Londres – Era para ser uma festa verde, em que as maiores potĂȘncias globais dariam as mĂŁos e anunciariam em Glasgow o compromisso de conter as emissĂ”es de carbono para limitar o aumento da temperatura do planeta a 1,5Âș, com a bĂȘnção da respeitĂĄvel rainha Elizabeth II.

Mas o roteiro planejado para a COP26 nĂŁo estĂĄ se confirmando na vida real.

Uma atmosfera de pessimismo embaça o brilho da cĂșpula que começa neste domingo (31/10) sem a presença da monarca e com a EscĂłcia inundada por fortes chuvas nos Ășltimos dias – interpretadas como castigo divino aos malfeitores do clima ou sinal de que a mudança climĂĄtica deve ser levada a sĂ©rio.

O Primeiro-Ministro Boris Johnson fez um discurso apocalĂ­ptico na vĂ©spera da conferĂȘncia organizada pela ONU, dias depois de assustar criancinhas com um tom dramĂĄtico sobre o futuro e de afirmar que reciclagem “nĂŁo funciona”. 

Em Roma para participar da reuniĂŁo do G20, Johnson afirmou na sexta-feira (29) que este pode ser o fim da civilização, um retorno Ă  “idade das trevas”. E comparou o momento do mundo ao fim do ImpĂ©rio Romano. 

O mesmo tom foi adotado pelo prĂ­ncipe Charles, herdeiro do trono britĂąnico e ambientalista de primeira hora, que em um pronunciamento cobrou da sociedade “uma mudança radical da forma de viver”,  e das empresas o compromisso de reduzir as emissĂ”es. 

PorĂ©m, de estilingue ele acabou virando vidraça nas redes sociais. Foi ridicularizado e chamado de hipĂłcrita por usar um poluente jatinho para transitar entre Londres, Roma e Glasgow a fim de pedir ao mundo que faça diferente do que ele fez. 

Ativistas em marcha 

Os ativistas que começaram a se manifestar antes mesmo de as portas da reuniĂŁo serem abertas. A estimativa Ă© de que milhares deles tomem conta da cidade escocesa. 

Na sexta-feira, membros do Ocean Rebellion derramaram Ăłleo diante do centro de convençÔes em seu protesto, limpos depois por mulheres trajando um colete onde se lia “tell the truth” (fale a verdade).

A ativista Greta Thumberg chegou ao Reino Unido disposta a aproveitar todas as oportunidades.

A caminho de Glasgow na sexta-feira, fez um rĂĄpido discurso na ĂĄrea onde se concentram os bancos em Londres antes de embarcar no trem, condenando o setor financeiro pelos investimentos em indĂșstrias poluentes. 

Greta disse nĂŁo ter sido “oficialmente convidada” para a COP26, mas certamente isso nĂŁo a impedirĂĄ de constranger empresas e governos em praça pĂșblica, como aconteceu quando chegou Ă  cidade na noite de sĂĄbado, arrastando multidĂ”es. 

A turma nĂŁo estĂĄ para brincadeiras. No sĂĄbado, um discurso do presidente da conferĂȘnciak Alok Sharma, foi interrompido por jovens credenciados para participar da COP26.  Eles o chamaram de hipĂłcrita e usaram o grito de guerra dos manifestantes do clima: “O que nĂłs queremos? Justiça climĂĄtica”. 

SecretĂĄrio-geral da ONU alertou para risco de fracasso 

O pessimismo em torno dos resultados concretos da COP26  jĂĄ havia começado a aflorar mais fortemente na semana passada.

Em conversa com jornalistas de vĂĄrios paĂ­ses promovida pela coalizĂŁo global Covering Climate Now (da qual o MediaTalks faz parte), o secretĂĄrio-geral da ONU AntĂłnio Guterres foi sincero. Disse ainda acreditar em acordos, mas admitiu que o risco de fracasso era grande. 

 E cobrou açÔes concretas “por estarmos chegando a uma situação irreversĂ­vel”.

Respondendo a uma pergunta sobre o Brasil, preferiu nĂŁo comentar sobre a decisĂŁo do presidente Jair Bolsonaro de nĂŁo participar da COP26, seguindo outros lĂ­deres, como XI Jinping, da China.

Foto: Covering Climate Now

Mas afirmou esperar que o paĂ­s assuma compromissos com medidas que aumentem a resistĂȘncia aos efeitos das mudanças climĂĄticas.

O australiano Scott Morrison foi um dos que hesitou em participar, mas mudou de ideia e segue o conselho do secretĂĄrio-geral da ONU,  chegando a Glasgow com compromisso de zerar as emissĂ”es atĂ© 2050 na bagagem, embora sob controvĂ©rsias a respeito da capacidade de cumprir o prometido. 

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Temperatura alta e ausĂȘncia da rainha 

Pequenas alegrias como a notícia da Austrålia não foram suficientes para elevar os ùnimos, em uma semana que havia começado com dois baques para a COP26.

Primeiro veio o relatĂłrio da ONU afirmando que a julgar pelos compromissos apresentados pelas naçÔes, a temperatura vai subir 2,7% atĂ© o fim do sĂ©culo, bem distante da meta desejada pela ciĂȘncia. 

Em seguida, o PalĂĄcio de Buckingham anunciou que a rainha Elizabeth II nĂŁo iria participar por motivos de saĂșde, fazendo a conferĂȘncia perder em charme e em impacto social.

A monarca, de 95 anos, vinha mantendo uma agenda forte de eventos, que culminou com a participação em um jantar promovido pelo governo britĂąnico com grandes investidores internacionais na semana passada.  

No dia seguinte cancelou uma viagem sob a alegação de que os mĂ©dicos recomendaram descanso, mas o PalĂĄcio de Buckingham sinalizou que ela iria a Glasgow. 

SĂł que o vazamento da informação de que na verdade ela passou uma noite no hospital (sĂł confirmada posteriormente), lançou dĂșvidas sobre a ida de Elizabeth II a Glasgow. 

A confirmação de a famĂ­lia serĂĄ representada por Charles, Camilla, William e Kate frustou os que esperavam a rainha passar um pito nos lĂ­deres globais, depois de ter reclamado da falta de compromisso deles. E o plano de comunicação do PalĂĄcio, que colocou em marcha na semana passada uma “ofensiva verde” para chegar em Ăłtima forma a Glasgow. 

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Boris Johnson descrente da conferĂȘncia e da reciclagem 

Nem o primeiro-ministro Boris Johnson, que costuma adotar um tom de chefe de torcida em suas apariçÔes pĂșblicas, escapou do desĂąnimo, atĂ© mesmo em um encontro com crianças de 8 a 12 anos na segunda-feira (25/10).

O lĂ­der do paĂ­s anfitriĂŁo deve ter tirado o sono dos miĂșdos ao dizer que a COP26 nĂŁo serĂĄ capaz de proporcionar o progresso necessĂĄrio para enfrentar as mudanças climĂĄticas.

E criou constrangimentos para Tammy Steele, diretora do WWF (World Wildlife Fund) no Reino Unido, que o acompanhava na bancada, levantando propostas originais para resolver a crise.

Em comentĂĄrios improvisados, sugeriu ser preciso fazer as vacas pararem de arrotar. E levantou a ideia de que uma das formas de reequilibrar a natureza seria alimentar animais com seres humanos.

Mas o ponto alto foi a opiniĂŁo de que reciclar plĂĄstico “nĂŁo funciona”, confundindo as pobres cabecinhas que aprenderam que reciclagem Ă© uma solução importante para o clima.

https://twitter.com/davedav29426621/status/1453027192053637126?s=20

A diretora do WWF tentou contornar sem confrontar o líder da nação, emendando que além de reduzir é necessårio também reciclar.

Mas o primeiro-ministro não se deu por vencido e arrematou com um taxativo “não funciona”.

Parece piada, mas não é. Momentos assim mostram a narrativa confusa em torno das mudanças climåticas, o que não ajuda a sociedade a entender e se alinhar. E só confirma que um acordo entre países é mesmo difícil.

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Setor privado avança

Pode nĂŁo haver o pacto sonhado entre governos, mas a conferĂȘncia deixa algum saldo positivo antes mesmo de começar.

Na conversa da semana passada, António Guterres reconheceu os avanços no setor privado, que a seu ver entendeu o valor da economia verde para os negócios.

Iniciativas de empresas e ideias alternativas surgem a cada dia. Algumas atĂ© exĂłticas, mas podem inspirar polĂ­ticas sĂ©rias. 

Uma delas foi a da atriz Joanna Lumley, a divertida Patty do seriado Absolutely Fabulous, que fora das telas é uma séria ativista ambiental.

Ela ganhou as manchetes (em alguns casos, com ironia) ao sugerir um racionamento semelhante ao dos tempos de guerra, em que as pessoas teriam uma cota de pontos para consumir em itens de luxo ou viagens.

Negacionismo climĂĄtico

Entre vacas, plĂĄsticos, Ăłleo derramado e jatinhos, a imprensa tem a missĂŁo quase impossĂ­vel de explicar, cobrar e selecionar o que Ă© relevante. E dar elementos para a sociedade nĂŁo embarcar no negacionismo climĂĄtico. 

Essa missĂŁo foi reconhecida pelo secretĂĄrio-geral da ONU, que fez uma declaração de amor ao jornalismo. Disse que como cidadĂŁo, pai e avĂŽ, aprecia e valoriza o trabalho dos jornalistas que levam ao pĂșblico as verdades sobre as mudanças climĂĄticas. 


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