Silvia Higuera*

Após anos sob uma lei de comunicação classificada por organizações internacionais defensoras da liberdade de expressão como a mais repressiva do continente americano, o Equador segue na luta para apagar os últimos vestígios dessa norma e aprovar uma nova lei que esteja de acordo com os padrões internacionais na área. 

“Estamos lutando artigo por artigo”, disse César Ricaurte, diretor e fundador da ONG Fundamedios, em conversa com a LatAm Journalism Review.

O caminho não foi fácil. Mesmo com o fato de que a nova lei já está sendo analisada por uma comissão da Assembleia Nacional, e dos esforços da sociedade civil e de alguns membros da assembleia, para Ricaurte o que parece ser uma maioria opositora no Legislativo poderia impedir essas tentativas.

Lei aprovada em 2013 trouxe restrições à liberdade de expressão no Equador

A Lei Orgânica da Comunicação (LOC), aprovada em 2013 e promovida pelo então presidente Rafael Correa, trouxe ao Equador um dos períodos mais sombrios para a liberdade de expressão.

De mãos dadas com uma das entidades criadas pela lei, a Superintendência de Informação e Comunicação (Supercom), várias vezes foram aplicadas multas e sanções classificadas como “desproporcionais” contra jornalistas e meios de comunicação.

As decisões da Supercom foram controversas desde o início. A primeira que tomou, por exemplo, foi forçar o cartunista Xavier Bonilla ‘Bonil’ a “retificar” um trabalho. Ou, por exemplo, quando o jornal El Universo foi sancionado com uma multa equivalente a 10% do faturamento médio dos últimos três meses (cerca de R$ 1,8 milhão) por supostamente não seguir ordens do governo. Segundo a Supercom, o jornal não publicou uma réplica de uma matéria com o título exigido pelo governo.

Nos quatro primeiros anos em que esteve em vigor, foram instaurados 1.081 processos contra a mídia e jornalistas, segundo relatório da Fundamedios de 2017.

De acordo com o estudo, 675 acabaram em sanções que iam desde a realização de retificações, réplicas, entrega de cópias de programas, sanções públicas, medidas administrativas, entre outras. Segundo cálculos da Fundamedios, a Supercom arrecadou US$ 531,2 mil (R$ 2,8 milhões) com multas nesses anos.

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Foi em meio a essa situação que o ex-presidente Lenín Moreno, sucessor de Correa, propôs uma série de reformas à LOC que incluíam a abolição da Supercom. De fato, em dezembro de 2018 foram aprovadas as primeiras reformas da LOC, que incluíam a eliminação dessa entidade.

Em dezembro de 2020, foi aprovada uma nova reforma da LOC, dessa vez apenas do artigo 5º, com a qual a comunicação voltou a ser considerada um direito humano e não um serviço público. Embora essa questão tenha sido definida nas primeiras reformas, “misteriosamente” ela não foi incluída no texto aprovado, segundo Ricaurte. Ele explica que:

“O que esse pacote de reformas fez foi desativar as agências ou aspectos mais repressivos da lei de comunicação.  Desaparece todo o esquema da Superintendência, desaparecem as sanções administrativas contra a imprensa, as multas, os pedidos de desculpas. Tudo isso desaparece. Mas o resto da lei permanece.”

César Ricaurte, diretor e fundador da ONG Fundamedios. (Reprodução)

Ricaurte disse ainda:  

“Grande parte também dos problemas da lei de comunicação do ‘correísmo’ era que se tratava de uma lei extensa que tentava abordar todos os aspectos da comunicação social e entre eles havia uma série de regulamentos que não estavam de acordo com as normas internacionais.

Por isso, sempre argumentamos que o pacote de reformas do presidente Moreno, embora tenha sido muito positivo e estivesse no caminho certo, não foi completo.”

Segundo Ricaurte, faltava abordar questões relacionadas à informação pública e ao acesso a ela. Não havia regulamentação do poder do governo para ordenar os canais nacionais, nem sobre a questão de mídias públicas ou da publicidade oficial, para citar alguns pontos. “Quer dizer, ainda havia algumas lacunas”, diz o fundador da Fundamedios.

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Com a chegada de Guillermo Lasso à Presidência em maio de 2021, ele propôs revogar totalmente a LOC, conforme havia prometido em sua campanha.

 No entanto, no meio de uma discussão jurídica, algumas vozes apontaram que não era possível revogar uma lei orgânica sem haver uma nova lei. Lasso propôs a chamada Lei Orgânica de Livre Expressão e Comunicação, que pretendia substituir completamente a LOC. Tratava-se de uma lei-quadro e minimalista, segundo a definição de Ricaurte, com 14 artigos que não abrangiam o tema completo da comunicação.

Os membros da Assembleia Fernando Villavicencio e Marjorie Chávez, juntamente com a Fundamedios, apresentaram o projeto de Lei Orgânica para a Garantia, Promoção e Proteção da Liberdade de Imprensa e Comunicação, que de alguma forma buscava “complementar” o projeto enviado por Lasso, explica Ricaurte.

“Em termos gerais, é uma lei que busca mudar um modelo, um modelo de censura prévia, direta ou indireta, para um modelo de responsabilidade subsequente e um modelo de autorregulação”, disse a deputada Marjorie Chávez à LJR.

Segundo a parlamentar, “há mais de uma década temos vivido uma péssima experiência em nosso país, onde o modelo de regulação da comunicação realmente priorizava a autocensura e isso gerava diversos problemass, incluindo sanções arbitrárias e desmedidas”.

No dia 23 de agosto, a Comissão de Relações Internacionais da Assembleia Nacional, incumbida do estudo dessas leis, aprovou a unificação desses dois projetos com o objetivo de ter uma nova e única lei de comunicação.

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Para Chávez, um dos aspectos mais importantes que se destacam nesta nova lei é a contribuição da sociedade civil. Assim, o projeto foi socializado com a academia, com os estudantes, com especialistas e diferentes sindicatos, bem como com outros membros da Assembleia.  A deputada afirmou que:

“Acredito que seja uma lei bastante abrangente que atende a todos os parâmetros constitucionais nacionais, mas também a todos os parâmetros internacionais em termos de direitos da comunicação.”

O projeto de lei trata de temas como discursos protegidos, obrigações do Estado, autorregulação jornalística e também de responsabilidade subsequente, que foi baseada nas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o assunto. Também aborda a questão da proteção de jornalistas, bem como penas civis por difamação.

“Em outras palavras, o dano imaterial não deve ser de tal proporção que cause um efeito inibitório sobre a liberdade de expressão e deve ser projetado para restaurar a reputação prejudicada e não para indenizar o autor ou simplesmente punir o réu”, explicou a deputada.

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Segundo Chávez, a Comissão tem 90 dias para estudar e modificar este projeto – que atualmente tem 29 artigos – e encaminhá-lo ao plenário da Assembleia Nacional. Como acontece com a maioria dos projetos de lei, o plenário certamente fará revisões e comentários a serem reavaliados pela Comissão, que eventualmente os devolverá ao plenário para um segundo e último debate. 

Embora todo o processo possa durar nove meses, a deputada espera não só que possa ser reduzido a sete, mas também que encontre o apoio da maioria para fazer avançar uma lei que considera necessária para o país.

“Quando esses processos de lei têm um componente ideológico marcante, tende a ser mais difícil se chegar a acordos, certo? Mas esperemos que a vontade política passe também pela maturidade política e pelas necessidades de nosso país. Lembrando também que a base desse projeto é a liberdade de expressão”, disse.

Ricaurte também espera encontrar na Assembleia um aliado da liberdade de expressão, embora a veja com um pouco mais de receio. 

“Há uma vontade por parte do Executivo, de seu bloco de parlamentares e de alguns setores de realmente avançar e fazer uma lei que respeite padrões e, como o nome diz, que promova, garanta e defenda a liberdade de expressão”, disse Ricaurte. “Mas há, como eu disse, setores da Assembleia que estão muito mais próximos do governo, do partido de Correa e que preferem aproveitar a oportunidade para retroceder. E até voltar ao que era a lei de comunicação antes das reformas de Lenín Moreno”.

O que seria uma situação gravíssima, se levarmos em conta a “atmosfera melhor” que existe no país depois de eliminar “aquela imensa pressão” que vinha da presidência, ou a “violência administrativa estatal”, como a chama Ricaurte.

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Por outro lado, ele acredita que o país precisa de mais atenção em outras frentes como, por exemplo, a proteção e a segurança dos jornalistas, tema sobre o qual afirma que “nada foi feito”. O que ficou claro no sequestro e assassinato de jornalistas do El Comercio, bem como no “ataque massivo a jornalistas durante os protestos sociais de outubro de 2019”, segundo Ricaurte.

Para ele, agora é o momento certo para a chegada da nova lei. Chávez concorda.

“Acredito que seja, sim, uma coisa que o país está esperando, essa mudança de modelo. E parar de esperar que seja o Estado que te diga o que consumir, que tipo de informação consumir e em que condições, certo?”, questiona Chávez. “Acredito que o Equador está pronto para dar o próximo passo.”


*Silvia A. Higuera Flórez é uma jornalista colombiana e escreve para o Centro Knight desde 2012. Seu interesse jornalístico é a América Latina e os direitos humanos, especialmente o direito à liberdade de expressão.

Este artigo foi publicado originalmente na LatAm Journalism Review, um projeto do Knight Center Para o jornalismo nas Américas / Universidaddo Texas. Todos os direitos reservados à publicação e ao autor.  

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