Por Abby Rabinowitz | Columbia Journalism Review 

No verão de 2018, a revista americana Esquire resumiu o estado de espírito da mídia dos Estados Unidos em uma matéria intitulada “Quando o fim da civilização é o seu dia de trabalho”. O tema era o trauma vivido por cientistas especializados em clima. 

Naquele verão, a National Oceanic Atmospheric Administration relatara outro salto nas concentrações de CO2 na atmosfera, e seu chefe interino – nomeado por Donald Trump – tinha expurgado a palavra “clima” da declaração que apresentava a missão da agência. As notícias sobre o clima eram assustadoras. 

Foi nesse cenário que estreou o podcast sobre clima “Mothers of Invention”. Ele parecia apresentar uma realidade alternativa e melhor. A condução ficou a cargo de Mary Robinson, a primeira mulher presidente da Irlanda e ex-Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e Maeve Higgins, uma comediante e escritora irlandesa.

E suas entrevistadas, mulheres e meninas em grande parte do Hemisfério Sul e comunidades indígenas, mostravam como enfrentavam a crise climática com um trabalho corajoso e engenhoso.

Seu ponto de vista era a justiça climática. Entre o pragmatismo de Robinson e a leveza atrevida de Higgins, uma sensação de “acertamos” permeou cada episódio.   

Se tivesse sido lançado alguns anos antes, o “Mothers of Invention” poderia ter sido visto como uma voz climática corajosa, mas menos conhecida, como o Inside Climate News ou o Yale Climate Connections, que há muito já se concentravam em narrativas climáticas ignoradas pelos principais veículos. 

A boa notícia é que atualmente o “Mothers of Invention”, agora também co-organizado e produzido por Thimali Kodikara, já está em muito boa companhia.

Exemplos inspiradores

No ano passado, uma série de novos podcasts climáticos focados em soluções foi lançada com algum destaque. Eles incluem How to Save a Planet, Temperature Check e A Matter of Degrees. Seu objetivo, de acordo com os criadores, é ajudar os ouvintes a “ver as alavancas de poder por trás das mudanças climáticas – entender como se capacitar”. 

Há também novos esforços dos grandes impressos, como o Soluções Climáticas, do Washington Post, e o Soluções Climáticas: Um relatório especial. do New York Times.

E também o Bloomberg Green, orientado para soluções, cujo editor, Aaron Rutkoff, quer que represente para o tema das mudanças climáticas o que a Wired significou para a era pontocom e a Rolling Stone, para o rock ‘n’ roll dos anos 1960.

 

Retrato da realidade e das possíveis soluções

Um número crescente de meios de comunicação dos EUA está se concentrando não apenas nas ameaças ou nos impactos das mudanças climáticas, mas – finalmente – no que se pode fazer a respeito.                 

O novo jornalismo ambiental de soluções retrata a realidade e a importância das mudanças climáticas e avança a partir daí.

Maior número de matérias mudou o foco

O novo enfoque pode ser atribuído a um aumento generalizado das reportagens sobre o tema nos principais veículos globais. O britânico The Guardian, que tem parceria com a Covering Climate Now, indicou o caminho com seu podcast e campanha de 2015, A Maior História do Mundo

No New York Times, que criou uma editoria de clima em 2017, o número de matérias sobre o tema tem crescido em linha com o aumento das temperaturas globais médias.

O mesmo, porém, não pode ser dito para todos os meios de comunicação. No Wall Street Journal, as notícias sobre o clima praticamente se estabilizaram desde 2000, de acordo com dados do Observatório de Mídia e Mudanças Climáticas da Universidade do Colorado. E a cobertura de notícias na televisão continua insuficiente.

Busca de novos ângulos e de soluções

Mas o crescimento geral da cobertura climática não é a única razão para a mudança. Elizabeth Kolbert, repórter de clima da revista New Yorker, acha que outros dois fatores influenciam o novo enfoque: a busca de novos ângulos e a sensação ruim causada por só se falar dos problemas.

Citando experiências pessoais, Kolbert acha que os alertas de que o mundo está ficando mais quente e o que isso pode causar são o “tipo de matéria difícil de continuar escrevendo”:

“Você poderia escrever sobre isso todos dias, mas não é mais novidade.”

Ela ressalta a sensação geral de que os leitores acham as notícias sobre o clima deprimentes, o que contribui para o segundo fator:

“Ok, isso é ruim. Então, o que vamos fazer a respeito?’”

Superando as eras do “É Real” e “É Ruim”

Podemos estar saindo da breve e intensa era “É ruim” do jornalismo climático, chamada de “condenação” por Rutkoff, da Bloomberg Green, e pelo cientista climático Michael Mann.

Losing Earth, de Nathaniel Rich, contou a história de como os Estados Unidos não tomaram as medidas necessárias sobre o clima em 1980, quando o mandato científico para fazê-lo era mais do que claro.

The Uninhabitable Earth, de David Wallace-Wells, que se originou de seu ensaio viral na New York Magazine em 2017, apresentou uma ladainha de pragas.

O ensaio do romancista Jonathan Franzen na New Yorker – cujo subtítulo alertava os leitores para um “apocalipse” inevitável – atraiu uma ira particular por seu suposto derrotismo perigoso – e o “privilégio masculino branco de desistir”, segundo a arquiteta Rhiana Gunn-Wright, do Green New Deal (uma nota do editor anexada à matéria mencionou que ela descaracterizou o consenso científico em torno de um “ponto sem retorno”).

Para sermos justos, a era “É Ruim” foi em si uma reação a uma era mais longa e problemática, a era do “É Real”.  Al Gore, Bill McKibben e Kolbert, com seu livro de 2006 “Field Notes from a Catastrophe“, defenderam a existência e a centralidade da mudança climática, combatendo a negação desenfreada da direita.

“Houve muitos relatos sobre como era ruim”, disse o cofundador do Gimlet Alex Blumberg, que é co-apresentador de How to Save a Planet com a dra. Ayana Elizabeth Johnson. Esse tipo de abordagem, acrescenta, era necessário.

“Mas minha pergunta era: o que devemos fazer a respeito? Devemos apenas jogar nossas mãos para o alto e morrer? “

Focar em soluções não é só uma decisão editorial

Focar em soluções climáticas não é apenas uma decisão editorial ou melhor prática psicológica. É uma resposta a soluções políticas, técnicas e de negócios reais, que amadureceram de forma quixotesca durante o governo Trump e deram novas histórias para contar aos jornalistas especializados em clima.

Considere aquele verão condenável de 2018 e tudo o que ainda não tinha acontecido. A temporada de incêndios florestais mais letais na Califórnia ainda não havia ocorrido. O influente 1,5 Degree Report das Nações Unidas, com seu profundo prazo de descarbonização, ainda não havia sido divulgado, galvanizando ainda mais o recente movimento pelo clima, que estava ganhando força, mas ainda não havia mostrado sua musculatura política.

O movimento climático Sunrise, então com um ano de idade, ainda estava a meses de distância do protesto no escritório de Nancy Pelosi, que rapidamente se tornou viral. Isso oxigenou os movimentos de protesto e fortaleceu ainda mais a vontade política, ajudando a colocar a mudança climática no centro da agenda do presidente Biden.

Em termos de tecnologia, mesmo que o presidente Trump tenha sido eleito com base em promessas aos trabalhadores do carvão, a energia solar era mais barata em muitos mercados, pressagiando saltos notáveis ​​na energia renovável que poderiam viabilizar em grande parte os planos de Biden para uma rede elétrica livre de carbono até 2035 (de acordo com dois importantes estudos retratados em How to Save a Planet).

Acrescente a isso as tecnologias nascentes e criativas de emissões negativas, como o biochar (carvão vegetal) e a captura direta de ar, que estão atraindo o interesse de novas empresas.

US$ 10 trilhões em energia renovável até 2050

Rutkoff, que edita a Bloomberg Green, vê um grande fluxo de capital fluindo em uma transição global para uma economia de energia verde. Em uma carta de boas-vindas à revista, lançada em Davos em janeiro de 2020, John Micklethwait, editor-chefe da Bloomberg News, escreveu que US$ 10 trilhões serão investidos em energia renovável até 2050.

“Em última análise, quando falamos sobre jornalismo de soluções, estamos falando sobre contar essa história”, diz Rutkoff.

Jornalismo de soluções não é só de boas notícias

Mesmo assim, soluções não significam boas notícias, Rutkoff esclareceu, mas sim avaliar soluções climáticas (o financiamento de uma usina de captura direta de ar, digamos) com o mesmo rigor de qualquer matéria de negócios.

Isso também pode significar o tipo de jornalismo que obriga bancos de Wall Street e empresas de combustíveis fósseis como a Exxon a contabilizar seu carbono e estimula o escrutínio dos investidores – o que Rutkoff apelidou de “jornalismo de emissões”, em que o velho mote “siga o dinheiro” das investigações financeiras é substituído por “siga as emissões”.

A decisão de cobrir as soluções climáticas não significa argumentar que elas vão funcionar, são adequadas ou mesmo que as mudanças climáticas podem ser de alguma forma “resolvidas”. Kolbert, cujo livro recente Under a White Sky lança um olhar cético sobre abordagens como a captura direta de ar e geoengenharia, aponta que mesmo se reduzirmos as emissões globais a zero amanhã, o planeta continuará a aquecer por algum tempo indeterminado, levando a mais incêndios, furacões, derretimento do gelo, aumento do mar e danos.

“É por isso que não acho a palavra ‘solução’ apropriada”, diz ela. “Neste ponto, só podemos tentar minimizar o perigo.”

Pode ser difícil conciliar uma abordagem de cobertura voltada para soluções com a urgência e a enormidade da crise climática.

“O otimismo parece um pouco Poliana, tipo, ‘Oh, vamos consertar isso’”, diz Kendra Pierre-Louis, repórter do How to Save a Planet.

A linha que o programa tenta manter, diz ela, “é, quando dizemos que uma coisa pode ser feita, é uma coisa que pode ser feita”. Na década de 1950, ressalta, não tínhamos a tecnologia para alimentar uma rede nacional com energias renováveis. Agora podemos.

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Narrativa impulsionada pelos mais afetados

As soluções climáticas podem apresentar uma solução técnica, como o esforço bem-sucedido do ativista climático indígena Wahleah Johnspara de levar energia solar a famílias da Nação Navajo.

Mas a narrativa sempre gira em torno de um movimento em direção à equidade e à biodiversidade. E impulsionado pelas pessoas mais afetadas pela crise climática, começando com as mulheres, como Mary Robinson, do “Mothers of Invention”, repetidamente apontou (daí o slogan do programa: “A mudança climática é um problema criado pelo homem – com uma solução feminista!).

Desta forma, o programa em si é uma solução climática, convidando “mães” – principalmente mulheres de comunidades raramente ouvidas pela mídia e muito menos apontadas como solucionadoras de problemas – para compartilhar suas melhores práticas. Elas participam não apenas como convidadas, mas como coapresentadoras. E as ouvintes são incentivados a se verem também como mães.

Thimali Kodikara, que também escreve a estratégia editorial e de impacto social do programa, afirma:

“Com o ‘Mothers of Invention’ estou tentando construir uma cultura de movimento. Não temos tempo para mais nada e todos precisamos assumir a responsabilidade. ”

Evidências x Hipóteses

O “Mothers of Invention” é um experimento que complica qualquer ideia de jornalismo tradicional. Mas, em certo sentido, o mesmo acontece com todo jornalismo de soluções climáticas.

Classicamente, os repórteres gostam de relatar coisas que aconteceram, com evidências. As soluções climáticas exigem que os repórteres relatem coisas que podem acontecer, com hipóteses. Escrevendo sobre soluções climáticas, até jornalistas da velha escola dançam com a ficção científica.

O título do livro recente de Kolbert, por exemplo, é derivado de previsões de que a geoengenharia, também conhecida como gerenciamento de radiação solar, poderia tornar branco o céu azul.

Ninguém está jogando com segurança no jornalismo ambiental. Menos ainda Rutkoff, que pediu a Kim Stanley Robinson, escritor de ficção científica e autoproclamado esquerdista americano, que escrevesse um ensaio encerrando cada revista trimestral.

Nesses ensaios, Robinson diz que está “tentando persuadir os capitalistas a fazerem uma transição rápida” para uma “civilização descarbonizada em equilíbrio sustentável com a biosfera”, usando termos e lógica que considera aceitáveis:

“Na verdade, você não pode fazer lucrar enquanto o mundo é destruído e as pessoas estão com raiva de você. ”

A moeda de carbono

Para os tópicos dos ensaios, Robinson baseou-se em seu recente romance utópico-realista sobre o clima, The Ministry for the Future, que fez parte da lista de leitura de 2020 do presidente Obama.

Em um deles, Robinson sugere “a moeda do carbono”, mais formalmente chamada de flexibilização quantitativa do carbono – um instrumento econômico experimental que, apoiado pelos bancos centrais, pagaria às pessoas pela captura de carbono da atmosfera. No ensaio, Robinson afirma:

“Temos que mudar, porque a direção que estamos tomando agora leva ao desastre. E essa mudança terá que envolver descobrir maneiras de nos pagarmos para fazer um bom trabalho”.

No livro, na esteira de perdas graves, a moeda de carbono corrige a principal falha de mercado do capitalismo e salva a civilização humana.

Futuro criado coletivamente

Não é possível remover o branqueamento dos recifes de coral ou desfazer o fogo. Mas em sua forma mais progressiva, o jornalismo de soluções climáticas busca um futuro criado e imaginado coletivamente.

Nesse sentido, Kodikara, do programa “Mothers of Invention”, menciona um miniepisódio de oito minutos em que todos no programa – principalmente, mulheres negras e pardas e pessoas em não conformidade com seu gênero – expressaram suas visões para um “futuro seguro para o clima”.

A partir delas, Kodikara elaborou um roteiro ambientado nos Estados Unidos em 2032, logo após a eleição do primeiro presidente indígena.

O programa foi ao ar no dia seguinte às eleições de 2020. Kodikara conta que queria acalmar as ansiedades – dar a todos “algo pelo que marchar”.

Outro epidódio marcante do programa fala de quando um pé de tomate cresceu perto de sua varanda. Enquanto ela e uma amiga observavam a planta, um homem em uma cadeira de rodas apareceu, pegou os tomates e os comeu como se fossem doces.

“Seria incrível se qualquer um de nós pudesse colher vegetais e frutas caminhando até a casa de um amigo”, diz ela:

“Seria absolutamente uma mudança de vida! Você quase pode ver esse futuro crescendo ali – não mais louco do que qualquer outra coisa que aconteceu desde 2016″.


Este artigo foi publicado originalmente na Columbia Journalism Review e está sendo republicado aqui como parte da Covering Climate Now, uma colaboração jornalística global destinada a ampliar e aprimorar a cobertura da imprensa sobre a emergência climática. 

 
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