Londres – Apesar ter ter recebido garantias do Taleban no dia da tomada de Cabul de que nenhuma ameaça ou represália seria realizada contra jornalistas, a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) divulgou um comunicado hoje (17/8) questionando a credibilidade do compromisso, diante do histórico do grupo extremista islâmico.

A manifestação da entidade foi feita horas antes de o Taleban conceder sua primeira entrevista coletiva à imprensa, em que assegurou que o novo governo garantirá às mulheres “os direitos previstos pela religião islâmica”. 

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Nesta terça-feira, jornalistas voltaram ao ar em um dos principais canais de TV do país, o Tolo News, mas a situação dos profissionais de imprensa locais continua sendo alvo de preocupação.

Durante a coletiva, o porta-voz do Taleban foi indagado sobre se as jornalistas mulheres seriam autorizadas a trabalhar da mesma forma que antes, mas deu resposta evasiva, dizendo que isso seria tratado à luz dos direitos das mulheres estabelecidos pelo Islã. 

O Comitê para Proteção de Jornalistas (CPJ) cobrou dos Estados Unidos (EUA) mais empenho para proteger os jornalistas afegãos, facilitando a obtenção de vistos de emergência e sua saída do país.

“Os Estados Unidos têm uma responsabilidade especial com os jornalistas afegãos que criaram um espaço de informação próspero e vibrante e cobriram eventos em seu país para a mídia internacional”, disse o Diretor Executivo do CPJ, Joel Simon. 

“O governo Biden pode e deve fazer tudo ao seu alcance para proteger a liberdade de imprensa e defender os direitos dos repórteres, fotógrafos e profissionais da mídia afegãos vulneráveis.” 

O CPJ disse ter examinado casos de quase 300 jornalistas. A entidade disse que apenas alguns conseguiram embarcar para os EUA ou outro país onde seus pedidos de visto podem começar a ser processados. E que a grande maioria dos jornalistas ameaçados permanece escondida.

Empresas de mídia pressionam governo Biden a resgatar colaboradores afegãos

Jornalistas afegãos que trabalham com The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal não conseguiram embarcar em um voo para fora do país, informou o Post hoje.

Em uma declaração conjunta enviada ao presidente Biden, os meios de comunicação pediram aos EUA que façam mais para garantir a saída do país para jornalistas e trabalhadores da mídia que apoiaram suas operações noticiosas. 

O comitê disse que há muito advoga globalmente por vistos de emergência para jornalistas em risco, justamente para evitar respostas temporárias ou improvisadas quando surgem novas ameaças. 

Taleban atende a imprensa, mas evita compromisso por escrito de resguardar profissionais

Segundo a Repórteres sem Fronteiras, em uma declarações no domingo (15/8) o porta-voz do Taleban, Zabihullah Mujahid, “escolheu suas palavras com cuidado em um momento de extrema preocupação para o pessoal da mídia no Afeganistão”. E recusou-se a assumir compromissos por escrito. 

“Respeitaremos a liberdade de imprensa, porque as reportagens da mídia serão úteis para a sociedade e poderão ajudar a corrigir os erros dos líderes”, disse Mujahid. “Por meio desta declaração à RSF, declaramos ao mundo que reconhecemos a importância do papel da mídia.” 

Ele disse ainda que se os jornalistas ficaram em casa em alguns lugares, é por causa da situação de guerra:

 “Em breve, eles poderão trabalhar como antes. Precisamos deles para ‘quebrar’ o clima de medo que atualmente reina no país.”

Quando a RSF perguntou a Mujahid sobre a possibilidade de um compromisso por escrito, ele respondeu: “Estamos em um período de transição e será melhor esperar alguns dias, mas concordo. De qualquer forma, jornalistas que trabalham para meios de comunicação estatais ou privados não são criminosos e nenhum deles será processado”. 

Há 20 anos, Taleban no poder restringia mídia do Afeganistão a propaganda

Segundo a organização, “o reinado do Taleban de 1996 a 2001 foi um período sombrio na história do Afeganistão”. Todos os meios de comunicação foram proibidos, exceto um, a Voz da Sharia, que não transmitia nada além de propaganda e programas religiosos.

Questionado pela Repórteres sem Fronteiras  sobre o destino das jornalistas mulheres, Mujahid disse:

“A sociedade afegã é muçulmana, como você sabe. A fim de estabelecer regras e decretos religiosos, tivemos muitas mortes. Jornalistas mulheres também são muçulmanas. 

Vamos, com certeza, estabelecer um marco legal para as questões do vestuário — o uso do Hijab — e para que as mulheres não sejam incomodadas na rua e no local de trabalho. 

Mas, até que essas disposições escritas sejam promulgadas, peço que fiquem em casa, sem estresse e sem medo. Garanto-lhes que voltarão ao trabalho.”

Durante avanço do Taleban, 100 veículos de imprensa pararam de operar, diz RSF

Para a RSF, as declarações do Taleban foram feitas em um contexto que se presta ao mais intenso pessimismo.

“No momento, o Taleban não está fazendo nada contra nós, mas como será amanhã?” perguntou um jornalista de Cabul. “O que acontecerá quando os estrangeiros forem embora e seu governo for instalado?”

Comunicado da RSF informa que cerca de 100 meios de comunicação pararam de operar desde o início do rápido avanço do Taleban.

E, além dos que estão na capital, cujos funcionários continuam aparecendo para trabalhar, os meios de comunicação continuam funcionando de acordo com as condições impostas pelos novos senhores do país. 

Em Kandahar, uma estação de rádio já foi rebatizada de “Voz da Sharia”, nome usado pela emblemática estação de rádio do Taleban de 1996 a 2001.

O Afeganistão tem pelo menos oito agências de notícias, 52 canais de TV, 165 estações de rádio e 190 publicações impressas (incluindo diários, semanais e mensais).

De acordo com os últimos dados da Federação Afegã de Mídia e Jornalistas, o país tem um total de 12 mil jornalistas.

O Centro para a Proteção de Mulheres Jornalistas Afegãs (CPAWJ) relata que um total de 1.741 mulheres trabalham para meios de comunicação afegãos, das quais 764 são jornalistas profissionais que trabalham nas províncias de Cabul, Herat e Balkh.

O Afeganistão está classificado em 122º lugar entre 180 países no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2021, editado pela RSF .

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