Os extremistas estão mostrando que não estão nos jogos para brincadeira. Games de estratégia ambientados em períodos históricos como a Segunda Guerra Mundial ou as Cruzadas podem ser muito mais do que um momento de diversão. Quando devidamente manipulados, podem ajudar a promover o neonazismo ou o ódio antimuçulmano.

Essa é apenas uma das estratégias identificadas por uma pesquisa britânica que mostrou como os jogos online vêm sendo cada vez mais usados pela extrema-direita para reforçar sua ideologia e construir ou fortalecer as comunidades extremistas existentes.

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O estudo, que faz parte da série Gaming and Extremism, foi realizado por pesquisadores do ISD (Institute for Strategic Dialogue), que mapearam o uso no Reino Unido pela extrema-direita de quatro das plataformas mais populares relacionadas a jogos: Steam, Discord, DLive e Twitch. No total, foram analisados quase 300 comunidades e canais ligados a radicais. 

O Steam e o Discord são serviços de distribuição digital de videogames. A DLive e o Twitch são plataformas de transmissão ao vivo dos jogos. Todos permitem a criação de comunidades e que os usuários se relacionem entre si. E é aí que mora o perigo, segundo o ISD.

Com escritórios em Londres, Washington, Paris, Berlim e Beirute, a organização luta contra o extremismo e a polarização, e afirma que os resultados da pesquisa podem ser extrapolados para uma visão global do problema.

(Stem List/Unsplash)
Jogadores de games chegam a quase 3 bilhões, a maioria jovens

Como acontece com as plataformas de mídia social, a conectividade proporcionada pelas plataformas de jogos online traz consigo uma série de riscos, permitindo que um grande número de pessoas em todo o mundo joguem, se relacionem – e possam ser influenciadas.

O potencial é enorme. A indústria dos games já supera de longe a de música e a do cinema. São nada menos do que 2,8 bilhões de jogadores em todo o mundo, a maioria deles jovens. Essa estimativa é da consultoria Newzoo, que calcula que quase três quartos (73%) dos britânicos na faixa dos 16 aos 24 anos jogam games.

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Segundo o estudo do ISD, as comunidades que congregam esses jovens aficionados pelos games online têm desempenhado um papel importante na formação da cultura contemporânea de extrema-direita.

A influência é exercida por meio de comentários, links que conduzem aos sites de grupos violentos ou pelo compartilhamento de conteúdo extremista, incluindo transmissões ao vivo.

(Aron PW/Unsplash)
Idade média dos usuários da amostra do Discord é de 15 anos

Das quatro plataformas acompanhadas, o Discord era a única que permitia a identificação dos dados demográficos dos usuários. Dos 62 casos em que os usuários informaram sua idade, 45 se identificaram como tendo entre 13 e 17 anos. A idade média da amostra foi de apenas 15 anos.

O estudo encontrou evidências de que os usuários de canais de extrema-direita no Discord são muito jovens, levantando preocupações de que a plataforma esteja sendo usada para a radicalização de menores.

Comunidades ligadas a grupos extremistas violentos

Os pesquisadores identificaram duas comunidades na plataforma do Steam ligadas a grupos extremistas violentos.

Uma delas se apresenta como afiliada ao Movimento de Resistência Nórdica (NRM), que esteve ligado a uma série de atentados a bomba em Gotemburgo em 2016 e 2017. O grupo identificado disponibiliza links para o site oficial do NRM.

A outra comunidade, com 487 membros, é ligada ao Misanthropic Division (MD), um grupo russo ativo em vários países, incluindo Ucrânia, Alemanha e Reino Unido.

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Promoção de atividades de grupos terroristas proibidos

Os pesquisadores flagraram vários compartilhamentos no Discord de imagens promovendo atividades dos grupos terroristas proibidos Atomwaffen Division e Sonnenkrieg Division. Num desses episódios, um usuário perguntou como poderia ingressar na Atomwaffen Division, mas não foram encontradas provas de que isso tenha se efetivado.

Outro exemplo claro de como as plataformas de jogos são utilizadas para compartilhamento de conteúdo extremista foi uma série de transmissões ao vivo realizadas pelo grupo nacionalista branco Patriotic Alternative.

O grupo extremista britânico reconheceu aos autores do estudo que as transmissões são uma estratégia para fomentar um senso de comunidade entre seus seguidores.

(Fredrick Tendong/Unsplash)
Organização de ataques a oponentes

No Discord e no Steam, foram observados usuários se engajando e chamando outros para participar de ataques a seus oponentes.

Segundo o estudo, trata-se de uma tática de longa data dos trolls da internet e da extrema-direita, na qual o assédio online a grupos de minorias é tratado como uma forma de jogo da vida real.

Os pesquisadores explicam que esse tipo de atividade atua como um estímulo para colocar os jovens em contato com as atividades extremistas.

No Steam, radicalismos para todos os gostos

O Steam foi a plataforma que apresentou a maior variedade de subgrupos, hospedando desde partidários de partidos políticos de extrema-direita a violentos grupos neonazistas. Nela foram encontrados as comunidades extremistas mais duradouras, algumas delas atuando desde 2016.

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Embora o acesso às informações na plataforma fosse limitado, os pesquisadores concluíram que o Steam é usado principalmente para estabelecer e fortalecer comunidades, e no caso de comunidades associadas a movimentos específicos, para direcionar os usuários para conteúdo fora da plataforma, como os sites oficiais de grupos extremistas.

Em um pequeno número de casos, os grupos usaram os jogos como um símbolo de lealdade política. Alguns promoveram jogos apoiando Donald Trump ou atacando feministas como uma forma de promover sua identidade política.

(Alexander Shatov/Unsplash)
No Discord, trolling coordenado contra minorias

A análise aponta que os grupos extremistas do Discord servem principalmente para cumprir duas funções — em primeiro lugar, fornecer espaços seguros para os jovens explorarem ideologias e movimentos radicais e, em segundo lugar, para hospedar comunidades dedicadas ao trolling online de minorias.

Esse assédio racista é baseado na cultura do fórum nacionalista branco e da supremacia branca, mas também inclui conteúdo neonazista.

As comunidades analisadas parecem ter ciclos de vida relativamente curtos, com a maioria das analisadas ​​tendo menos de um ano e menos de 100 participantes. Segundo o estudo, isso é potencialmente um reflexo dos esforços de moderação realizados pela plataforma, que tem tomado medidas nos últimos anos para encerrar canais extremistas.

DLive é o lar de influenciadores de ideologias extremas

A DLive foi apontada na pesquisa como o lar dos influenciadores que promovem uma série de ideologias extremas, incluindo os supremacistas brancos e os nacionalistas brancos.

O estudo observa que vários influenciadores extremistas trocaram voluntariamente a plataforma por alternativas como Trovo e Odysee, que ainda não impuseram moderação de conteúdo semelhante à adotada pela DLive.

Segundo os pesquisadores, isso sugere que o uso extremista da plataforma se baseia na necessidade de um local para fazer transmissões ao vivo e alcançar públicos. Uma quantidade de extremistas pareciam usar a DLive como parte de uma estratégia multiplataforma, fazendo streaming simultâneo por diversas delas.

(Caspar Camille Rubin/Unsplash)
No Twitch, menos influenciadores extremistas estabelecidos

O conteúdo do Twitch tinha foco na promoção das visões de mundo misóginas, da supremacia branca e das teorias de conspiração. No entanto, foram encontradas menos evidências de influenciadores de extrema direita estabelecidos nessa plataforma do que nas outras analisadas.

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O estudo verificou que, talvez pelo recente endurecimento das regras sobre conteúdo radical, a atividade extremista na plataforma é frequentemente caracterizada pela postagem por influenciadores de menor escala, em vez da tentativa de alcançar uma maior audiência por extremistas bem conhecidos.

Foco transnacional

Embora a pesquisa tenha sido realizada no âmbito do Reino Unido, foi encontrado um número pequeno de canais e comunidades de extrema-direita focado especificamente no público britânico.

No Discord, por exemplo, apenas um dos 24 canais analisados era voltado aos britânicos. Na DLive, somente quatorze dos 100 canais acompanhados estavam ligados às atividades da extrema direita do Reino Unido.

Além de não terem um foco geográfico específico, a maioria das contas e canais analisados tinham o idioma inglês, embora alguns canais em outros idiomas tenham sido analisados quando havia evidências claras de networking com comunidades de língua inglesa.

Por causa disso, o estudo incorporou uma análise mais ampla do extremismo em inglês, refletindo a natureza transnacional da atividade online da extrema direita contemporânea.

(Sigmund/Unsplash)
Games atuam como meio de reunir pessoas já radicalizadas

Em todas as plataformas analisadas, os pesquisadores observaram que os jogos eram usados ​​principalmente como um meio de socialização com outros indivíduos da mesma ideologia, em oposição a uma estratégia específica para alcançar e radicalizar novos públicos.

Como exemplo, o estudo cita postagens frequentes de usuários de grupos extremistas organizando partidas de jogos populares de tiro, com o aparente desejo de se conectar e compartilhar um hobby com indivíduos com ideias semelhantes.

Dessa forma, a análise sugere que nos espaços online habitados pela extrema-direita, o jogo atua como um meio de reunir pessoas já radicalizadas.

No entanto, como a pesquisa foi conduzida dentro de uma estrutura para proteger os pesquisadores de potenciais danos associados à exposição prolongada a conteúdo extremista, o estudo faz a ressalva de que os pesquisadores não se envolveram de forma proativa com qualquer das comunidades analisadas, não buscaram acesso a espaços privados de discussão e nem conversaram diretamente com os extremistas ou analisaram suas conversas durante os jogos.

Em virtude disso, o estudo conclui que é possível que esforços mais concentrados de radicalização por parte dos extremistas possam ter ocorrido durante os games, e que estes possam não ter sido capturados na análise.

De qualquer maneira, o estudo acendeu o alerta: no caso dos games, já passou da hora de virar o jogo contra os extremistas.

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