Depois de uma batalha jurídica de vários anos, a Justiça australiana tomou uma decisão que afeta diretamente a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão: veículos de comunicação do país tornaram-se responsáveis pelos comentários de leitores em reportagens publicadas nas redes sociais e sites dos veículos de comunicação.

Por 5 votos a 2, o Tribunal Superior da Austrália definiu na semana passada que as empresas de mídia não são apenas responsáveis ​​pelo conteúdo escrito por seus jornalistas. Agora, elas também são “editores” responsáveis pelos comentários  feitos por seus leitores na internet.

A decisão envolve não apenas questões jurídicas e jornalísticas, e pode ter consequências de longo alcance para os usuários de internet em toda a Austrália.

Em artigo no portal de textos acadêmicos The Conversation, o professor de direito da The University of Western Australia Michael Douglas afirmou que a decisão estabelece um novo marco de responsabilidade da mídia:

“Antes, os comentários representavam apenas um risco moral. Agora passam a ser um risco legal.”


Leia também

Investigação interna do Facebook recupera post excluído e recomenda revisão na qualidade da moderação

Decisão pode responsabilizar celebridades e influenciadores por comentário de seguidor

O caso analisado pelo tribunal se concentrou na análise de comentários difamatórios publicados em páginas de empresas jornalísticas no Facebook, mas não se restringe a essa plataforma.

Suas implicações podem ser aplicadas igualmente ao Twitter, Instagram ou qualquer outra rede social. E também abrangem os sites em geral que disponibilizam seções de comentários.

Dessa maneira, o professor de direito da Sidney University David Rolph explica também no The Conversation que se qualquer pessoa na Austrália postar conteúdo na sua página de rede social ou em seu site e incentivar comentários, ela será considerada legalmente “editora” deles.

Assim, não apenas os veículos, mas também jornalistas, celebridades e influenciadores de modo geral poderão ser processados caso seus seguidores postem comentários que difamem outras pessoas – mesmo que não tenham conhecimento de seu teor.


Leia também

Texas aprova lei proibindo redes sociais de bloquearem usuários que publiquem “ponto de vista”

Restrição à liberdade de expressão pode gerar desativação das seções de comentários

O professor Rolph teme que os administradores de páginas do Facebook e Instagram possam decidir desativar os comentários completamente, ou que os donos de contas do  Twitter passem a permitir comentários de apenas algumas pessoas selecionadas.

Como os comentários representam uma parte central do modelo de negócios digitais, por ajudar a aumentar o faturamento com publicidade, o professor prevê que as organizações jornalísticas australianas terão que gastar mais dinheiro na moderação desse conteúdo.

O caso é capaz de causar tantas repercussões que as organizações jornalísticas estudam como entrar com novos recursos no Tribunal Superior do país.

Processo movido por de jovem ex-detento deu origem à decisão que afeta toda a mídia

Tudo começou com uma ação judicial por difamação contra três organizações jornalísticas movida por um ex-detento chamado Dylan Voller.

Voller inspirou a criação de uma Comissão Real em 2016 para analisar o tratamento precário por ele sofrido quando estava sob custódia num centro de detenção de jovens.

O caso gerou o interesse da imprensa, e várias matérias sobre ele foram publicadas pelos veículos jornalísticos, que depois as compartilharam em suas páginas do Facebook.

As matérias dos veículos não eram difamatórias, mas Voller alegou que alguns dos comentários dos leitores eram, e resolveu abrir o processo por difamação, não contra os autores dos comentários, mas contra a imprensa.


Leia também

Recomendação de vídeos do Facebook chama homens negros de primatas e rede social desativa recurso

Processo contra os donos das páginas e não contra os autores dos comentários

Apesar de a lei de difamação australiana dar a Voller a prerrogativa de processar os autores dos comentários, ele tomou uma decisão diferente.

Em vez disso, preferiu argumentar que as empresas jornalísticas, além de incentivar os comentários na busca por mais engajamento, selecionaram e mantiveram expostas as respostas dos leitores em suas páginas do Facebook, devendo portanto ser responsabilizadas como “editores” desse conteúdo.

Dessa maneira, o processo foi aberto contra as empresas Nationwide News, Sky News e Fairfax Media, esta última de propriedade da Nine Entertainment.

As três são donas das principais publicações que postaram as matérias no Facebook, como o The Australian e o Sydney Morning Herald, entre outros.

Voller não perdeu batalha jurídica em nenhuma das instâncias da Justiça

Em 2019, Voller obteve sua primeira vitória, na Suprema Corte de New South Wales. Ela considerou que as empresas de mídia eram de fato “editoras” dos comentários dos leitores e, portanto, eram responsáveis ​​por eles.

As empresas processadas recorreram então ao Tribunal de Apelação regional, que no ano passado, para choque das empresas de mídia em geral, decidiu pela manutenção da decisão.

O Tribunal decidiu que apesar de os comentários serem de autoria de terceiros, as empresas de mídia tinham optado por publicá-los em suas páginas de mídias sociais, o que as tornava passíveis de serem responsabilizadas por difamação.

A decisão não entrou no mérito de se o conteúdo em questão era difamatório ou não, mas apenas decidiu que as empresas podem ser de fato responsabilizadas caso ele seja.

Tal entendimento, portanto, ainda não representa um ponto final no processo de Voller, para que ele possa comemorar o pagamento das indenizações pretendidas.

Leia também

Twitter EUA lança ferramenta para bloqueio automático de mensagens de assédio virtual

Precedente perigoso pode gerar enxurrada de processos contra a imprensa

Porém, o caso Voller abre um precedente para que qualquer pessoa possa processar as empresas jornalísticas australianas por comentários difamatórios postados em suas páginas de redes sociais.

O professor Rolph explica que com essa nova conjuntura, é mais provável que um reclamante que se sinta difamado opte por processar uma empresa de mídia, como fez Voller.

Afinal, argumenta Rolph, as empresas têm geralmente mais recursos financeiros e são facilmente identificáveis, em vez de um usuário individual de rede social ou um troll, que muitas vezes se escondem atrás de pseudônimos.

Para tentar reverter esse precedente, as empresas de mídia decidiram levar o caso ao Tribunal Superior da Austrália.

Última instância manteve responsabilidade das empresas jornalísticas

Ao rejeitar os argumentos das empresas de mídia, o Tribunal Superior baseou-se na lei australiana de difamação em vigor.

Por unanimidade, os membros do tribunal concordaram que a parte que é fundamental para a publicação de conteúdo difamatório é potencialmente responsável, mesmo que outras pessoas possam ter contribuído para o conteúdo em graus diferentes.

E por cinco votos a dois, a maioria do tribunal decidiu não haver necessidade de intenção, estabelecendo que “a difamação é um erro acionável que reside na publicação para um leitor, ouvinte ou observador de um assunto que fere a reputação de outra pessoa”.

Por fim, determinou que o Tribunal de Apelação agiu corretamente ao sustentar que os atos das empresas de mídia “em facilitar, encorajar e, assim, auxiliar a publicação de comentários por terceiros usuários do Facebook as tornaram editoras desses comentários”.


Leia também

Retratado como “acomodado” no combate às fake news, YouTube diz que foco em remoção de conteúdo não basta

Empresas jornalísticas consideram entrar com novo recurso na Justiça

Preocupadas com a manutenção do precedente, as empresas de mídia estão considerando entrar com um novo recurso para apreciação do Tribunal Superior.

Outra esperança é a reforma em andamento da própria lei australiana de difamação, que pode estabelecer novos parâmetros em benefício das empresas de comunicação. Em julho, já passou a valer a norma que estabelece que um processo desse tipo só pode ser aberto mediante o envio de uma notificação prévia com prazo de duas semanas para que o acusado se defenda.

Uma outra modificação em estudo, inspirada na legislação do Reino Unido, pode fazer com que uma pessoa não possa sequer processar por difamação, a menos que tenha realmente sofrido, ou seja provável que sofra, danos graves.

Além disso, discutem-se ajustes no limite já existente de danos por perdas não econômicas, que devem fazer com que as indenizações sejam menores.

Outro ponto é o estabelecimento de um prazo para a entrada do processo. De acordo com as leis existentes na Austrália, considera-se a renovação da data de publicação a cada vez que ela é baixada da internet, o que faz com que os editores digitais estejam sob ameaça perpétua de serem processados.

Leia também

Post mais visto no Facebook no 1º trimestre turbinou movimento antivacina; empresa omitiu relatório

De acordo com as mudanças propostas, o prazo passará a correr quando a matéria for postada pela primeira vez, e o prazo para demandas se esgotará num período de um a três anos, de acordo com cada caso.

Mas até que novas decisões sejam tomadas no âmbito judicial ou legislativo, a decisão do caso Voller continuará tendo repercussão geral.

“Mídia pode não gostar de ser responsabilizada, mas outros gostarão”

Para o professor Douglas, da University of Western Australia, o caso Voller responsabiliza a mídia por uma nova classe de omissões, capazes de causar tantos danos quanto os atos intencionais:

“O tempo todo nós responsabilizamos os políticos pelo que deixam de fazer. No caso da mídia, ela pode não gostar de ser responsabilizada por se omitir no caso dos comentários, mas outros gostarão.”

Douglas afirma que se a situação não for revertida, os veículos australianos terão que tomar o máximo de cuidado ao publicar matérias polêmicas:

“Conteúdo provocativo inspira comentários provocativos”

Leia também

Parlamentar da Austrália paga anúncios de teoria da conspiração sobre controle da “elite globalista”