Por Luciana Gurgel | MediaTalks, Londres 

Coluna publicada originalmente no Jornalistas&Cia/Portal dos Jornalistas em 11.11.2020

A cena de jornalistas portando credenciais ameaçados de prisão durante a cobertura de protestos de rua tornou-se comum em locais que atravessam turbulência política como Hong Kong, Nigéria ou Bielorrússia. Mas isso aconteceu na última quinta-feira (5/11) em Londres, capital de uma nação com tradição de imprensa livre.

Ainda que aparentemente fruto de uma trapalhada de agentes pressionados pela tensão de enquadrar manifestantes antilockdown pouco amistosos, o caso provocou reação de jornalistas e entidades, que não admitem aqui a hipótese de um jornalista ser impedido de fazer o seu trabalho dessa forma. Sobretudo porque em março os profissionais de imprensa ganharam status de trabalhadores essenciais, assegurando livre trânsito mesmo durante o lockdown.

Na segunda-feira (9/11), a Scotland Yard desculpou-se formalmente e o caso foi encerrado sem grandes consequências. Mas expôs dois riscos à sociedade agravados pela pandemia.

O primeiro é a escalada de ameaças à liberdade de imprensa que se avolumam desde março, inclusive na democrática Europa. Elas vão de meros deslizes como o de Londres a políticas de Estado envolvendo leis coercitivas.

O segundo é o avanço dos grupos contrários a medidas de controle da Covid-19, surfando na desinformação propagada via mídias sociais. Protestos antilockdown como o de quinta-feira têm acontecido quase toda semana em Londres e também em outras cidades europeias, ameaçando retardar o combate à doença mesmo com a vacina parecendo estar próxima.

Acordo do governo com plataformas digitais para conter movimentos antivacina

O governo do Reino Unido tem se mostrado disposto a exercer controle sobre as mídias sociais, pautado sobretudo por movimentos empreendidos por jornais, parte da tradição britânica de jornalismo de campanha. Um exemplo é o do Daily Telegraph, motivado pelo suicídio de uma jovem que viu conteúdo nocivo dias antes de cometer o ato.

Agora, a preocupação é com a vacina. Alarmado com o elevado índice de britânicos em dúvida sobre a intenção de se imunizar, o governo chamou as plataformas à responsabilidade.

Os secretários nacionais de mídia, Oliver Dowden, e de saúde, Matt Hancock, arrancaram esta semana das redes sociais o compromisso de atuar para combater a desinformação sobre a vacina contra a Covid-19. O acordo com Google, Facebook e Twitter foi selado em uma reunião virtual e publicado no site do governo em 8/11 como documento oficial, ato de forte simbolismo.

Nele, as plataformas concordam que nem elas nem usuários podem lucrar com a desinformação sobre a vacina. Prometem responder rápido quando conteúdo falso for sinalizado. E intensificar o trabalho com órgãos de saúde pública para promover mensagens confiáveis.

Se o fizerem, terá sido uma vitória e tanto. O conspiracionista David Icke só teve sua conta no Twitter, com 382 mil seguidores, suspensa há uma semana, embora Facebook e YouTube tenham feito isso seis meses atrás.

Icke propagou a tese de que a radiação emitida pelas torres de telefonia 5G diminuem a imunidade e favorecem o contágio pelo coronavírus, levando vândalos a destruirem mais de 70 delas pelo país. E lucra vendendo livros e palestras.

relatório da ONG britânica Hope Not Hate mostrando o avanço do movimento QAnon no país demonstra que se as plataformas quiserem é possível controlar a desinformacao que nelas circula. O acordo faz do Reino Unido um bom laboratório.

Liberdade ameaçada

Já a liberdade de imprensa é mais difícil. Casos como o dos jornalistas em Londres são ínfimos perto do que acontece pelo mundo. Não começaram em março, mas a pandemia fez piorar.

A ONG Article 19 havia publicado em outubro um relatório indicando que mais da metade dos cidadãos do mundo vive sob uma crise de liberdade de expressão. A Nigéria emerge como um dos mais tristes casos. A entidade contabilizou 51 incidentes de prisão ou detenção, ameaças e confisco de equipamentos entre janeiro e outubro de 2020, contra 19 no mesmo período do ano passado.

Mesmo na democrática Europa a situação preocupa. O estudo quantitativo A Mission to Inform: Journalists at Risk Speak Out, publicado pelo Conselho da Europa, analisou as pressões exercidas e as estratégias adotadas por 20 profissionais para seguir com sua missão. Uma das participantes, a maltesa Daphne Caruana Galizia, deu a entrevista dez dias antes de ser assassinada, em 2017.

Antes de reclamar, porém, é bom que a imprensa faça o seu mea culpa. Um outro estudo, da City University e Universidade de East Anglia, revelou que a cobertura jornalística sobre o tema caiu nos últimos 16 anos, em trajetória oposta à do crescimento das ameaças.

Será que algum dia veremos a vacina para essa doença?