• Um “caso monumental” desafia o monopólio do Google em solo americano
  • “Pode a Austrália viver sem Google e Facebook?”, pergunta o think tank Australia Institute, que propõe no relatório Tech-xit uma alternativa estatal para substituir as plataformas 

 

Por Luciana Gurgel | MediaTalks, Londres 

Em meio às disputadas eleições presidenciais americanas, marcadas pela proliferação descontrolada de fake news nas mídias sociais, e dias após uma campanha difamatória nas redes ter resultado no assassinato de um professor na França com requintes de crueldade, veio do Departamento de Justiça dos Estados Unidos na última terça-feira (20/10) outra má notícia para as plataformas digitais globais: 

“Hoje, o Departamento de Justiça − com onze procuradores-gerais estaduais − entrou com uma ação civil antitruste no Tribunal Distrital dos Estados Unidos para o Distrito de Columbia a fim de impedir o Google de manter monopólios ilegais por meio de práticas anticompetitivas e de exclusão nos mercados de busca e publicidade de busca, visando a remediar os danos competitivos. Os escritórios dos procuradores-gerais estaduais participantes representam Arkansas, Flórida, Geórgia, Indiana, Kentucky, Louisiana, Mississippi, Missouri, Montana, Carolina do Sul e Texas”.

O procurador-geral William Barr declarou que “milhões de americanos dependem da internet e das plataformas online para suas vidas diárias, sendo de vital importância a competição no setor, razão pela qual este é um caso monumental tanto para o Departamento de Justiça quanto para o povo americano”. 

Talvez ele esteja sendo modesto, porque o resultado deste “caso monumental” pode influenciar os destinos do Google em boa parte do mundo, não apenas em território americano.  

Da Austrália, Google e Facebook estatais? 

Na Austrália os ventos também não andam favoráveis para o Google nem para o Facebook. Do país surgiu uma ideia que pode parecer inimaginável à primeira vista, tamanha a inserção das plataformas em nossas vidas. Mas que muitos estão levando a sério.

Trata-se da criação de uma rede alternativa para substitui-los, administrada pelo governo por meio da emissora pública ABC. 

A proposta veio do Centro para Tecnologia Responsável do think tank Australia Institute, no relatório cujo nome − Tech-xit: pode a Austrália viver sem Google e Facebook? − faz alusão ao Brexit, saída do Reino Unido da União Europeia.

É consequência da encardida disputa do governo australiano com as plataformas em torno do pagamento às empresas jornalísticas pelo conteúdo por elas gerado e transmitido pelas redes. As plataformas deram uma boa esnobada à proposta oficial feita pelo governo em abril. Disseram não depender das notícias. 

Sem acordo, o governo publicou em julho uma proposta de código de negociação de pagamento, por meio da Comissão Australiana de Concorrência e Consumo. Foi baseado principalmente nos resultados de um relatório de 2019 resultante de comissão de inquérito conduzida pelo órgão, que envolveu pesquisas, depoimentos e consultas públicas.  

A nova regra determina que o Facebook e o Google negociem com empresas jornalísticas australianas o pagamento para hospedagem do noticiário, além de fornecerem acesso a dados dos usuários de notícias e informações sobre alterações no algoritmo do feed de notícias. 

Neste artigo, publicado na plataforma de textos acadêmicos The Conversation, Rob Nicholls, diretor da UNSW Business School e professor de direito empresarial, analisa os aspectos legais do código.

Insatisfeito, o Facebook anunciou em setembro planos de removê-las de seu braço australiano. O diretor Will Easton ressalvou que “não seria nossa primeira escolha”, mas a última.

“Presumindo que este projeto de código se torne lei, relutantemente pararemos de permitir que empresas jornalísticas e pessoas na Austrália compartilhem notícias locais e internacionais no Facebook e Instagram”, disse ele.

O Google não ameaçou diretamente remover as notícias na Austrália, mas a diretora Melanie Silva disse aos usuários que a lei “poria em risco os serviços gratuitos no país”.

No entanto, contraditoriamente para quem acha que não precisa do noticiário produzido pelas empresas jornalísticas, iniciaram uma campanha das redes sociais conclamando os australianos a se posicionarem contra a ideia do governo. 

Em seu blog, o Google disse que o código era “impraticável”, mas admitiu que não seria capaz de escapar dele como fez na Espanha − onde o feed de notícias foi desligado −, porque o código proposto era definido de forma ampla. Também se dirigiu à comunidade de criadores do YouTube. 

O que diz o Tech-xit 

O relatório do Australia Institute diz que identificou sérios riscos para as empresas, serviços governamentais e consumidores diante da ameaça do Google e do Facebook de reduzir ou fechar serviços na Austrália caso o governo federal prossiga com os planos de cobrá-los pelo conteúdo de notícias. 

O tom é nacionalista, mostrando que a disputa assumiu ares de ponto de honra para o governo. No statement sobre o trabalho, Peter Lewis, diretor do Centro de Tecnologia Responsável, afirmou: 

“A resposta do Google e do Facebook à proposta de código publicada pelo governo expôs nosso excesso de confiança neles. Como o poder das principais plataformas continua a crescer, é essencial que a Austrália tenha planos para assegurar nossa soberania digital”. 

O documento indaga: 

  • Confiamos no Google e no Facebook e concordamos com sua oposição a uma ação rigorosa do governo australiano?
  • Nossa experiência online ficará pior se os titãs da tecnologia decidirem que o código proposto pelo governo é desfavorável para eles na Austrália?
  • Qual seria o impacto sobre os australianos que contam com produtos e serviços do Google e o Facebook. 

O diretor afirmou que as duas corporações globais, que desempenham um papel dominante nas instituições cívicas e comerciais australianas, estão preparadas para ameaçar retirar esses serviços para proteger seus próprios interesses comerciais. As ameaças advindas da decisão foram apontadas no relatório: 

  • riscos para o discurso civil se o Facebook proibir notícias locais, fazendo com que a plataforma seja inundada por desinformação
  • riscos significativos para as empresas locais se o Google remover o acesso à sua plataforma de publicidade e ao YouTube
  • interrupção dos serviços de saúde e educação, que dependem cada vez mais do pacote de produtos de tecnologia do Google

Entre as três recomendações formuladas, a mais radical seria a criação de uma rede social de propriedade pública e de propósito público. Ela não rastrearia nem monetizaria dados dos usuários e seria hospedada pela Australian Broadcast Corporation (ABC). 

A proposta é de que a nova rede englobe perfis de usuários, suas publicações, recursos de conteúdo, recursos de conexão de grupo, chat, comentários e recursos de discussão interativa. Alguém aí ouviu “Facebook”? 

As outras recomendações do Tech-xit são: 

  • A adoção de uma estratégia nacional de mitigação de risco tecnológico, como extensão da estratégia nacional de segurança cibernética, mapeando os riscos de dependência em empresas de tecnologia específicas como Google e Facebook para serviços públicos, particularmente em educação, saúde e administração governamental. 
  • Uma lei de privacidade de dados mais rigorosa (endossando posição já manifestada por outras entidades), considerando que a coleta de dados do usuário está no centro do modelo de negócio das plataformas digitais. O relatório sugere as seguintes medidas: 
      • Atualização da definição de “informações pessoais” na Lei de Privacidade para incluir dados técnicos digitais, como endereço IP, identificadores de dispositivo, dados de localização e outros identificadores online usados ​​para identificar indivíduos.
      • Criação de requisitos de consentimento online mais fortes e claros, incluindo a exigência de consentimento sempre que informações pessoais são coletadas e garantia de que a coleta de informações esteja desativada por padrão até que o consentimento seja dado. E adoção de linguagem clara e simples no pedido de consentimento.
      • Permissão para que os usuários solicitem a exclusão de informações pessoais junto às empresas de tecnologia. 

Redes sociais estatais: uma possibilidade real? 

Os dois lados parecem estar firmes em suas posições. Se não houver acordo, seria mesmo possível que Google e Facebook cumprissem as ameaças? Paul Lewis acha que sim, mas observa que mesmo que isso não aconteça o país deve se preparar para reduzir a dependência das plataformas: 

“As plataformas têm um histórico de intimidação governamental. O Google fechou seu serviço de notícias na Espanha em 2014 e o Facebook atualmente ameaça retirar todo o seu serviço da Irlanda em face da regulamentação. Quer cumpram ou não suas ameaças, é responsabilidade de todos os australianos garantir que não sejamos reféns de seus interesses comerciais”. 

O plano tem gerado debates acalorados. Em artigo no The Conversation, republicado por vários veículos australianos, a professora de mídia da Universidade de Sydney Fiona Martin acha que a ideia é tecnicamente viável:

“O Tech-xit corretamente defende que a ABC seja capaz de construir mídias sociais que não coletam dados pessoais dos australianos”. 

Mas levanta a questão financeira: 

“A ideia ignora os custos e desafios de administrar um serviço de mídia social. É uma jogada ousada sugerir que a ABC possa iniciar mais uma grande rede quando teve que cortar A$ 84 milhões do orçamento e perder mais de 200 funcionários. A ideia do instituto é muito provavelmente um esforço para persuadir o governo a direcionar recursos para a ABC, que tem um histórico de inovação digital com produtos como ABC Online, iView, Q&A e outros”. 

E também desafios operacionais: 

“Na última década, o ABC Online teve que reduzir muitos dos serviços “sociais” que oferecia. Isso se deve em grande parte ao custo de moderar comunidades online e gerenciar a participação do usuário.

“Mesmo se o governo injetasse milhões em uma ’ABC Social ‘, é improvável que a rede pudesse lidar com os problemas de encontrar e remover conteúdo ilegal em grande escala. É um problema que ainda derrota as plataformas de mídia digital, e o ABC não tem experiência nem fundos para manter um exército de moderadores terceirizados”.

Do Norte e do Sul, dois marcos à vista 

O resultado final das batalhas travadas nos Estados Unidos e na Austrália deve demorar. É de se esperar que o que ficar decidido torne-se referência para outros países, extrapolando as fronteiras nacionais. 

Mesmo antes da conclusão, porém, os rumos que os dois países resolveram seguir já podem inspirar outros, uma vez que os problemas e os impactos das plataformas digitais sobre a indústria jornalística são semelhantes em quase todo o planeta. Uma novela que vale acompanhar capítulo a capítulo. 

Luciana Gurgel, Coordenadora editorial do MediaTalks byJ&Cia, é jornalista brasileira radicada em Londres. Iniciou a carreira no jornal o Globo, seguindo depois para a comunicação corporativa. Em 1988 fundou a agência Publicom, junto com Aldo De Luca, que se tornou uma das maiores empresas do setor no Brasil e em 2016 foi adquirida pela WeberShandwick (IPG Group). Mudou-se para o Reino Unido e passou a colaborar com veículos brasileiros, atuando como correspondente do canal MyNews e colunista semanal do Jornalistas&Cia / Portal do Jornalistas, no qual assina uma coluna semanal sobre tendências no mundo do jornalismo e da comunicação. É membro da FPA (Foreign Press Association). 

luciana@jornalistasecia.com | @lcnqgur 

Gostou do que leu aqui? Comente. Compartilhe. O debate sobre os rumos do jornalismo é fundamental para a sociedade.