Por Marina Estarque, journalist | LatAm Journalism Review 
Artigo republicado com autorização do Centro Knight de Jornalismo para as Américas

Neste mês, a Nicarágua completa três anos dos protestos, que começaram em 18 de abril de 2018, quando o país foi sacudido por uma grave crise política. Asmanifestações, inicialmente contra uma reforma da previdência, ampliaram-se e se voltaram contra o regime autoritário de Daniel Ortega, na Presidência do país desde 2007.

Os protestos de 2018 foram duramente reprimidos pelas forças policiais,deixando um saldo de ao menos 300 mortos e 2.000 feridos. Entre 2018 e 2020, segundo a ONU, mais de 100 mil pessoastiveram que fugir da Nicarágua, incluindoao menos 90 jornalistas.

As manifestações são um marco no país, porque, depois delas, o regime nicaraguense e apoiadores do partido governista, a Frente Sandinista de Libertação Nacional,  voltaram-se contra a imprensa e opositores.

Segundo relatório da Artigo 19, a Nicarágua está entre os cinco países do mundo que mais tiveram um declínio na liberdade de expressão entre 2009 e 2019.No documento, a ONG afirma que o presidente Ortega “tem erodido as estruturas democráticas desde que assumiu o cargo”. Nicarágua, Cuba e Venezuela são os únicos países nas Américas classificados como “em crise” pela Artigo 19.

No aniversário das manifestações, a LatAm Journalism Review (LJR) falou com repórteres na Nicarágua para saber como é viver e trabalhar em um clima de medo e repressão, em quejornalistas são presos, processadoseassediados pela polícia em suas casas. Ao mesmo tempo, meios de comunicação críticos sofrem comretenção de papel-jornal pelo governo, fecham ou sãodesapropriados.

A repórter freelance Ileana Lacayo, membro da comissão executiva do PCIN (Jornalistas e Comunicadores Independentes da Nicarágua), associação que representa 180 jornalistas no país, diz que a violência contra a imprensa se manteve desde 2018. Ela reforça que, recentemente, no entanto, algo mudou: a repressão foi, nas suas palavras, legalizada.

Segundo Lacayo, o governo aprovou, desde o final do ano passado, um pacote de leis repressivas, que tornaram o ambiente muito mais hostil para o jornalismo.

leana Lacayo, do PCIN . Foto: Arquivo pessoal

Uma delas, a “Lei do Cibercrime”, conhecida como “Lei da Mordaça”, determina penas de prisão de um a oito anos quando o governo sandinista considerar que o jornalista publicou uma “notícia falsa”. Também no ano passado, o Parlamento aprovou uma emenda constitucional que permitiu apena de prisão perpétua para “delitos de ódio”.

“O governo considera que um meio de comunicação crítico ao governo fomenta o ódio. Portanto, se te processarem, eles podem usar a prisão perpétua como uma das penas, possivelmente contra jornalistas ou contra a imprensa”, disse Lacayo à LJR.

Por fim, ela também destaca alei de agentes estrangeiros, que teve um importante impacto na sociedade civil e na imprensa, com o fechamento ou a suspensão de operações de organizações, inclusive algumas que apoiavam o jornalismo local e a liberdade de expressão, como aFundación Violeta Chamorro.

“Na prática, o que a lei faz é regular a entrada de dinheiro de origem internacional e, embora você seja nicaraguense, [se recebe recursos do exterior], você é considerado um agente estrangeiro e está proibido de investigar, publicar e comentar assuntos que tenham a ver com a política nacional. É super-sério, porque se eu receber um fundo para apoiar minhas investigações jornalísticas sobre corrupção ou sobre a agenda pública, não posso [fazer a reportagem]”, explica Lacayo.

Segundo ela, a lei contribuiu para asfixiar economicamente meios de comunicação independentes, que já lutavam para se manter durante uma grave crise econômica e sanitária.

A repórter acrescenta que, além da entrada em vigor dessas leis, alguns tipos de violações aumentaram no primeiro trimestre de 2021, de acordo com monitoramento do PCIN, que vai ser lançado neste mês.

“Aumentaram as agressões contra jornalistas, tentam tirar os seus celulares e câmeras, a perseguição, os bloqueios [nas ruas] contra equipes de jornalistas para que não cheguem aos locais de cobertura. Houve até ataques e abusos, porque tocaram as partes sexuais dos jornalistas. Da mesma forma, o assédio diante das casas dos jornalistas [também aumentou], comono caso de Kalua Salazar. Tem praticamente três meses que diariamente as viaturas e policiais armados ficam diante da casa dela”, contou.

A repórter freelancer Ileana Lacayo, no exílio na Holanda. Foto: Arquivo pessoal

Lacayo também foi vítima de perseguição. Em abril de 2018, invadiram a sua casa e reviraram roupas, documentos e objetos, enquanto ela estava no enterro do seu colega, o jornalista Ángel Gahona, que foi assassinadoem Bluefields, durante uma cobertura de protestos contra o governo.

Ao chegar em casa do enterro, de noite, Lacayo notou a invasão e, desde então, nunca mais voltou, ainda que seja ainda a dona da propriedade.

Logo em seguida, ela foi para o exílio, como parte de um programa internacional de proteção de jornalistas. Ficou quase dois anos fora, vivendo na Holanda e na Costa Rica. Em dezembro de 2019, entretanto, quando o programa terminou, teve que retornar.

“Voltar foi uma decisão muito difícil e dá muito medo. Ou seja, na Nicarágua ainda não há condições para voltar do exílio, mas o exílio é difícil. E na Costa Rica é ainda mais, porque há muitos imigrantes da Nicarágua, há quase um milhão de nicaraguenses na Costa Rica.

muita xenofobiae pouquíssimas oportunidades. Não consegui ter um emprego ou uma oportunidade para poder sobreviver e, depois do fim do programa de proteção, quando fiquei sem esse apoio, ficou muito difícil”, disse ela.

Lacayo sabia que voltar seria arriscado e, por isso, adotou um plano de segurança, que incluiu ficar seis meses sem sair de casa, com um perfil de atuação discreto. “Mas foi só eu colocar um pouco a cabeça para fora, começar a escrever novamente e a estar em espaços públicos de denúncia, que a perseguição e o assédio da polícia começaram na minha casa. Então não é fácil, muitas vezes já pensei em ir embora de novo, mas, bom, é preciso fazer resistência”, afirma.

Ameaça de morte e ataque em casa

O repórter Wilih Francisco Narváez González trabalha no veículo digitalDivergentes, que existe desde julho de 2020. Após realizar uma série de entrevistas com candidatos à Presidência, começou a sofrer perseguições mais graves. Narváez conta, por exemplo, que um apresentador de uma rádio apoiadora do governo disse, durante um programa, que Divergentes era um “agente estrangeiro” e o mencionou especificamente.

A série falou apenas com candidatos da oposição, porque, segundo Narváez, Ortega não concederia uma entrevista para um meio crítico e não deu nenhuma coletiva de imprensa desde que retornou ao poder.

Antes de trabalhar no Divergentes, Narváez já havia sido agredido fisicamentedurante coberturas, quando era repórter de televisão do Canal 10. Mas as ameaças e ataques recentes o deixaram mais preocupado, porque uma pessoa chegou air até a sua casa, onde vive com a sua família.

“Essa pessoa veio até a casa, talvez sob a influência de alguma substância, para fazer ataques verbais. Minha mãe saiu para ver o que estava acontecendo e ele disse: ‘Aqui mora o jornalista do Canal 10. […].

E ele fez sinal com a mão que ia cortar a minha cabeça. Ele continuou gritando coisas e saiu. Mais tarde, no dia 28 de fevereiro, de madrugada, essa pessoa veio à mesma propriedade da minha mãe para fazer ataques verbais e atirar pedras na casa”, contou ele, em entrevista à LJR.

Assim como na outra ocasião em que foi atacado, Narváez procurou as autoridades, mas diz que nada foi feito. “Diante de dois ataques e de risco iminente, senti-me impotente e fui obrigado a denunciar o caso nas redes sociais. Recorrer às autoridades, diante de qualquer situação que possa acontecer comigo, inclusive o que aconteceu na casa da minha mãe, deixa claro que a polícia sempre vai virar as costas para mim, sinto-me indefeso”.

O repórter Wilih Francisco Narváez González. Foto: Arquivo pessoal

Narváez afirma que, no dia 4 de março, o pai do homem que atacou a sua casa foi até o local para justificar as ações do filho, dizendo que ele era “um viciado”, mas reclamou que o jornalista estaria “politizando e tirando proveito do caso”. No mesmo dia, Narváez recebeu umaameaça pelas redes sociais, de uma apoiadora do governo.

“Ela me mandou uma mensagem ameaçadora dizendo que vigiava de perto a mim e a minha família e que eles viriam queimar a casa com tudo dentro.

Também enviou junto com a ameaça uma imagem de um rifle, com alguns projéteis, e disse que havia uma bala para cada um dos membros da minha família. E me chamou de ‘cão golpista'”, contou.

Narváez diz que gostaria de acreditar que o ataque foi um caso isolado, obra de um homem com problemas de dependência química, mas ele duvida dessa versão. Ele atribui o incidente na casa da sua mãe ao discurso de ódio do regime contra os jornalistas, que acaba influenciando a população.

Após o ataque, o jornalista adotou diversas medidas de proteção. Algumas simples, como andar pelas ruas com adereços que cubram parte do rosto. E outras que têm um impacto grande na sua rotina, mas que não podem ser informadas para a sua própria segurança.

Narváez preocupa-se com a aproximação das eleições nacionais, previstas para novembro. “É um ano que gera muitas incertezas em geral e de grande risco para o exercício do jornalismo neste país. Não haverá observação nacional e internacional [do processo eleitoral], o que nos resta é que o jornalismo independente seja o fiscal do processo. Essa vai ser a voz, tanto no nível nacional quanto internacional”.

Não assinar matérias e não sair sozinho

Um jornalista nicaraguense, que pediu para não ser identificado por medo de represálias, disse à LJR que tomou várias medidas de segurança após 2018, como não assinar matérias e não sair sozinho em coberturas. O repórter trabalha como freelance para vários veículos, inclusive o meio digitalDespacho 505.

Quando sai para fazer uma reportagem, ele pede para que um amigo jornalista o acompanhe. E faz o mesmo pelos colegas, quando eles precisam.

“Por segurança, se acontece alguma coisa com um, o outro pelo menos pode avisar: ‘Ele foi preso, está detido em tal lugar’. E não assino algumas matérias, as que mais batem ou incomodam o governo”, explicou em entrevista.

A decisão de não assinar os textos tem efeitos no cotidiano. Além de prejudicar a carreira do jornalista, por renunciar à autoria do seu trabalho, isso dificulta o contato com as fontes, que ficam mais desconfiadas. Para piorar, segundo ele, o governo recusa-se a passar informações para a imprensa.

“As instituições fecham as portas para nós e não fornecem informações, por isso investigar um assunto fica mais difícil. E as pessoas têm medo de falar, só falam sem se identificar. Ninguém quer dar entrevista. Às vezes, não temos nada para documentar uma história”.

Perguntado se sofreu agressões ou foi assediado pela polícia em casa, o jornalista respondeu que não, que “só” havia recebido ameaças de morte. Ele destacou os impactos econômicos da repressão do governo contra a imprensa.

“Eu era do El Nuevo Diario, mas o jornal fechou em setembro de 2019, devido a muitos obstáculos e ameaças. Teve retenção de papel-jornal, mas depois surgiram outros tipos de sistemas para intimidar eacabaram fechando o jornal“, disse.

Hoje como freelance, ele afirma que não recuperou a renda e a estabilidade financeira daquela época. “Muitos meios de comunicação fecharam e isso gerou desemprego entre os jornalistas. O jornalismo na Nicarágua está passando por um verdadeiro vendaval”, completa.

O repórter teme que as violações contra a imprensa aumentem durante as eleições. “A situação vai piorar, porque não há tolerância por parte dos grupos ligados ao governo, que vêem o jornalista independente como inimigo”, diz.

Marina Estarque é uma jornalista brasileira que vive em São Paulo. Ela trabalhou para veículos como Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo, O Dia e a agência de fact-checking Lupa. Marina foi correspondente no Brasil para a emissora internacional da Alemanha, a Deutsche Welle, e repórter de rádio para a DW África na Alemanha. Ela também foi repórter da Rádio das Nações Unidas em Nova York e do jornal espanhol La Voz de Galicia. Marina é mestre em edição jornalística pela Universidade da Coruña (Espanha) e graduada em jornalismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Este artigo foi publicado originalmente na LatAm Journalism Review, um projeto do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas (Universidade do Texas em Austin). Todos os direitos reservados ao autor.