Conhecido por matérias sobre escândalos envolvendo figuras conhecidas, o New York Post virou objeto de um deles: uma jornalista demitida na semana passada entrou com processo alegando ter sido assediada sexual e moralmente pelo ex-editor, o que teria sido a causa da dispensa. 

 A ação federal foi protocolada pela ex-editora da versão digital do jornal, Michelle Gotthelf, na terça-feira (18/1).

Os alvos são o ex-editor Col Allan, o atual, Keith Pool, e a News Corp., do magnata de mídia Rupert Murdoch, a quem o jornal pertence. Allan é apontado como amigo e protegido de Murdoch.

Denúncias de assédio estão aumentando

Gotthelf afirma que Allan foi forçado a sair depois das denúncias feitas por ela em 2016.

Mas retornou como consultor em 2019 e até o fim de 2021 ajudava a dirigir o jornal, continuando a ter ascendência sobre ela.

Dois meses depois de uma conversa sobre o assunto com o atual editor, ela perdeu o cargo. 

O episódio do New York Post soma-se a uma lista de afastamentos ou denúncias recentes de má conduta sexual envolvendo líderes de veículos importantes como Bild, BBC e ABC News, muitos deles noticiados pelo próprio tabloide, que agora passa de estilingue a vidraça. 

Michelle Gotthelf começou a trabalhar no jornal no ano 2000, como repórter.

Chegou a ocupar vários cargos de destaque e era a editora da versão digital até a semana passada. Ela alega que foi demitida em represália a denúncias feitas no passado e à sua recusa de continuar sendo comandada, mesmo que indiretamente, pelo ex-editor. 

Na petição inicial, os advogados descrevem em detalhes as situações experimentadas por ela, que  não seriam um fato isolado. 

Nascido na Austrália, Allan passou mais de 40 anos liderando publicações de Murdoch em sua terra natal e nos Estados Unidos.

Ele já havia sido processado em 2009 por outra jornalista, quando fechou um acordo para encerrar a causa.

Também não é a primeira controvérsia em torno do jornal. Em 2021, uma repórter deixou o New York Post depois da publicação de uma matéria falsa sobre a vice-presidente do país, Kamala Harris.

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Jornalista diz ter sido assediada por anos

No processo, os advogados afirmam aque Gotthelf sofreu “vários anos de assédio sexual” durante os mais de 20 anos em que trabalhou no jornal.

E que teria sofrido retaliação por parte de seu então editor-chefe, Col Allan, após denunciar seu comportamento.

Ela contou que, em 2007, foi vítima de misoginia ao ter sido preterida em uma promoção ao cargo de editora. Segundo ela, isso ocorreu porque Allan lhe teria dito que “queria um homem forte no cargo”.

No documento, a jornalista afirma que a pessoa escolhida para assumir o posto era “um homem substancialmente menos qualificado, o então editor de negócios do NY Post”.

Hostilidade diária

De acordo com o processo, a partir de então Gotthelf tornou-se vítima de comportamento abusivo por parte do editor, como menosprezo diante dos colegas de redação, majoritariamente homens. 

Ela diz que Allan costumava se referir às mulheres que apareciam nas notícias como “vadias” ou “estúpidas”. Ele teria chegado a descrever uma editora do NY Post como uma “lésbica sorrateira”.

A jornalista afirma ter reclamado na época com o então executivo-chefe do jornal, Jesse Angelo. Ele lhe teria respondido não haver nada que pudesse fazer. 

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Tensão chega ao limite

Segundo Gotthelf relata na queixa, o assédio sexual atingiu seu pico em 2015. Na ocasião, Allan a convidou para um drink após o expediente, que ela aceitou por ser o chefe. 

Depois de perguntar sobre o relacionamento da subordinada com o namorado, o editor teria feito uma proposta direta para dormirem juntos, segundo ela prontamente recusada. 

 A jornalista contou que saiu imediatamente do local e depois disso o comportamento abusivo se intensificou

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De assediador a consultor

Michelle Gotthelf chegou a denunciar o caso ao RH e ao advogado da empresa. E recorreu novamente a Jesse Angelo, que dessa vez falou que o emprego dela estaria garantido e que a denúncia seria mantida em sigilo.

Porém, em 2016, Allan foi informado sobre as acusações de Gotthelf. Em seguida, ele foi “forçado” a se aposentar do NY Post, mas sem referência ao caso. 

De acordo com a ação movida pela jornalista assediada pelo agora ex-editor, vários esforços foram feitos para que a reputação dele fosse mantida.

O próprio Murdoch foi à redação anunciar a aposentadoria do amigo e protegido. Com festa, ele chamou Col Allan de “um dos editores mais destacados de sua geração”.

Mudanças não aconteceram na prática

Em 2019, Col Allan retornou ao NY Post, mas como consultor. Gotthelf diz ter recebido a promessa de que não se reportaria a ele, mas que não foi cumprida.

Allan passou a não apenas supervisionar o trabalho da jornalista, como também lhe dava ordens.

Uma delas, segundo a queixa judicial, foi um pedido para que “se livrasse” de uma matéria que acusava o presidente Trump de estupro.

Na época, Trump tentava a reeleição e Murdoch o apoiava publicamente, com o uso de suas várias empresas de comunicação e mídia.

Ao falar com seus superiores sobre a situação, Gotthelf alega ter sido aconselhada a seguir as ordens de Col Allan.

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Retaliação na forma de demissão

Na ação, Gotthelf diz que também foi orientada a “parar de reclamar” e que foi novamente preterida quando Keith Poole assumiu o cargo de editor-chefe do Post e também a supervisão do Page Six e do NYPost.com.

No final de 2021, Poole convidou Michelle para um almoço de negócios. O tema seria o contrato da jornalista, que estava próximo de acabar.

A conversa acabou girando apenas em torno da relação entre ela e Col Allan. Na ocasião, a jornalista explicou que havia sido assediada por Allan e que não queria passar por isso novamente. 

Dois meses após o almoço, em 12 de janeiro, Poole demitiu Michelle Gotthelf.

Empresa não admite denúncias de assédio

Em um comunicado divulgado à imprensa, um porta-voz do The New York Post e da News Corp se limitou a dizer que “qualquer sugestão de irregularidade relacionada às mudanças de gestão anunciadas hoje não tem mérito”.

Em entrevista ao The New York Times, Gotthelf  afirmou que “nunca quis ser notícia, mas mulheres não deveriam ser tratadas dessa forma no trabalho.”

Protegido de Murdoch havia sido processado antes

Em sua queixa, Michelle Gotthelf disse que sofreu “severa angústia mental e sofrimento emocional, incluindo humilhação, constrangimento, estresse e ansiedade”. Além da News Corp, ela busca indenizações pessoais de Allan e Poole.

O principal advogado de Gotthelf, Douglas Wigdor, já havia processado o australiano por situação semelhante.

Em 2009, Sandra Guzmán, outra jornalista assediada por Allan, processou o editor por encostar o corpo em colegas do sexo feminino. Ela também o acusou de mostrar fotos de genitálias de homens famosos às mulheres da redação.

Guzmán, que é negra e de ascendência porto-riquenha, também acusou Allan de rebaixar sua etnia.

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Por fim, ela acusou o Post de demiti-la por ter sido contrária à publicação de uma charge do então presidente Barack Obama, que foi amplamente criticada por ser racista.

O processo acabou em 2013. A NewsCorp fez um acordo com Wigdor e Guzmán.  Os termos não foram divulgados.

Histórias de assédio se multiplicam nas redações

O New York Post não costuma perdoar celebridades em encrencas públicas, incluindo jornalistas.

O ex-âncora da CNN, Chris Cuomo, virou personagem frequente em suas páginas ao longo de 2020, quando foi desligado da emissora por ajudar o irmão governador de Nova York a se defender de denúncias de assédio sexual. 

O próprio Cuomo também teve que se explicar por acusações de que teria assediado uma colega antes de trabalhar na CNN.

Na ocasião, ele admitiu ter tocado de forma inadequada Shelley Ross, então produtora da ABC News, onde os dois trabalhavam.

Na Alemanha, o grupo Alex Springer afastou Julian Reichelt, editor-chefe do Bild.

No início de 2021, Reichelt já havia sido afastado por acusações de má conduta com funcionárias e favorecimento de colegas com quem já teria tido relacionamentos íntimos.

Entretanto, o grupo voltou atrás e resolveu dar uma nova chance ao editor.

Porém, em outubro do mesmo ano, Reichelt se viu novamente no centro de investigações de abuso de poder entre ele e funcionárias da publicação, que é o maior jornal diário do continente europeu e o mais lido da Alemanha.

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