Deborah Berlinck, França

Paris – Boa no discurso, a imprensa francesa falhou, na prática, em cumprir a promessa de integrar jornalistas de várias origens e cores nas suas redações para espelhar a nova realidade populacional do país.

Nas TVs, rádios e jornais, os rostos são majoritariamente brancos, como no século passado. É o sotaque da capital parisiense que mais se ouve.

Praticamente não há “Mohamed” ou “Hakim” num país onde franceses de origem magrebina já somavam 4,6 milhões em 2011, nas contas da demógrafa Michèle Tribalat.

Imprensa francesa não reflete a diversidade do próprio país

Jornalistas negros são raridade. E as redações são formadas por repórteres que cresceram, na sua maioria, no meio burguês. 

Sylvia Zappi, subeditora de cultura do Le Monde e ex-representante sindical, confirma que jornalistas de origens árabe ou negra são raros nas redações, em especial na mídia impressa. 

“A chamada imprensa mais nobre, em particular a imprensa escrita, está muito atrasada. Temos que contá-los nos dedos de uma mão, ou talvez de duas, no Le Monde, no Libération. Nem falemos do Le Figaro ou da imprensa de revistas”, lamenta. 

Sylvia Zappi, jornalismo inclusivo, Le Monde

Promessas de maior diversidade na mídia se arrastam por mais de uma década. Em 2011, os principais grupos de imprensa do país assinaram a Carta da Diversidade nas Empresas – iniciativa lançada pelo governo francês em 2004.

Foi o caso de grandes veículos como Le Monde, Agence France-Presse (AFP), Amaury (Le Parisien, Aujourd’hui en France, L’Équipe), Hachette Filipacchi Associés e L’Humanité, entre outros.

Eles se comprometeram a aplicar a diversidade em todas as etapas do jornalismo, da formação de estudantes à produção de conteúdo. Mas pouco mudou.

‘Grande choque’ mostrou realidade que nem imprensa francesa conhecia

O choque de realidade aconteceu em 2005, quando uma enorme revolta estourou nos subúrbios da França, depois que dois adolescentes, Zyed Benna e Bouna Traoré — um de origem árabe, outro negro — foram eletrocutados acidentalmente em Clychy-sous-Bois, periferia pobre de Paris. Eles fugiam de uma blitz da polícia.

A revolta, que resultou numa onda de confrontos e milhares de carros queimados em todo o país, desnudou a insatisfação nos subúrbios, sobretudo de uma geração de franceses filhos da imigração, desprivilegiados, que se sentiam cidadãos de segunda categoria, estigmatizados e invisíveis.

De repente, a imprensa francesa se surpreendeu com uma realidade que mal conhecia – e no seu próprio país.

“As realidades eram conhecidas, mas eram vistas um pouco de cima para baixo, de longe. Isso nos mostrou o que as pessoas que viviam nos subúrbios periféricos e nos bairros pobres estavam passando”, relata Sylvia Zappi.

Cobertura de guerra perto de casa

Enquanto isso, a imprensa francesa agia como se estivesse cobrindo uma guerra.

“Os repórteres enviados a Seine-Saint-Denis (um dos focos da revolta) geralmente cobriam a guerra no Iraque ou nos territórios ocupados na Palestina e não os fenômenos da sociedade francesa”, lembrou o jornalista Nordine Nabili, que foi redator-chefe do Bondy Blog, criado no meio da revolta.

Sylvia Zappi conta que os jornalistas do Le Monde que iam aos subúrbios para cobrir a revolta precisaram contratar o que no jargão jornalístico se chama de “fixers”, isto é, assistentes locais que conhecem as pessoas e ajudam a marcar as entrevistas.

“Isso despertou um pouco de consciência de que não era mais possível funcionar assim. Tivemos que ir a campo para contar o que estava acontecendo”, disse.

Bondy: fonte da imprensa francesa, blog suíço vira jornal da periferia

Durante mais de um mês da revolta que mobilizou o país e foi manchete no mundo inteiro, jornalistas franceses se informavam a respeito através de um blog suíço chamado Bondy Blog.

O canal foi criado pelo então chefe da revista suíça (hoje extinta) L’Hebdo, Serge Michel, junto com Mohamed Hamidi, um roteirista e diretor de cinema franco-argelino que nasceu em Bondy, um dos subúrbios da revolta.

O objetivo era dar a palavra aos moradores destes bairros populares que não tinham voz na imprensa elitista francesa. Michel apostou no jornalismo de imersão. Em plena confusão, instalou-se em Bondy e criou uma pequena redação.

O blog foi um sucesso. A tal ponto que Michel acabou virando vice-diretor do Le Monde, anos depois.

Os suíços passaram então a formar os moradores dos subúrbios como repórteres. Alguns foram treinados durante uma semana em Lausanne, na Suíça.

Hoje, 16 anos depois, o Bondy Blog se transformou num jornal online da periferia, com 20 repórteres — nem todos jornalistas profissionais.

(Foto: Divulgação/Bondy Blog)

No final de 2013, repórteres do blog percorreram escolas de toda a França para “conscientizar os jovens sobre a mídia, torná-los observadores de sua própria realidade, incentivando-os a dar um novo passo e voltar a ser os atores de sua existência”.

Uma iniciativa que ganhou força após os ataques terroristas ao jornal satírico Charlie Hebdo de 7 de janeiro de 2015, segundo o site do jornal.

Desde 2009, o blog oferece bolsas para preparar jovens desfavorecidos para disputarem os concorridos concursos de admissão em uma das 14 escolas de jornalismo da França, em parceria com a Escola de Jornalismo de Lille. O objetivo é abrir a profissão para jovens originários das classes trabalhadoras.


Esta matéria faz parte do Especial MediaTalks Diversidade na Mídia. Leia a edição completa aqui 


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