Londres – Em vez de se concentrar em derrubar fake news nas redes sociais, o combate à desinformação científica deve dar atenção aos aplicativos de mensagens privadas como o WhatsApp e Telegram e engajamento de cientistas no trabalho de checagem de fatos, a fim de expor os internautas a conhecimento confiável. 

As conclusões fazem parte de um relatório publicado pela Royal Society, tradicional instituição acadêmica britânica de promoção da ciência. Os pesquisadores analisaram a desinformação científica no ambiente digital e seus impactos.

A boa notícia é a constatação de que apesar de as teorias conspiratórias se alastrarem na internet, a confiança do público nas vacinas contra a Covid é alta, demonstrando que ações para difundir informações confiáveis podem funcionar.

Ciência contra a desinformação

A publicação “The online information environment” (em português: “O ambiente da informação online”) visa compreender o modo como a internet molda o engajamento das pessoas com relação a informações científicas.

Aparecem no estudo temas como a confiabilidade nas vacinas contra a Covid-19 e mudanças climáticas – assuntos que podem  impactar não apenas as vidas de indivíduos, mas de toda a sociedade.  

Os estudiosos britânicos examinaram como o ambiente digital de difusão de informações é construído, e como ocorre a navegação dos usuários.

No relatório, os pesquisadores definem a “desinformação científica” como “a informação apresentada como verdade factual, mas que contraria diretamente ou é refutada pelo consenso científico estabelecido”.

Esse uso é diretamente relacionado ao compartilhamento deliberado desses conteúdos, cujas consequências podem ser altamente danosas.

De acordo com o professor de matemática de sistemas do Laboratório de Estatística da Universidade de Cambridge, Frank Kelly, que assina a apresentação do relatório, é função dos pesquisadores atuar contra a desinformação.

“As instituições de pesquisa nacionais e as sociedades científicas podem reagir a novas ameaças de desinformação rapidamente fornecendo resumos precisos do que sabem.

Para isso, é necessário um melhor acesso aos dados para pesquisadores identificarem tópicos de desinformação no início de seu processo de amplificação.”

Professor Frank Kelly (Reprodução: The online information environment)

Com a emergência das mídias digitais e a veloz popularização da internet, o campo da comunicação social sofreu uma radical mudança de paradigma. Os usuários deixaram de ser consumidores passivos de informação, e passaram a se tornar eles próprios produtores. 

Em sociedades saudáveis, acarretaria somente ganhos para a democracia. Mas a presença tecnológica no cotidiano humano chegou em velocidade avassaladora, observa o relatório. 

As novas possibilidades oriundas da digitalização forma ais rápidas do que os debates éticos em torno delas e da adoção de mecanismos regulatórios. 

Conforme se argumenta no relatório, o conteúdo online pode ser usado de forma benigna ou maligna. 

Ciência ainda vence a desinformação

Mas nem tudo é negativo. De acordo com a Royal Society, mesmo que no mundo online haja uma predominância de circulação de desinformação, o seu impacto na “vida real” acaba não sendo uma regra. 

A título de exemplo, o relatório mostra que a grande maioria dos britânicos entrevistados acredita que as vacinas contra a Covid-19 são seguras, a despeito das teorias conspiratórias que circulam nas redes sociais. 

Os  três imunizantes citados – Pfizer-BioNTech, AztraZeneca e Moderna – foram avaliados como “muito seguros” ou “bastante seguros” para mais de 70% dos entrevistados.

Já com relação à ciência, mais de 61% das pessoas declarou acreditar que a web melhora o entendimento sobre ela. Desses, 14% creem melhorar “muito”, e 44% melhorar “um pouco”.

Para 61% dos entrevistados, Internet melhora o entendimento coletivo sobre a ciência (Reprodução: The online information environment)

De modo geral, o estudo aponta para a percepção de que, para a maior parte dos participantes da pesquisa, a internet teria contribuído para o entendimento das pessoas acerca de temas científicos, o que os tornaria capazes de verificar informações suspeitas.

As bolhas algorítmicas 

Outro ponto polêmico que a pesquisa coloca em xeque diz respeito às bolhas algorítmicas. 

Para o estudo, há pouca evidência de que as chamadas câmaras de eco – isto é, os locais onde se pode encontrar informações que reforcem suas crenças já enraizadas – tenham o vasto alcance que se imagina. 

Isso não significa que a Royal Society não trate as bolhas como problemáticas.

Nas palavras dos pesquisadores Amy Ross Arguedas, Craig T. Robertson, Richard Fletcher e Rasmus K. Nielsen, responsáveis por esse assunto no estudo, um grande número de investigações empíricas documentando que as câmaras de eco são menores do que comumente se supõe e uma quantidade crescente de pesquisas rejeitando a hipótese das bolhas de filtro não deve ser confundida com uma crença panglossiana [otimista] de que vivemos no melhor dos mundos”.

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O que o relatório recomenda

Apesar das ressalvas apontadas, o relatório salienta a importância da prevenção e do combate à desinformação científica. Para isso, lista uma série de recomendações práticas para que governos e sociedades contenham seu avanço. 

Entre elas, está a polêmica remoção de publicações de redes sociais, tal como aconteceu com o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump. Em vez disso se concentrar nisso, o estudo propõe apoiar os programas de checagem de fatos.

De acordo com o professor Kelly, “a verificação de fatos é especialmente importante, e essa é uma área onde a comunidade científica pode ajudar”.

A pesquisa sugere também que o combate à desinformação ocorra além das grandes plataformas de mídia social, dando maior atenção para o combate à desinformação nas plataformas de mensagem privada.

No entanto, o estudo é cuidadoso quanto a um ponto sensível quando o assunto é moderação de conteúdo:  a privacidade do usuário.

O relatório sustenta que preservar  a criptografia de ponta a ponta é essencial, defendendo intervenções que não exijam conhecimento prévio do conteúdo de uma mensagem.

Este é um dos pontos mais complexos do debate sobre moderação. Organizações dedicadas a proteger direitos das crianças e autoridades de segurança pública são contra a criptografia de ponta a ponta porque ela dificulta a identificação e punição de criminosos.

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Entre as sugestões da Royal Society para solucionar o problema dos aplicativos de mensagem estão a inclusão de mecanismos para entender como as mensagens se espalham ou para limitar o número de vezes que podem ser compartilhadas, uma opção para encaminhar uma mensagem para um fact-checker e a criação de contas oficiais para autoridades científicas.

Também recomenda-se que as redes sociais estabeleçam políticas de transparência para que pesquisadores independentes possam acessar seu universo de dados de maneira segura e compatível com a privacidade de seus usuários.

Divulgação científica contra as fake news

O estudo aponta para a importância do desenvolvimento de políticas conjuntas entre o governo e os desenvolvedores de novas tecnologias.

Isso, conforme o texto, deve vir acompanhado de uma mídia plural e de cidadãos alfabetizados digitalmente, além de amplo acesso às pesquisas acadêmicas sobre a área.

Para a Royal Society, tais medidas visam fortalecer as chamadas fontes confiáveis.

O olhar atento para as fake news não é uma iniciativa isolada da instituição britânica. Na semana passada, um painel de cientistas de vários países atualizou o “relógio do juízo final”, que desde 1947 indica o quanto a humanidade está perto da destruição. 

Entre os elementos que contribuem para os riscos estão a desinformação. 

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Para entender a desinformação

Além do estabelecimentos de mecanismos de checagem de fatos e do fortalecimento das instituições confiáveis, uma das conclusões do relatório da Royal Society é a necessidade de educação midiática. 

Os pesquisadores propuseram um glossário básico onde constam alguns dos principais conceitos em torno do tema da desinformação e classificaram os compartilhadores de desinformação científica em quatro perfis:

• Bons samaritanos: como o nome indica, trata-se das pessoas que espalham desinformação de forma inocente, realmente acreditando que estão sendo úteis.

• Aproveitadores: são aqueles que compartilham de maneira consciente conteúdo enganoso pois irão lucrar algo com isso.

Esse lucro tanto pode ser monetário, como no caso de um redator de blogs que recebe dinheiro com anúncios, quanto imaterial, como no caso de algum político que ganhe engajamento por meio do sensacionalismo. 

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• Operadores de influência coordenados: são os que estão um nível acima dos aproveitadores, pois sua produção e compartilhamento de desinformação científica visam ao benefício de suas agendas específicas, relativizando a ciência e tentando reescrever a História.

Para isso, fazem uso tanto de vozes online emergentes, alinhadas às suas bandeiras, quanto de robôs de disparos em massa. 

• Hackers de atenção: diferente do bom samaritano, esse perfil flerta com o patológico em sua ânsia por aparecer, divulgando teorias da conspiração e querendo vencer discussões online sem argumentos válidos. 

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