A decisão do prefeito de Londres de manter a obrigatoriedade do uso de máscaras nos transportes públicos a partir da próxima segunda-feira, quando oficialmente elas deixam de ser compulsórias em todo o país, é mais um capítulo da confusão que se estabeleceu no Reino Unido desde a semana passada, quando o dia 19 de julho foi confirmado como o “Dia da Liberdade”.  

Apesar de o número de casos e mortes estar aumentando no país, o primeiro-ministro Boris Johnson confirmou em um pronunciamento à nação no dia 5 de julho que todas as medidas de isolamento social seriam suspensas no dia 19. E reconfirmou na última segunda-feira.

Mas Johnson adotou um discurso ambíguo sobre as máscaras, recomendando o uso mas deixando a critério de cada um a decisão sobre usá-las ou não. A comunicação truncada desencadeou uma discórdia que só aumenta. 

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Muitos temem uma “guerra cultural”, com pessoas de máscaras sendo hostilizadas, ou cobrando de outras a proteção se estiverem em locais fechados. 

Os jornais têm refletido a confusão, usando palavras como “caos” e “bagunça”.

Opinião sobre máscara virou indicativo de postura política

Desde que a nova política foi revelada, já tem sido comum em Londres encontrar pessoas em lojas ou supermercados sem a máscara, embora elas ainda sejam obrigatórias, indicando que depois do dia 19 a adesão deve diminuir ainda mais. 

Na mídia e nos relacionamentos pessoais, a pergunta recorrente passou a ser: “Você vai usar máscara mesmo quando não precisar?”.

Virou um teste de personalidade e de ideologia, com a resposta indicando se a pessoa é conservadora, progressista, a favor da liberdade individual ou adepta do controle do estado sobre os cidadãos.

Médicos e entidades como a Associação Médica Britânica reprovaram a decisão. Alguns assessores científicos do próprio governo, como o professor Chris Whitty, uma das faces mais conhecidas da pandemia entre os britânicos, afirmou que continuará usando. 

Abaixo, o tweet do prefeito de Londres, Sadiq Khan, decretando obrigatoriedade de uso de máscaras nos transportes públicos da cidade:

Prefeitos se posicionam contra afrouxamento das regras

O prefeito londrino não foi o único a se rebelar contra a medida. Em Manchester, o prefeito Andy Burnhan, um dos críticos mais ferozes da política nacional de combate ao coronavírus, também ameaça tornar as máscaras obrigatórias na cidade.

Em uma entrevista de rádio, ele disse: “O dia de liberdade de um é o dia de medo do outro”. 

Na Escócia, a primeira-ministra Nicola Sturgeon anunciou nesta quarta-feira (14/7) a decisão de manter as máscaras compulsórias em locais fechados. 

Johnson está cada vez mais isolado, com seus ministros mais próximos defendendo sua posição, e um número crescente de setores da sociedade abertamente contrários — inclusive boa parte da população, que segundo pesquisas gostaria que as medidas de isolamento continuassem. 

Um quarto dos britânicos quer máscaras permanentemente em locais fechados

Uma nova pesquisa do instituto Ipsos MORI em conjunto com a revista The Economist revelou que a grande maioria no Reino Unido acha que as máscaras faciais devem permanecer obrigatórias nas lojas e nos transportes públicos por um determinado período após 19 de julho, embora não para sempre.

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Sete em cada dez (70%) desejam que isso continue por um mês após 19 de julho, enquanto dois em cada três (64%) gostariam que continuasse até o coronavírus estar sob controle em todo o mundo.

E ainda quatro em cada 10 (40%) apoiam o uso de máscaras faciais em lojas e nos transportes públicos de forma permanente. 

Usar ou não usar, eis a questão
Foto: Anna Shvets/Pexels

Na terra de Shakespeare, a nova questão que divide a sociedade tem sido tratada pela mídia com um bordão inspirado na célebre frase do escritor na peça teatral Hamlet, “ser ou não ser, eis a questão?”. A questão que agora separa os britânicos é: To mask or not to mask (usar ou não a máscara)?

Mais do que uma questão médica, a situação é decorrente de um problema de comunicação. O governo não afirmou categoricamente que as máscaras são inúteis. Mas também não obriga seu uso, nem o recomenda oficialmente. Sugere que sejam utilizadas em certas situações e não se cansa de alertar para os riscos ainda existentes, deixando um vácuo no que muitos esperam ser o papel do Estado: criar regras para o funcionamento da sociedade diante de uma situação de crise. 

A falta de clareza deixou muita gente no limbo, como empresas, por exemplo, sem saberem se obrigarão o uso em suas dependências e como fazer para que o público respeite, já que vai deixar de ser lei. Companhias aéreas como a Ryanair já anunciaram que continuarão a obrigar o uso de máscaras, assim como algumas redes de supermercado.

Já os organizadores dos festivais musicais Lattitude, Reading e Leeds disseram que não obrigarão nem recomendarão que os participantes usem máscaras. 

Conflito entre leis e regras promete gerar confusão

No transporte público de cidades onde as prefeituras locais seguirem a política nacional, a situação promete se tornar crítica.  

Na teoria, os fiscais terão o direito de pedir a uma pessoa que se recuse a usar máscara a desembarcar. Ao mesmo tempo, eles não podem discriminar cidadãos de acordo com a lei de igualdade promulgada em 2010. 

Essas situações tendem a virar conflitos, pois a obrigatoriedade é questionável. Não sendo mais uma obrigação legal, vai ser mais difícil convencer as pessoas a usá-las voluntariamente. 

Em uma entrevista à Bloomberg, a presidente do Consórcio Britânico de Varejo, Helen Dickinson, cobrou do governo direções claras sobre como as pessoas devem se comportar nas lojas a partir do dia 19. 

A dimensão da discórdia que se avizinha pode ser medida pelos resultados de uma pesquisa feita pelo instituto YouGov. O uso de máscaras em lojas e transportes públicos é a medida que os ingleses menos querem que seja eliminada, (22%), com a grande maioria (71%) achando que essa prática deve continuar após o ‘Dia da Liberdade’. Isso inclui mais da metade em cada faixa etária, chegando a três quartos das pessoas com mais de 65 anos (76%).

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