que assessorava os advogados da Distillers Biochemicals. O material mostrava todos os detalhes da fabricação e do marketing da droga no Reino Unido.

“Os documentos revelavam os poucos testes independentes feitos pelos desenvolvedores da droga e o atraso indesculpável em soar o alarme”, conta o jornalista em seu livro de memórias. O material, porém, acabaria não podendo ser publicado por decisão judicial obtida pela Distillers.

A manchete decisiva: “Nossos bebês talidomida − uma causa de vergonha nacional”Evans foi ameaçado por advogados da Distillers e alertado dos riscos pelos advogados do próprio jornal. “Venha o inferno ou a Suprema Corte! Decidi ignorar todos eles e publicar”, disse em suas memórias. 

Em 24 de setembro de 1972, o The Sunday Times publicou uma longa reportagem, de três páginas, com o título Our Thalidomide Children: A cause for National Shame.

Detalhando as evidências que comprovavam a negligência da Distillers, a matéria ressaltava a obrigação moral da empresa com todas as vítimas afetadas pela droga que colocara no mercado. E apelava para que aumentasse a oferta oferecida: “O acordo proposto é grotescamente desproporcional às terríveis deformidades sofridas pelos bebês da talidomida. A oferta é menos do que 10% de seus lucros do ano passado e pouco mais de 1% do faturamento nos dez anos desde o lançamento da talidomida”. 

Ao final do texto, Evans informava que publicaria nova matéria detalhando o passo a passo da tragédia, com apurações feitas em Reino Unido, Alemanha, Austrália, Suécia e Estados Unidos. Desta vez pretendia usar os dados vazados e enviou um resumo à Distillers e seus advogados, perguntando se gostariam de se manifestar sobre o material.

Idas e vindas na justiça britânicaA resposta da Distillers e seus advogados foi uma denúncia imediata ao procurador-geral, exigindo as punições devidas. Em outubro, o procurador comunicou ao jornal que entraria com uma ação para proibir a publicação da nova matéria, cujo resumo também tinha sido mandado a ele.

Em novembro de 1972, no julgamento de primeira instância do caso, foi determinada a publicação da segunda reportagem, sob o argumento de que a lei proibia qualquer matéria que pudesse influenciar uma questão sub judice.

A decisão, porém, foi revertida em fevereiro de 1973 na Corte de Apelação, que entendeu que a lei foi estabelecida para proteger interferências externas em litígios em andamento, o que não seria o caso em análise, que estaria dormente pela falta de conclusão depois de vários anos desde sua proposição. 

No mesmo ano, o caso foi apreciado na Câmara dos Lordes, e os cinco Law Lords julgadores decidiram por unanimidade voltar a proibir a publicação. A decisão afirmava que, se a discussão de questões judiciais fosse permitida à imprensa, “gradualmente, o público se habituaria às discussões preliminares na mídia de qualquer caso que despertasse interesse generalizado” e que isso “encorajaria uma inclinação gradual em direção a julgamento por jornal ou televisão”.

A vitória das famílias

Enquanto o The Sunday Times lutava pelo direito de publicar a segunda matéria, sua primeira já fora suficiente para fazer o processo andar. 

Com o assunto vindo à tona, uma campanha popular de boicote foi realizada contra o grupo da Distillers. Com o tema Faça a Distillers pagar, envolvia inclusive suas marcas de bebidas, o que pressionou o valor de todo o grupo na Bolsa.

Com essa pressão inédita no caso, depois de 11 anos conseguiu-se chegar a um acordo considerado adequado pelas famílias. A Distillers Biochemicals concordou em aumentar a oferta inicial considerada grotesca por Evans na reportagem. O valor subiu de 3,25 milhões para 28,4 milhões de libras, pagos ao longo da década de 1970. Parte foi utilizada para equalizar a indenização das famílias que não haviam recebido nada no primeiro acordo e o restante foi aplicado num fundo para garantir o atendimento das necessidades de todas as vítimas britânicas da talidomida até o fim de suas vidas.

Faltavam as cerca de 100 vítimas da Distillers Biochemicals na Austrália e na Nova Zelândia. Estas chegariam a um acordo em 2014 com a Diageo (atual controladora), que se comprometeu com uma indenização de 68 milhões de dólares australianos.

No Brasil, onde não houve campanhas jornalísticas semelhantes para defender as vítimas e responsabilizar os culpados, não houve indenizações pagas pelo fabricante brasileiro. A partir da década de 1970, as vítimas brasileiras passaram a ser beneficiadas com uma pensão vitalícia oferecida por uma fundação mantida pelo governo alemão, a Contergan para Pessoas com Deficiência, que apoia pessoas afetadas pela talidomida em todo o mundo. 

O problema é que as 58 vítimas brasileiras atualmente amparadas receberam no final do ano passado uma carta da fundação avisando que a pensão seria descontinuada sob o argumento de que a marca Sedalis não pertencia à Chemie Grünenthal (embora tenha sido licenciada por ela). A questão ainda está sendo discutida, com o apoio de advogados. 

“A reportagem que eles suprimiram” foi liberada pela Suprema Corte

Em junho de 1976, o The Sunday Times foi finalmente liberado pela Suprema Corte para publicar a matéria que estava pronta desde 1972. Mesmo com o caso já encerrado, o jornal decidiu publicar a reportagem, como exemplo para que fatos semelhantes não voltassem a se repetir.

O jornal, porém, não pôde utilizar os dados que Evans havia comprado do informante interno da companhia porque a Distillers obtivera, em julho de 1974, em outro processo sob o argumento de quebra de confiança de seu perito, uma liminar proibindo o jornal de usá-los. 

A matéria era muito completa. Com seis páginas internas e várias evidências, afirmava que a tragédia nunca precisaria ter acontecido, pois existiam testes disponíveis à época da invenção da droga que poderiam ter sido usados para garantir a segurança dos fetos. 

A vitória histórica na Corte EuropeiaNo dia 26 de abril de 1979, a Corte Europeia de Direitos Humanos deu ganho de causa à apelação feita em 1974 pelo Sunday Times e decidiu que a Câmara dos Lordes infringira a Convenção Europeia de Direitos Humanos por não haver no caso uma necessidade social suficientemente forte para se sobrepor ao interesse público da liberdade de expressão do jornal.

Foi a primeira vez em que uma decisão tomada pelos lordes foi revista pela Corte Europeia. Na explanação dos motivos da decisão, a Corte esclareceu que não apenas os meios de comunicação têm a tarefa de divulgar informações e  ideias sobre as questões que chegam aos tribunais, mas também o público tem o direito de recebê-las. 

E prosseguiu: “A tragédia da talidomida e a questão de onde a responsabilidade por ela realmente residia eram questões de indiscutível interesse público. Embora o caso estivesse pendente por vários anos, não era certo que as ações das famílias teriam sido levadas a julgamento. Embora o Sunday Times não estivesse proibido de discutir questões mais amplas de direito geral, seria bastante artificial exigir a separação dessas questões da alegada negligência da Distillers. Além disso, os fatos não deixavam de ser de interesse público apenas porque serviam de pano de fundo para litígios pendentes”.

A vitória teve um outro gostinho especial: durante o processo, em 1977, foi publicado o relatório da comissão preliminar, que já recomendava a decisão favorável ao jornal. Entre os anexos, foi incluído o material confidencial comprado por Evans e que havia sido apresentado no processo pelo Governo Britânico, solicitando sigilo. Dessa maneira, apesar de proibido no Reino Unido, cinco anos depois o material acabou se tornando público.

Lei inglesa foi alterada para evitar que casos semelhantes se repitam

Como resultado dessa decisão, o Parlamento do Reino Unido aprovou o Contempt of Court Act de 1981, criando um novo conjunto de leis para tipificar esse tipo de crime. 

O novo texto deu  mais peso à liberdade de expressão dos jornais. A partir dele, as publicações de reportagens só podem ser evitadas nos casos em que a Justiça for “gravemente impedida ou prejudicada”. E a proibição de se falar do processo só passa a valer a partir do momento em que o caso vai para efetivo julgamento.

A ida para os Estados Unidos

Na década de 1980, aos 55 anos, Evans mudou-se para Nova York, acompanhando sua segunda esposa, Tina Brown, que fora nomeada editora da Vanity Fair. Lá ele se reinventou. Foi presidente e editor da editora Random House. No jornalismo, entre outras atividades, fundou a revista Condé Nast Traveler e foi editor da agência de notícias Reuters. Em 2000, passou a se dedicar aos livros, encerrando uma carreira de seis décadas de jornalismo.

Evans voltava frequentemente ao Reino Unido. Em 2012, foi homenageado em Londres por ocasião do 50º aniversário da retirada da talidomida do mercado. Guy Tweedy, uma das vítimas presentes, conta que Evans fez um discurso tão pungente que deixou todos em silêncio: “Ele disse que nós éramos os homenageados, e que a culpa era de quem cria os remédios, e não dos pais. Embora a culpa que as mães sintam não tenha desaparecido até hoje, isso as ajudou a se sentirem melhor”.

Durante as homenagens por sua morte, falou-se que a carreira bem-sucedida de Evans nos Estados Unidos representou uma perda para o jornalismo britânico, que ficou sem sua liderança nas muitas crises enfrentadas desde então. Mas seus livros escritos na década de 1970, da série Editing and Designing, permanecem como uns dos poucos considerados clássicos do jornalismo, notadamente Newsman’s English, de redação para jornais, e Pictures on a Page, de escolha e uso de fotografias.

Para se ter uma ideia do tamanho da perda, podemos lembrar como o jornal The Independent, concorrente do The Sunday Times, referiu-se a ele na época do lançamento do seu livro de memórias My Paper Chase: “Se houver um editor vivo que lutou contra as forças das trevas com o máximo de vigor, persistência e brilho, esse homem é inquestionavelmente Harold Evans”.


Aldo De Luca,  Conselheiro e colaborador do MediaTalks byJ&Cia, é jornalista brasileiro radicado em Londres. Formado em Jornalismo pela UFF (Universidade Federal Fluminense), foi repórter especial do jornal O Globo em 1987 e 1988. Fundou junto com Luciana Gurgel a agência Publicom, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group).  Além de jornalista,  é Engenheiro pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Integra a  FPA (UK Foreign Press Association). 

 

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