Londres – A jornalista russa Marina Ovsyannikova, editora do Channel One, foi acusada de ser uma espiã do Reino Unido pelo chefe da divisão de notícias da emissora estatal, Kirill Kleimyonov, o que pode tornar sua situação jurídica mais complicada. 

A acusação foi feita ao vivo uma semana após Marina invadir o telejornal Vremya com um cartaz protestando contra a invasão à Ucrânia ordenada por Vladimir Putin.

“SEM GUERRA. Pare a guerra. Não acredite em propaganda. Eles estão mentindo para você aqui”, dizia a placa exibida pela jornalista, que também gritou palavras contra o conflito segundos antes da transmissão cortar para um VT gravado.

Jornalista russa é acusada ao vivo de traição por ex-chefe

Após o protesto ao vivo, Marina Ovsyannikova foi detida pelas autoridades do país. Ela disse a repórteres que passou dois dias sem dormir e foi interrogada por mais de 14 horas, sem advogado ou a oportunidade de entrar em contato com a família.

“Foi minha decisão antiguerra. Tomei essa decisão sozinha porque não concordo com a invasão iniciada pela Rússia”, disse ela em inglês ao sair do tribunal.

A jornalista foi considerada culpada por “organizar um evento público não autorizado” e multada em 30.000 rublos (R$ 1,4 mil).

Inicialmente, especialistas apontavam que Marina poderia enfrentar mais de uma década de prisão por causa da nova lei de fake news imposta pelo Kremlin e que acabou determinando a saída da mídia estrangeira e das plataformas digitais do país.

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No entanto, a acusação feita no ar pelo ex-chefe da jornalista russa indica uma nova direção para o seu destino: a acusação de traição e espionagem para outro país.

Durante o jornal de segunda-feira (21), o chefe da divisão de notícias do Channel One, Kirill Kleimyonov, alegou que Marina era uma espiã britânica.

O video foi compartilhado nas redes sociais por russos contrários aos atos do governo, como o jornalista Ilia Shepelin, que escreve para o jornal independente The Moscow Times. 

O executivo mostra recortes de jornais ocidentais noticiando o protesto, e diz:

“Pouco antes [do protesto], de acordo com nossas informações, Marina Ovsyannikova conversou com a embaixada britânica”, afirmou Kleimyonov. “Quem entre vocês teve uma conversa telefônica com uma embaixada estrangeira?

“Ser emocionalmente impulsivo é uma coisa, mas traição é outra bem diferente. E quando uma pessoa trai seu país [o faz] friamente em troca de um bônus.”

Ele ainda acrescentou: “A traição é sempre a escolha pessoal de alguém. Mas você precisa chamar as coisas do que elas são. Se tivessem chamado a traição de Judas um ato de paixão, a história teria sido diferente.”

O governo britânico rebateu a acusação e disse que Ovsyannikova “não tem relação” com Londres.

A declaração “é apenas mais uma mentira passada pela máquina de desinformação” do Kremlin, informou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do governo de Boris Johnson.

Em entrevista, jornalista russa diz que não fugirá do país

Marina Ovsyannikova deu sua primeira entrevista à mídia americana no fim de semana, explicando sua decisão de permanecer na Rússia.

Ela esperava que seu protesto ressoasse com as pessoas comuns. “É a guerra de Putin, não a guerra do povo russo”, disse ela ao programa This Week with George Stephanopoulos, da ABC.

Ela disse que não aceitou uma oferta de asilo do presidente Emmanuel Macron da França porque é “uma patriota” e teme pela segurança de seus dois filhos.

“Quero dizer a todos que o povo russo é realmente contra a guerra”, disse Ovsyannikova, acrescentando que as sanções do Ocidente estavam prejudicando os russos comuns.

Sua filha, de 11 anos, passou fome depois que o cartão de crédito de Ovsyannikova foi bloqueado.

“As severas sanções que o Ocidente está impondo a todas as pessoas provavelmente é uma decisão correta, mas você deve entender que não apenas os oligarcas e o círculo mais próximo de Putin estão sofrendo com isso”.

Ovsyannikova disse que seu protesto foi uma “decisão espontânea”, mas acrescentou que “a insatisfação com a situação atual vem se acumulando há muitos anos”.

Ela disse que esperava permanecer na Rússia apesar de perder o emprego: “Quero viver na Rússia. Meus filhos querem viver na Rússia. Não quero imigrar e perder mais dez anos da minha vida para assimilar em algum outro país.”

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Quem é a jornalista russa que protestou na TV contra a guerra

Marina Ovsyannikova, de 44 anos, produtora e editora do Channel One, invadiu no dia 14 de março o estúdio no qual uma apresentadora transmitia o telejornal noturno Vremya, com audiência estimada de 15 milhões de pessoas, com um cartaz condenando a guerra e as mentiras da propaganda estatal.

O ato foi surpreendente, pois a jornalista tem uma longa carreira na mídia estatal. E segundo perfis publicados depois que ganhou notoriedade, não tinha um histórico de combate ao governo ou de expor ideias políticas em suas redes sociais, onde exibia vida glamurosa. 

Antes do protesto ao vivo, Marina Ovsyannikova postou um vídeo se identificando como funcionária do Channel One e disse que seu pai é ucraniano e sua mãe, russa:

“Eles nunca foram inimigos. E este colar no meu pescoço [nas cores das bandeiras russa e ucraniana] é um símbolo do fato de que a Rússia deve parar imediatamente a guerra fratricida para que nosso povo ainda possa se reconciliar.

Ela nasceu em 1978 em Odessa, cidade portuária ucraniana ameaçada de ataque, e cresceu no sul da Rússia.

Na escola de jornalismo da Universidade de Kuban, estudou com Margarita Simonyan, a editora-chefe de um dos principais órgãos da mídia estatal russa, a RT (Russian Television).

Depois da invasão do estúdio, a editora da RT negou ser amiga da jornalista que furou o bloqueio da censura estatal, embora tenha admitido que a recomendou para uma vaga. 

E sugeriu que a profissional tinha um relacionamento especial com o diretor da faculdade, o que teria facilitado seu caminho para se tornar correspondente da emissora VGTK. 

Mesmo que a relação com a atual editora da Russian Television fosse mesmo distante, Marina Ovsyannikova tinha outros laços pessoais com a rede estatal: foi casada com um diretor da RT, Igor Ovsyannikov. 

Ela se tornou uma repórter popular na região e foi descrita por ex-colegas como corajosa. 

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