Um jornalista de 32 anos a serviço de uma emissora de rádio francesa foi preso e sofreu tortura por parte de soldados russos durante nove dias na Ucrânia, denuncia a ONG Repórteres sem Fronteiras (RSF), que investigou o caso e compartilhou o relato detalhado do profissional. 

Sequestrado pelas tropas russas na Ucrânia em 5 de março, Nikita (nome fictício) foi espancado com uma barra de ferro, recebeu coronhadas, foi torturado com eletricidade e até submetido a uma execução simulada.

O jornalista trabalhava para a Radio France como fixer. Fixers são profissionais locais em regiões de conflito, remotas ou com idiomas não dominados por repórteres estrangeiros, encarregados de fazer apurações, conseguir autorizações e estabelecer conexão entre o correspondente e entrevistados ou informantes.

Jornalista que sofreu tortura está escondido na Ucrânia

Nikita contou sua história de horror a funcionários do Departamento de Advocacia e Assistência da RSF durante várias sessões realizadas entre 17 e 18 de março. No momento, ele é mantido em segurança em cidade ucraniana não revelada.

O relato do profissional à ONG foi corroborado por entrevistas com um membro de sua família, com um de seus ex-companheiros de prisão e com dois jornalistas da Radio France.

Uma equipe da RSF o acompanhou durante seu exame médico na Ucrânia, que confirmaram a tortura a que foi submetido, principalmente nas pernas, marcadas por contusões e lesões ocasionadas pelos choques elétricos.

A RSF também esteve presente durante suas ligações para a família.

Embora tenha formação como advogado e gestor de empresas, Nikita trabalha regularmente como fixer e intérprete para a mídia estrangeira desde 2013.

France 2, BFMTV e RFI são alguns dos meios de comunicação para os quais ele já prestou serviços. No mês passado, quando começou a guerra na Ucrânia, ele começou a trabalhar em tempo integral como fixer, desta vez para a Radio France, que representava quando sofreu a tortura.

Entre os repórteres estrangeiros que o contrataram, os contatados pela RSF são unânimes: ele é muito profissional, sério e competente.

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A RSF começou a procurar Nikita depois de ser informada pela Radio France em 8 de março de que ele estava desaparecido.

Após sua libertação, a ONG estabeleceu contato com o jornalista da Ucrânia através do Centro de Liberdade de Imprensa, inaugurado em Lviv, na semana passada.

Por nove dias, o fixer e intérprete ucraniano de 32 anos foi feito prisioneiro por soldados russos.

Ele foi detido sozinho antes de se juntar a outros três prisioneiros, incluindo um antigo funcionário público ucraniano.

O relato de prisão de Nikita é assustador: por 9 dias, ele foi mantido refém em um porão gelado e repetidamente torturado.

Seu carro foi metralhado, ele sofreu tortura com o uso de facas e choques elétricos, foi espancado diversas vezes com coronhadas e barras de aço no rosto e no corpo, passou por execução simulada e teve privação de comida por 48 horas.

A RSF planeja encaminhar o relato do freelancer ao procurador-chefe do Tribunal Penal Internacional.

“Nikita nos deu um testemunho arrepiante que confirma a intensidade dos crimes de guerra perpetrados pelo exército russo contra jornalistas”, disse o secretário-geral da RSF, Christophe Deloire. “Passar seu testemunho ao promotor do TPI é o mínimo que podemos fazer por esse jovem e corajoso profissional.”

Embora traumatizado pela tortura, Nikita está determinado a continuar trabalhando como fixer para ajudar no direito à informação na guerra da Ucrânia. É a sua maneira de contribuir para a liberdade de seu país, disse à RSF.

Um de seus companheiros detidos está hospitalizado com ferimentos graves. O destino do ex-funcionário público é desconhecido.

O outro prisioneiro, aquele que a RSF conseguiu contatar, disse que escapou sem muitos ferimentos ou outras consequências. Quando a RSF lhe perguntou por que ele achava que eles foram libertados em vez de executados, ele respondeu: “Acho que não tiveram coragem de abrir covas”.

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Leia o relato da RSF sobre o sequestro e tortura na guerra da Ucrânia

“No dia 5 de março, Nikita acompanhou uma equipe da Radio France em uma viagem no centro do país, não muito longe da aldeia onde sua família se refugiou.

No hotel onde ficaram, soube que o caminho para a aldeia de sua família estava aberto. Como os bombardeios eram intensos na região, o jornalista decidiu fazer uma viagem rápida para ver se a família ainda estava lá e evacuá-los. Ele pegou emprestado o carro da emissora. 

Nikita foi emboscado por uma unidade de reconhecimento russa à beira de uma estrada enquanto dirigia o veículo identificado com adesivos de “Imprensa” na frente do carro. Ele relata que foi o carro foi alvejado com algo entre 30 e 40 tiros disparados por armas automáticas.

Deitado de lado, ele acelerou com o objetivo de fugir, mas bateu em uma árvore. Salvo pelo airbag, Nikita gritou que era civil, mostrou as mãos para provar que estava desarmado e saiu do carro.

Os soldados – ele contou seis deles, cada um com uma faixa branca presa em uma perna – o agarraram, jogaram-no no chão, revistaram-no e espancaram-no.

Os soldados colocaram um boné sobre os olhos do jornalista e o levaram para uma casa a poucos minutos a pé. Ao revistarem seu celular, os soldados russos encontraram informações relacionadas ao seu trabalho freelance – a busca por coletes à prova de balas e rotas seguras – que os deixaram desconfiados.

Os soldados da Rússia o levaram para fora da casa, o jogaram contra uma parede externa e ameaçar cortar seu rosto com uma faca. 

Nikita reagiu à tortura explicando que era um fixer e intérprete para jornalistas estrangeiros cobrindo a guerra na Ucrânia, mas mesmo assim foi atingido repetidamente com coronhadas de fuzil automático no rosto e no corpo.

Ele disse ter sentido pedaços de dentes na boca e tossiu sangue. Os soldados o jogaram em uma vala, ao lado de um cachorro morto, e o submeteram a uma execução simulada: um soldado fingiu que queria verificar se sua arma funcionava e disparou um tiro que atingiu de raspão a cabeça de Nikita.

Os soldados então o levaram para um acampamento na floresta, a cerca de dez minutos a pé. Com o boné puxado sobre os olhos novamente, Nikita não podia ver, mas pelo que ouviu, o acampamento parecia consistir em mais de 100 soldados, veículos blindados e artilharia.

O jornalista foi amarrado a uma árvore, teve a aliança de casamento e os sapatos roubados. Naquela tarde, os soldados bateram novamente em Nikita com coronhas de fuzil e barras de aço nas pernas.

Ele perdeu a consciência várias vezes e disse que os soldados pareciam estar fazendo isso por diversão.

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Nikita passou quase três dias na floresta, amarrado com as mãos atrás das costas às árvores. Em 6 de março, ele foi interrogado por um soldado que entendeu ser um coronel. 

Eles pararam de espancá-lo e outros civis foram amarrados ao lado dele. Um deles, que mais tarde foi libertado ao mesmo tempo que Nikita, foi contatado pela RSF e ajudou a corroborar seu relato.

Nikita, este outro prisioneiro e um terceiro foram levados em um carro blindado em 8 de março para um local a cerca de 40 minutos de distância.

Na chegada, os soldados o puxaram para fora do veículo, o jogaram no chão, um soldado sentou em suas costas e fizeram as mesmas perguntas que na floresta. Os soldados pensaram que ele era um espião que estava usando seu trabalho como disfarce.

O jornalista contou que em determinado momento, recebeu choques elétricos nas pernas. Com o rosto pressionado contra o chão, ele não conseguiu ver qual instrumento era usado, mas contou três ou quatro choques, cada um com duração de cinco a dez segundos.

A dor era tanta que cada segundo parecia uma eternidade, ele relatou. Os outros dois civis também foram torturados.

Os soldados forçaram o jornalista da Ucrânia a escrever e assinar uma carta na qual declarava apoio ao exército russo e à invasão do país. Ele e os outros dois civis foram então levados – amarrados e com os olhos vendados – para o porão de uma casa cujo piso estava cheio de água.

Eles foram deixados lá por dois dias até que, depois de implorar aos guardas que os levassem para um lugar menos frio, eles foram finalmente transferidos.

Em 10 de março, eles foram levados para o porão de outra casa, onde se juntou a eles outro prisioneiro, um ex-funcionário público ucraniano.

Em 12 de março, os prisioneiros foram informados de que seriam libertados no dia seguinte. Nikita foi solto em uma floresta depois de uma hora de carro.

Ele disse ter pensado que iriam executá-lo e fugiu. Mas não ouviu tiros e chegou a uma estrada. Depois de ser parado por outros soldados russos na estrada, ele temeu ser sequestrado novamente.

Mas o fixer conseguiu entrar em um carro de civis ucranianos. “Se você não o levar”, disse um soldado aos civis relutantes, “vamos atirar nele”.

Nikita ainda tem hematomas por todo o corpo, perna inchada e dificuldade para mover as mãos por causa dos choques elétricos. O médico que o examinou encontrou hematomas na cabeça e no corpo, inchaço na perna direita e dormência nos membros que poderia ser resultado de choques elétricos.

Observando que os ferimentos de Nikita foram infligidos pelo exército russo, o médico chegou a concluir que ele havia sofrido “trauma criminal”. Nikita agora está se recuperando. Sua família conseguiu escapar.”

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