Londres – Não é fácil navegar nas sensibilidades que envolvem a DEI (diversidade, equidade e inclusão), tema do Especial MediaTalks Diversidade lançado nesta quarta-feira (1º/6) – e a linguagem inclusiva virou uma das principais armadilhas. 

Empresas e organizações que não fazem nada ou erram ao tentarem fazer alguma coisa são castigadas na imprensa e nas redes sociais.

De tempos em tempos, empresas jornalísticas trocam de posição e entram elas próprias na linha de tiro. É o que está acontecendo mais uma vez com a BBC.

Linguagem inclusiva disparou crise  

A nova crise envolvendo a corporação começou com um erro ao tentar acertar no uso de linguagem inclusiva. Foi revelada por uma reportagem no jornal The Times, que acabou expondo outros aspectos controversos da reportagem em questão, evidenciando a dificuldade de representar grupos diversos na mídia. 

Citando “senior journalists” da empresa− leia-se “jornalistas insatisfeitos com a situação que vazarem a história” −, o jornal publicou na terça-feira (31) a notícia de que a fala de um personagem entrevistado em uma matéria para o site da rede em outubro de 2021 tinha sido alterada para se alinhar ao manual de regras que determina os pronomes para pessoas trans.

A matéria era sobre mulheres que estariam sendo pressionadas a fazer sexo com mulheres trans, com base em pessoas que participaram de uma pesquisa do grupo Get The L Out, “cujos membros acreditam que os direitos das lésbicas estão sendo ignorados por grande parte do movimento LGBT atual”, segundo a BBC.

Uma das entrevistadas relatou um suposto estupro praticado por uma pessoa trans. Ela tratou a pessoa como “he/him” (ele), mas as fontes do The Times disseram que os editores do site foram obrigados pelo comitê de diversidade a mudar as “aspas” para “they/them (eles), após “debates acalorados”.

O caso foi noticiado inicialmente pelo ângulo de interferência no noticiário por parte do grupo de diversidade da corporação, formado por 14 integrantes.

Segundo o The Times, alguns jornalistas achavam que a citação deveria permanecer intacta para refletir o que disse a mulher entrevistada, enquanto outros disseram que deveria usar os pronomes preferidos por mulheres trans conforme determina o manual de linguagem inclusiva.

As fontes da matéria do jornal (os tais “jornalistas seniores”) argumentaram que editar a fala foi um exemplo de como o guia de estilo da BBC conflita com o dever de precisão e imparcialidade.

Outra fonte, apresentada como “pessoa com conhecimento do assunto”, disse ter considerado a situação chocante, por não conseguir imaginar outra situação em que as palavras de uma suposta vítima de estupro tenham sido alteradas.

A BBC disse ser “rotina ter discussões editoriais sobre matérias”, e que a decisão sobre a linguagem inclusiva teria a finalidade de “tornar as coisas o mais claras possível para o público”.

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Problema foi além da linguagem inclusiva

 Se essa era a intenção, não deu certo. A matéria no site da BBC foi objeto de milhares de protestos e se tornou objeto de um processo interno de avaliação por parte da unidade de reclamações. No dia 4 de novembro, uma primeira correção já tinha sido feita:

“Atualização 4 de novembro de 2021: Atualizamos este artigo, publicado na semana passada, para remover uma contribuição de um indivíduo à luz dos comentários que ela publicou nas postagens do blog nos últimos dias, que pudemos verificar.

Reconhecemos que uma admissão de comportamento inadequado pelo mesmo colaborador deveria ter sido incluída no artigo original.”

Mas o caso estava esquecido, pelo menos publicamente, até a reportagem do The Times sobre a linguagem inclusiva, que era apenas a ponta do iceberg.

No mesmo dia da reportagem no jornal a BBC divulgou um comunicado admitindo que a matéria inteira “não atendeu aos padrões de precisão da emissora” em três aspectos, e informou que a reportagem havia sido “atualizada”, forma bem inglesa de dizer “corrigida”.

O motivo principal para a admissão de culpa, no entanto, não foi a troca de pronomes, e sim outro fundamento do jornalismo. Segundo a própria BBC; a repórter baseou a matéria em uma pesquisa “não científica” do Get the L Out, que afirmou que 56% dos entrevistados “relataram ter sido pressionados ou coagidos a aceitar uma mulher trans como parceira sexual”.

“Mas a unidade de reclamações da BBC concluiu que um questionário de autosseleção não era uma base suficiente para a sustentar a matéria, disse o comunicado publicado no rodapé da matéria original:

Atualização 31 de maio de 2022:

  1. A manchete do artigo foi alterada de “Estamos sendo pressionados a fazer sexo por algumas mulheres trans” à luz de uma decisão da unidade de Reclamações Executivas da BBC. 
  2. Desde a publicação deste artigo, a Unidade de Reclamações Executivas da BBC também decidiu que o artigo original não foi longe o suficiente para deixar claro aos leitores a “falta de validade estatística” da pesquisa. O artigo foi alterado para refletir essa descoberta.

A nota no rodapé tem um link para um longo documento com a análise do caso por parte da unidade de reclamações da BBC, que diz:

A principal questão de reclamação para muitos foi que o artigo apresentou um estereótipo prejudicial e negativo em relação ao comportamento das mulheres trans e, ao fazê-lo, foi transfóbico. 

E finaliza com o veredito: 

O chefe da ECU entendeu que a matéria, embora seja legítimo como jornalismo em geral, estava abaixo dos padrões de precisão da BBC em dois aspectos: o título deu a impressão enganosa de que o foco da matéria seria na pressão aplicada pelas mulheres trans, e o tratamento da pesquisa realizada pela Get the L Out não deixou suficientemente claro que faltava validade estatística.

Foi também encontrada uma violação de padrões em conexão com uma contribuição para o artigo (posteriormente removida), que foi adequadamente abordada por uma atualização adicionada ao artigo. As reclamações foram, portanto, parcialmente confirmadas em relação à precisão e resolvidas em relação à contribuição excluída.

O que era uma matéria velha, de outubro, virou notícia nova, já que o caso repercutiu em vários jornais. E mostrou, mais uma vez, que DEI é coisa séria, exigindo cuidado e muita análise para que boas intenções não acabem no inferno.

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