Londres – O caso de assédio à  jornalista esportiva italiana Greta Beccaglia, apalpada no traseiro por um torcedor durante uma reportagem ao vivo do jogo Empoli x Fiorentina em Empoli no sábado (27/11), expôs mais uma vez os abusos e discriminação a mulheres no esporte. 

Além do abusador, que foi banido dos estádios por três anos pela polícia, o jornalista que ancorava a transmissão da TV Toscana, Giorgio Micheletti,  também entrou na linha de tiro por não ter apoiado a colega, tentando minimizar o ato e evitar que ela falasse ao vivo sobre a agressão. Ele foi suspenso pela emissora na segunda-feira. 

O episódio com Beccaglia, de 27 anos, não é isolado. Em abril, a jornalista esportiva Marie Portolano fez um documentário explosivo sobre abusos sexuais no jornalismo de seu país, envolvendo diretamente um dos mais conhecidos comentaristas do esporte francês. 

Discriminação de mulheres no esporte 

Por ironia, o ataque na Itália aconteceu dois dias depois da celebração do Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher. Na partida, torcedores usavam uma faixa vermelha no rosto em apoio à campanha “dê cartão vermelho à violência contra a mulher” – mas parece que nem todos concordam com a ideia. 

O assédio a jornalistas esportivas nem sempre é físicos ou parte de torcedores – como mostrou o exemplo da falta de solidariedade de Giorgio Micheletti 

Para protestar contra a situação, na abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio a Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) fez um apelo a federações esportivas, empresas jornalísticas, profissionais de imprensa e entidades do setor pela erradicação do sexismo no esporte, incluindo discriminação e baixo acesso a cargos de liderança. 

A IFJ foi uma das entidades que condenou o ato contra Beccaglia. O secretário-geral da IFJ, Anthony Bellanger, disse:

” Somos solidários à jornalista Greta Beccaglia, que sofreu um ato inaceitável de assédio sexual enquanto fazia seu trabalho. Pedimos às autoridades italianas que identifiquem e punam todos os indivíduos que assediaram nossa colega.

Este incidente não deve ficar impune. Pedimos à mídia mundial que adote uma abordagem de tolerância zero com relação à violência contra as mulheres “

As autoridades já se mobilizaram. O homem que atacou a italiana, um torcedor da Fiorentina de 45 anos, está sob investigação. Greta Beccaglia apresentou queixa alegando violência sexual. 

A situação parecia comum à que muitos repórteres ao vivo enfrentam, com pessoas do público aproveitando as câmeras para acenar ou passar alguma mensagem. Mas a mensagem que ele enviou foi a do desrespeito, dando um tapa no traseiro da jornalista diante de milhares de espectadores e fazendo comentários abusivos, junto com outros que se seguiram a ele. 

A cena foi retransmitida por outras emissoras, e pelas redes sociais. 

Greta Beccaglia reagiu calmamente, dizendo “Desculpe, você não pode fazer isso”, e profissionalmente continuou com a reportagem ao vivo. 

Ele disse que o abusador  “primeiro cuspiu em sua própria mão dele e depois me deu um tapa, forte, violento, que doeu fisicamente”. 

Beccaglia comentou que o que mais a impressionou foi a indiferença ao redor. “Todo mundo viu, ninguém falou nada”, reclamou. 

Na segunda-feira, a polícia anunciou que o torcedor, identificado como Andrea Serrani, está proibido de participar de eventos esportivos por três anos. Em entrevista a um canal de TV, ele pediu desculpas e atribuiu o ato a uma irritação com a derrota de seu time, e não a sexismo. 

Falta de apoio à repórter vítima de abuso

O choque não veio apenas do que fez o torcedor, mas também da reação de seu colega de estúdio. Em vez de condenar o incidente, Giorgio Micheletti minimiza o ato e parece querer tentar evitar que a jornalista continuasse a falar sobre assunto ao vivo:

” Não se aborreça. Pode-se crescer com essa experiência. Vamos terminar por aqui, você pode reagir se quiser, mas não ao vivo.

Te permitiremos reagir porque determinados situações merecem às vezes algum bofetão [referindo-se ao abusador],  que se fosse dado quando era pequeno lhe teria feito crescer melhor.”

Mais tarde ele se desculpou, dizendo que “naquele momento, o único interesse era ajudar Greta”. E que queria tentar evitar “que algo pior acontecesse com ela”. 

A jornalista procurou amenizar as críticas ao colega, que tem 65 anos e 45 de profissão:

” O Giorgio se enganou, não compreendeu imediatamente a gravidade do gesto. Não o crucifiquem, ele é como um pai para mim “, afirmou. 

Mas não convenceu. A Federação de Jornalistas da Itália (FNSI) condenou o ataque e a falta de apoio de Giorgio Michelletti.

 “ Ninguém tem o direito de tocar em uma mulher sem o seu consentimento, em qualquer contexto, e ninguém deve se sentir no direito de buscar fatores atenuantes, alimentando estereótipos […] “, disse a Comissão de Igualdade de Oportunidades da FNSI.

Ricardo Gutiérrez, Secretário Geral da Federação Europeia de Jornalismo, disse:

Infelizmente, mais uma vez, este incidente mostra que precisamos aumentar a conscientização sobre a violência de gênero em todas as esferas da vida. Somos solidários com as jornalistas que sofrem assédio todos os dias. Também pedimos aos profissionais da mídia para denunciar veementemente tais ataques a suas colegas .

Jornalista suspenso 

A reação levou a emissora a assumir posição. Na segunda-feira (29), a Toscana TV afirmou em um comunicado:

“Compartilhamos com o jornalista Giorgio Micheletti a oportunidade de um momento de reflexão e de interrupção profissional na condução do programa ‘A Tutto Gol’, de forma a esclarecer os desdobramentos do fatos, reservando-nos o direito de avaliar as medidas disciplinares “.

A emissora confirmou seu apoio e solidariedade a Beccaglia, explicando que “o que aconteceu foi um assédio “:

“Se Greta desejar, estaremos ao seu lado na reclamação apresentada e esperamos que o ocorrido nos ajude, o mundo da informação e neste caso o mundo do futebol, a construir um ‘discurso’ público mais respeitoso.”

Mobilização contra o assédio nas redes sociais 

Gretta Beccaglia postou posteriormente em sua história no Instagram :

“O que aconteceu comigo não é aceitável e não deve ser repetido.

Meu assédio foi gravado ao vivo na TV porque eu estava no trabalho, mas infelizmente, como sabemos, essas coisas acontecem com outras mulheres com o câmeras desligadas, sem ninguém saber sobre isso.”

Na França, mulheres se uniram contra assédio a jornalistas

No caso da França, muita gente ficou sabendo por iniciativa da jornalista esportiva Marie Portolano. Ela produziu um documentário intitulado “Não sou uma vadia, sou uma jornalista!”, veiculado há duas semanas pela TV francesa em maio.

Portolano se disse motivada pelo assédio que ela própria sofreu, perpetrado por um dos mais renomados comentaristas esportivos do país, Pierre Ménès.

 

Mas o próprio documentário sofreu censura. O Canal +, de TV paga, onde trabalhavam tanto Marie quanto Menés, fez cortes que protegeram Ménès. Portolano aceitou para ter o vídeo exibido, mas depois mudou-se para outra emissora, a M6.

Em 2020, seis profissionais de imprensa francesas  fundaram o Femmes Journalistes de Sport. No dia seguinte à exibição do documentário, o grupo publicou uma carta aberta no Le Monde, assinada por mais de 150 jornalistas, clamando pela união de todas para que as mulheres não sejam mais discriminadas, molestadas e tornadas invisíveis, conforme exposto no documentário de Marie Portolano.

No manifesto, intitulado Mulheres jornalistas do esporte, vamos invadir o campo!, elas dizem que, como qualquer outro setor da sociedade, o esporte não pertence aos homens. E que o jornalismo esportivo não pode continuar como “um setor de homens que contratam homens para falar de homens”.

  • Matéria atualizada com a pena imposta pela polícia italiana ao torcedor que atacou a jornalista 

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