A disputa entre o Governo australiano e as gigantes digitais para obrigá-las a pagar às empresas jornalísticas pelo conteúdo exibido em suas plataformas vive uma etapa decisiva: a lei proposta pela administração de Scott Morrison está no Parlamento e pode ser votada ainda esta semana. O Comitê de Economia do Senado recomendou que a casa valide o projeto sem emendas, a oposição confirmou apoio e o Governo que ver a lei aprovada até o dia 25.

Antes mesmo de ser votada, no entanto, a lei já causou efeitos concretos. Sob pressão intensa, o Google abriu a carteira nos últimos dias para fechar acordos diretos com grandes conglomerados de mídia e incluí-los em seu News Showcase, lançado há duas semanas apenas com veículos menores.

Na segunda-feira (15), fechou com a Seven West. Na terça-feira (16) foi a vez do Nine Entertainment, conglomerado que inclui o jornal Sydney Morning Herald. E na quarta-feira (17), foi a vez da News Corp., do empresário Rupert Murdoch.

O valor do acordo com Murdoch não foi revelado, mas ele é mais abrangente do que os demais, valendo também para os títulos nos Estados Unidos (como Wall Street Journal e The New York Post) e Reino Unido (The Times e The Sun).

Acordo com Nine supera US$ 100 milhões

Pode-se ter uma idéia do montante a julgar pela negociação com o Nine Entertainment. Uma reportagem no principal jornal do grupo, o Sydney Morning Herald, revelou que o grupo receberá do Google AU$ 30 milhões (US$ 23,3 milhões) por ano nos próximos cinco anos, em troca do uso de conteúdo produzido pelos veículos do grupo (jornais, rádios, emissoras de TV e canais digitais) em produtos diversos como o News Showcase e o Subscribe with Google, que permite o engajamento direto com leitores.

Curiosamente para uma notícia sobre a casa, atribuiu a informação a “fontes familiarizadas com as negociações, que falaram anonimamente devido ao acordo de confidencialidade“. As mesmas fontes disseram que foi o maior acordo assinado pelo Google na Austrália até o momento. E que o negócio envolve pagamento direto e em créditos de propaganda, mas não cobre o conteúdo exibido em buscas.

Na lista dos grandes players australianos falta ainda fechar com o Guardian Austrália, o que a imprensa australiana aposta que pode acontecer nas próximas horas.

Endurecer o jogo valeu a pena. O grupo de Murdoch sempre se posicionou fortemente pelo pagamento do conteúdo jornalístico, assim como o Nine. O  CEO do conglomerado, Peter Costello, ex-parlamentar, chegara a conclamar os legisladores “a ignorarem as pressões das Big Techs” em uma entrevista ao Financial Times publicada há poucos dias.

O fechamento desses contratos, no entanto, está longe de ser visto como traição ao Governo ou enfraquecimento da nova lei. A leitura é de que eles só foram assinados diante da pressão exercida pela administração de Scott Morrison, que bem merece uma estátua no panteão dos defensores da sustentabilidade da indústria de mídia.

Logo após o acordo com o Nine tornar-se público, o ministro do Tesouro australiano, Josh Frydenberg, lembrou que o governo manteve-se firme na implementação da lei a despeito das ameaças do Google e do Facebook de suspenderem seus serviços no país caso ela fosse aprovada:

“As gigantes digitais não tiveram dúvidas sobre a determinação do Governo Morrison. A primeira coisa a dizer é que esses acordos não estariam acontecendo se não tivéssemos com o projeto de lei a ser aprovado no Parlamento”, disse Frydenberg. 

Mas nem todas as gigantes dobraram-se à pressão. Na noite quarta-feira (17), o Facebook anunciou restrição a compartilhamento de links de notícias de veículos australianos na plataforma.

Em um post no blog, minimizou o impacto financeiro, afirmando que apenas 4% do conteúdo dos feeds de usuários no país são de notícias. E procurou fazer uma distinção entre a forma de compartilhamento de notícias no Facebook e as buscas do Google.

O movimento causou revolta e pode acabar virando uma crise diplomática, diante da ameaça do Primeiro-Ministro de engajar outros líderes mundiais na briga.

Apoio da oposição

Antes da abertura da sessão parlamentar, acontecimentos e movimentações de bastidores que acontecem desde o fim da semana passada já indicavam os rumos que a história poderia tomar. O mais decisivo deles foi a notícia publicada por veículos australianos e pela Reuters na terça-feira (15/2) sobre uma reunião em Canberra durante a qual o Partido Trabalhista, de oposição, decidiu o apoiar a regulamentação.

O apoio não foi confirmado oficialmente, mas também não foi negado. Ele é decisivo porque o partido governamental, o Liberal, não tem maioria na casa e depende do Trabalhista para ver a lei aprovada. A notícia fortaleceu ainda mais a posição do Governo.

O Partido Verde também endossará o projeto no Parlamento, mas pretende apresentar emendas, incluindo exigências para que os meios de comunicação invistam as receitas obtidas por meio da nova lei em jornalismo de interesse público, e uma revisão em 12 meses para avaliar o impacto sobre as editoras menores.

Enquanto isso, intensas negociações envolvendo as plataformas, o governo e os principais grupos de mídia desenrolam-se intensamente.

Depois de reuniões entre Morrison e os CEOs do Google e do Facebook ocorridas no fim de semana, o Governo anunciou na terça-feira a decisão de ajustar alguns itens da lei, sem no entanto alterar o espírito original.

Acompanhe aqui os últimos lances e entenda o que está em jogo na Austrália, que pode influenciar o relacionamento da indústria de mídia com as plataformas em todo o mundo.  Se aprovada, será a primeira vez que uma lei obrigará Google e Facebook a pagar ao se vincularem a conteúdos jornalísticos e a informar as empresas de mídia sobre mudanças nos algoritmos que os afetem.

O enredo da novela 

Depois de uma investigação de 18 meses, a Comissão Australiana de Concorrência e Consumidores propôs em junho de 2020 um código de negociação para garantir que as empresas jornalísticas fossem remuneradas de forma justa pelo conteúdo que geram. A comissão concluiu que o desequilíbrio de poder entre as plataformas e as empresas coloca em risco a indústria de mídia.

O projeto prevê que se não houver acordo um árbitro implementará o modelo de “arbitragem de oferta final” para determinar o nível de remuneração. Pelo sistema, os dois lados colocam suas propostas sobre a mesa e o árbitro decide na hora qual a vencedora.

Violações do código, incluindo a não negociação de boa fé, seriam puníveis com multa de 10 milhões de dólares australianos ou o equivalente a 10% do faturamento anual das empresas digitais na Austrália.

As plataformas opuseram-se e chegaram a sugerir deixar o país, causando reação do primeiro-ministro. A temperatura subiu em janeiro, quando depois de um depoimento da CEO do Google na Austrália no Senado expressando a possiblidade de encerrar os serviços no país, Scott Morrison reagiu com firmeza dizendo “não responder a ameaças” e que “cabe ao país estabelecer suas próprias regras sobre coisas que se pode fazer na Austrália”.

Dias depois, em 5 de fevereiro, o Google lançou seu News Showcase e fechou acordo com algumas empresas jornalísticas, mas não conseguiu assinar com as principais. E a Microsoft entrou em campo declarando apoio à regulamentação proposta pela Austrália.

O Facebook, também alvo da regulamentação, manteve-se reservado, mas circulam notícias de que estaria negociando acordos comerciais com empresas de mídia para inclui-las em seu Facebook News, seção de notícias dentro do aplicativo móvel que já existe nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Costuras entre governo e plataformas 

O Google havia descrito a legislação como “impraticável”, mas agora se empenha no lobby para que a legislação seja ao menos amenizada, com executivos seniores conversando com Scott Morrison e com o ministro do Tesouro, Josh Frydenberg, nos últimos dias.

A gigante digital pediu uma série de mudanças. A principal é que a nova lei se aplique ao Google News Showcase e não aos resultados de busca. O Google quer também uma revisão no sistema de arbitragem. Ao Financial Times, a diretora de assuntos governamentais da empresa na Austrália parece não ter dúvidas de que a lei será aprovada, mas tenta amenizar seus impactos:

“Desde que o projeto foi lançado, em julho do ano passado, continuamos comprometidos com um código viável. As preocupações que nós e outros temos levantado consistentemente são sobre aspectos específicos do código”, disse Lucinda Longcroft. 

O Facebook manifestou-se mais uma vez declarando em um comunicado em 15/2 que a lei continua inviável e pedindo aos parlamentares que a alterassem.

Mas as conversas evoluíram bem. Na segunda-feira (15/2), o ministro do Tesouro disse à imprensa australiana que a decisão de instituir a nova lei mantinha-se inalterada, e acrescentou:

“Acho que estamos muito perto de alguns acordos comerciais significativos, e isso transformará o ecossistema de mídia australiano”. 

Segundo o site Techxplore, entre as mudanças aceitas pelo Governo estaria um esclarecimento sobre o  mecanismo de pagamento às empresas jornalísticas, em valores fixos e não por links em matérias. Em uma declaração conjunta, Frydenberger e o ministro das Comunicações Paul Fletcher afirmaram que os ajustes permitem uma aplicação melhor do código, mas mantêm o espírito original, sinalizando que não dobraram-se a exigências com as quais não concordavam.

Em entrevista à Reuters, o analista de mídia e telecomunicações Paul Budde afirmou concordar que os sinais são de que o Governo australiano e o Google estão próximos de selar a paz, o que permitiria que ao governo celebrar uma vitória e à plataforma limitar os danos ao seu negócio ao conseguir algumas concessões.

Em matéria publicada em 17/2 pela Fortune, o professor da Universidade RMIT (Melbourne) James Meese, pesquisador de direito e políticas da indústria de mídia, avaliou que o Google tenta evitar o pior cenário: ser obrigado a pagar por notícias que apareçam nas buscas. Esta seria a razão para estar desembolsando somas tão altas em contratos com empresas jornalísticas australianas, que o professor considera acima do valor de mercado.

Ele acha até que esses acordos podem proporcionar aos veículos um retorno maior do que as negociações feitas com base na nova lei, quando aprovada. E acredita que o governo não quer que o Google saia do país, o que favorece os entendimentos.

Meese não tem dúvidas sobre a possibilidade de precedente regulatório aberto pelo projeto de lei australiano. Em sua opinião, as plataformas estão se empenhando para conter o que pode se tornar um padrão internacional.

Até o think tank australiano Centro de Tecnologia Responsável, que chegou a elaborar a proposta de uma rede social estatal − o Tech-xit, em alusão ao Brexit − para substituir as plataformas digitais caso elas resolvessem sair do país, está favorável à nova lei. O diretor do centro, Peter Lewis, divulgou um comunicado em apoio ao novo código, afirmando que as mudanças mantêm a integridade da proposta.

Seven West Media foi a primeira a fecha

Em uma vitória para o Google, a Seven West Media tornou-se na segunda-feira (15) a primeira grande empresa jornalística australiana a fechar um acordo de licenciamento com a plataforma, que já tem quase 50 contratos fechados com títulos no país e 500 no mundo.

Ao fazer isso, separou-se momentaneamente das rivais News Corp. e Nine Entertainment, que não haviam até então assinado contratos sob o argumento de que as as negociações diretas não haviam progredido e que aguardariam a nova regulamentação que estabelecerá a arbitragem para definir os termos do pagamento na ausência de acordo direto.

Situação que mudou no dia seguinte, quando a Nine também assinou com o Google.

A confirmação do contrato entre Seven West e Google foi feita com pompa durante o comunicado de resultados financeiros da empresa de mídia, na segunda-feira (15/2). A organização, que possui uma rede de televisão aberta e o principal jornal da cidade de Perth, disse que forneceria conteúdo para a plataforma News Showcase do Google, mas não divulgou detalhes nem os valores envolvidos. Os dois lados manifestaram-se nos elegantes termos protocolares típicos desses acordos:

“As negociações com o Google reconhecem o valor da qualidade e do jornalismo original em todo o país e, em particular, nas áreas regionais”, disse o presidente da Seven West, Kerry Stokes, em um comunicado.

Por sua vez, o Google completou:

“A empresa está orgulhosa de apoiar um jornalismo original, confiável e de qualidade” disse a CEO do Google na Austrália, Mel Silva.”

Com um olho no padre e outro na missa, no entanto a Seven não descartou completamente o apoio à nova lei, segundo confirmou à Reuters um porta-voz da empresa jornalística.

Nine partiu para o ataque e colheu frutos  

Nine Entertainment Austrália não fechou acordo com Google News ShowcaseA Nine Entertainment jogou duro e isso pode ter ajudado a reforçar seu caixa com uma soma nada desprezível de US$ 23,3 milhões por ano, que seria o valor do contrato com o Google.

Quando o News Showcase foi lançado na Austrália, há duas semanas, o site Mumbrella citou uma declaração amarga de uma fonte da empresa:

“Isso é o que os monopólios fazem. Eles apresentam uma oferta, na forma do Google Showcase, mas não se mostram abertos a negociar. Tem que ser tudo nos termos deles, e dessa forma não participaremos. Apoiamos a legislação que o Governo está propondo como a melhor forma de garantir um pagamento justo por nosso conteúdo.”

Na segunda-feira (15/2), Peter Costello, presidente do grupo, deu uma entrevista ao Financial Times conclamando os parlamentares a “ignorarem as ameaças do Google e a aprovarem a nova lei”. Ele demonstrou apoio pleno à posição do governo de “não receber ordens do Google”, lembrando que o país decidirá o que é do interesse dos australianos sem pedir permissão à plataforma para legislar”.

A Nine é uma organização de US$ 3,9 bilhões, dona do  Sydney Morning Herald, jornal de 190 anos, que é um dos principais do país. Costello, um ex-vice-líder do Partido Liberal australiano, disse ao Financial Times que a regulamentação é  necessária porque o monopólio do Google no setor de buscas dava-lhe poder de barganha indevida. Ele rejeitou a ideia de que a plataforma News Showcase enfraqueceu a exigência de haver uma lei:

“Nosso ponto é muito simples: se o Google usar nosso conteúdo, deve pagar por isso”.

Foi o que ele conseguiu.

Um jogo apenas para os big players

Enquanto os grandes grupos de mídia negociam em posição vantajosa, editores menores demonstram preocupação com os riscos de saírem perdendo. Em entrevista ao Sydney Morning Herald, Eric Beecher, presidente da Private Media, que dirige o site de notícias Crikey, disse que a nova lei precisa de pequenas alterações para garantir que as editoras menores compartilhem “de forma justa e transparente” a receita dos gigantes da tecnologia.

“A legislação deve criar um apoio financeiro significativo para cerca de 100 editoras de notícias regionais e urbanas de pequeno a médio porte da Austrália, para que a vasta proporção do financiamento não acabe nos bolsos da News Corp e da Nine”, disse Beecher. 

Adam Pilhofer, ex-diretor digital do Guardian e atualmente professor da Temple University, falou ao Financial Times sobre o risco:

“Minha preocupação é que os grandes players fiquem com todo o dinheiro. Seria uma extração de ativos por políticos e por grandes organizações de mídia ”. 

No mesmo dia em que o grupo Nine fechou com o Google, outra pequena editora australiana, a Junkee Media,  juntou-se aos que já tinham aderido ao News Showcase. O CEO Neil Ackland disse que vai investir em uma estrutura de conteúdo e reforçar o jornalismo de interesse social.

A parte do leão

Os desdobramentos na Austrália têm o potencial de transformar uma indústria que foi profundamente afetada pelas plataformas digitais nos últimos anos. Os números não mentem.

Segundo o Financial Times, quando o Google foi lançado, em 1998,  jornais e revistas eram responsáveis ​​por quase um em cada dois dólares em publicidade em todo o mundo. Em 2020, de acordo com o GroupM, as editoras respondiam por apenas 8.3% do volume de publicidade, totalizando US$ 578 bilhões.

Falta muito para o jogo ser reequilibrado, como é a intenção da comissão australiana de concorrência que elaborou as bases para a nova lei. Mas pode ser um começo.

Não é à toa que União Européia, Reino Unido e Canadá, que já deram a partida na implantação de leis para regular as plataformas digitais,  revelaram que estão observando o que acontece na Austrália como modelo a ser seguido.