Londres – Incel Ă© uma palavra que vem das primeira sĂ­labas de involuntary celibates (celibatĂĄrios involuntĂĄrios), uma subcultura que se proliferou na internet reunindo pessoas que se dizem incapazes de encontrar um parceiro romĂąntico ou sexual — um estado que descrevem como inceldom.

E que estĂĄ inspirando episĂłdios de matança em sĂ©rie como o que chocou o Reino Unido na noite de quinta-feira (12/8), quando Jake Davison, um operador de guindastes de 23 anos, assassinou cinco pessoas na cidade de Plymouth, entre elas uma menina de trĂȘs anos e a prĂłpria mĂŁe. Depois cometeu suicĂ­dio, segundo a polĂ­cia.

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Menos de 24 depois da tragĂ©dia, o YouTube anunciou a remoção da conta do atirador. Mas foi tarde para conter a fĂșria de um personagem cujo histĂłrico de atividade na internet revela a influĂȘncia da violĂȘncia induzida pelas redes sociais, incluindo admiração pela cultura de armas americana. E partidĂĄrio de uma teoria associada a assassinatos em massa que jĂĄ vitimaram pelo menos 45 pessoas nos Estados Unidos.

A principal linha de pensamento dos incels Ă© nutrir um Ăłdio visceral pelas mulheres,  colocando-se como vĂ­timas e condenados a uma virgindade indesejada pelas “manipuladoras e interesseiras”.

Incitação Ă  violĂȘncia gerou remoção pelo YouTube, mas tema continua nas redes

O YouTube informou que a conta de Davison foi encerrada da plataforma por violar sua polĂ­tica de comportamento offline.  As regras proĂ­bem conteĂșdo que incite Ă  violĂȘncia, incluindo encorajar outras pessoas a ir a um determinado lugar para cometer agressĂ”es ou cometer atos violentos em um determinado momento, disse a empresa.

O Google anunciou estar trabalhando rapidamente para remover vĂ­deos que violam suas polĂ­ticas, uma vez sinalizados.

No entanto, muitos outros perfis que dão espaço para as teses do movimento continuam ativos nas redes, incluindo no Brasil.

No Reino Unido, a organização Center for Countering Hate alertou para o risco de vĂ­deos que estĂŁo circulando na internet referindo-se a Jake Davison como um “novo herĂłi”, e referendando seu ato em Plymouth. Um apoiador escreveu nos comentĂĄrios: “isso Ă© o que acontece quando vocĂȘ tira o poder dos homens; nĂŁo aprovo o que ele fez mas isso vai continuar acontecendo”.

Incel associado a mais de 45 mortes nos EUA 

O Reino Unido estĂĄ pouco habituado a assassinatos coletivos, que se tornaram comuns nos Estados Unidos. O Ășltimo caso havia ocorrido hĂĄ 11 anos, quando o taxista Derrick Bird matou 12 pessoas em Cumbria. E tudo indica que foi a teoria incel a interromper a calmaria em solo britĂąnico na noite de uma quinta-feira, em meio ao perĂ­odo de fĂ©rias escolares.

Desde a sexta-feira, incel estå entre os trending topics das redes sociais no país, que tenta entender a desgraça e questiona o motivo de o atirador ter tido seu porte de armas devolvido em dezembro, depois de frequentar um curso para controlar a raiva. E cobrando das plataformas digitais ação mais rigorosa para conter a disseminação do movimento, que vem sendo associado por muitos a um tipo de terorismo.

As comunidades incel tĂȘm sido criticadas pela mĂ­dia e pelos pesquisadores por serem misĂłginas, encorajarem a violĂȘncia, espalharem extremismo e por radicalizarem seus membros.

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Elliot Rodger, um homem de 22 anos, tornou-se uma “figura espiritual” do movimento incel quando assassinou seis pessoas em Isla Vista, CalifĂłrnia, em 2014.

Antes, ele havia postado um  vídeo no YouTube descrevendo seu ataque e os motivos pelos quais se vingar das mulheres que o rejeitavam.

Em abril de 2018, um homem de Toronto chamado Alek Minassian postou no Facebook: “A rebeliĂŁo Incel jĂĄ começou … Todos saĂșdem o Supremo Cavalheiro Elliot Rodger!” Pouco depois, ele dirigiu uma van por uma rua movimentada, matando 10 pessoas.

Alex Minassian atropelou pessoas com uma van no Canadå. (Reprodução/LinkedIn)
Racismo e misoginia, valores da cultura incel

As discussĂ”es nos fĂłruns incel sĂŁo caracterizadas pelo ressentimento, misoginia, misantropia , autopiedade, auto-Ăłdio, racismo e pelo endosso da violĂȘncia contra pessoas sexualmente ativas.

Os seguidores acreditam que não hå possibilidade de encontrar um parceiro de quem obter amor, validação ou aceitação.

O Southern Poverty Law Center, organização americana sem fins lucrativos, descreveu a subcultura incel como “parte do ecossistema supremacista masculino virtual”, que estĂĄ inclusa na sua lista de grupos de Ăłdio.

Neste vídeo, o médico americano Todd Grande explica o que é a teoria.

O Ășltimo vĂ­deo: “Exterminador do Futuro”

Em seu Ășltimo vĂ­deo postado no YouTube em 28 de julho, Jake Davison segue o roteiro do movimento. Ele passa 11 minutos reclamando sobre como sua vida chegou a um beco sem saĂ­da, enquanto lutava para atrair mulheres ou perder peso:

“Estou abatido e derrotado pela vida de merda. Aquele entusiasmo que eu tive um dia acabou.”

O atirador chegou a dizer que gostava de pensar em si prĂłprio como um “Exterminador do Futuro”.

“Toda a premissa dos filmes Exterminadores é que vocĂȘ sabe que tudo estĂĄ armado contra vocĂȘ, nĂŁo hĂĄ esperança para a humanidade, estamos Ă  beira da extinção, essas mĂĄquinas sĂŁo mĂĄquinas de matar que nĂŁo podem ser derrotadas, nĂŁo pode ser enganadas. Mesmo assim a humanidade tenta lutar atĂ© o fim.

E reclama de sua trajetĂłria, que teria sido afetada por uma lesĂŁo no tornozelo que o fez “continuar na mesma casa, na mesma situação, na mesma posição”.

O vĂ­deo tem vĂĄrias alusĂ”es aos fundamentos da teoria incel, como a reflexĂŁo de que outros homens tĂȘm esposas e filhos.

Ele deixou clara ainda a sua dificuldade de interação social:

“Estou socialmente isolado, nĂŁo tenho cĂ­rculo social e nĂŁo conheço nenhuma garota. Estive em ambientes dominados por homens durante a maior parte da minha vida.

A Ășltima garota com quem falei foi quando eu tinha 18 anos, a menos que vocĂȘ conte as caixas e atendentes de supermercado”.

PĂ­lulas do filme Matrix inspiram movimentos

Jake Davidson tambĂ©m disse em vĂ­deos que estava “consumindo a overdose de blackpill”.

O blackpill, nomeado como uma alternativa aos chamados bluepill e redpill da série de filmes Matrix, é uma perspectiva fatalista centrada na crença de que o sucesso com o sexo oposto é determinado pela genética no nascimento.

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A partir de 2016, os fĂłruns misĂłginos da incel começaram a mudar de uma “pĂ­lula vermelha” para uma mentalidade cada vez maior de “pĂ­lula preta”.

Esse sistema de crenças aceita a visão da Red Pill (da sociedade dominada por mulheres), mas rejeita as tentativas de nível individual, como o jogo de aprendizagem para conseguir um relacionamento sexual com mulheres, afirmando que apenas a mudança em um nível social tem a possibilidade de ser eficaz.

Cena do filme Matrix, onde personagem escolhe entre as pílulas azul (sonho) e vermelha (realidade). (Reprodução)
Incel adapta teoria da “pĂ­lula vermelha” para a “pĂ­lula preta”

Segundo o think tank americano New America, a “pílula vermelha” tornou-se uma estrutura para os indivíduos descreverem seu despertar para alguma suposta realidade anteriormente oculta.

Os principais movimentos contemporĂąneos de supremacia masculina secular — PUAs, ativistas dos direitos dos homens, The Red Pill e Men Going their Own Way (MGTOW) —  usam essa terminologia para descrever sua “compreensĂŁo” de que os homens nĂŁo detĂȘm poder ou privilĂ©gio sistĂȘmico.

Em vez disso, segundo o New America, eles despertam para a “verdade” de que social, econĂŽmica e sexualmente os homens estĂŁo Ă  mercĂȘ do poder e dos desejos das mulheres (e feministas).

“A filosofia da pĂ­lula preta normalmente oferece apenas duas opçÔes para o que fazer com sua nova realidade aceita: aceitar seu destino como um incel ou tentar mudar a sociedade em seu benefĂ­cio — geralmente defendida como potencialmente alcançåvel por meio de violĂȘncia em massa e terror, nĂŁo polĂ­tica ou outros mĂ©todos de mudança”, diz o instituto.

ViolĂȘncia online e culto Ă s armas

Ao longo de vårios anos, Davison curtiu quase 800 vídeos no YouTube que apontam para uma obsessão com a cultura de armas dos Estados Unidos (EUA) e a Segunda Emenda da Constituição (que då direito ao cidadão de se armar), videogames violentos e levantamento de peso.

Em vĂĄrios desses vĂ­deos, personalidades americanas do YouTube conduzem o espectador por demonstraçÔes de armas, incluindo atirar em um ursinho de pelĂșcia e um veĂ­culo SUV com um rifle e balas de 20 mm.

Um vĂ­deo da mostra de armas dos EUA inclui um vendedor exibindo uma pistola inspirada no ex-presidente dos EUA, Donald Trump. A arma, que estava sendo vendida por US$ 3.000, tinha a frase “faça a AmĂ©rica grande de novo” inscrita na lateral.

AlĂ©m de um claro fascĂ­nio por armas de fogo, Davison tambĂ©m assistiu a uma vasta gama de vĂ­deos sobre levantamento de peso e dieta, incluindo um clipe intitulado ‘Por que sou gordo?’

Sua obsessĂŁo com peso e aparĂȘncia parece enraizada em um desejo misĂłgino por uma namorada, com vĂĄrios dos vĂ­deos curtidos por ele perguntando “por que as mulheres sempre mentem” e “por que a masculinidade tĂłxica Ă© mentira”.

A polĂ­cia britĂąnica confirmou na sexta-feira que Davison era um portador licenciado de armas de fogo.

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