Londres – A jornalista australiana Lynne O’Donnell, colunista da revista americana Foreign Policy, voltou ao Afeganistão nesta semana para retratar a vida sob o “reinado de terror” com o Talibã no poder, pois havia deixado o país horas antes do grupo fundamentalista assumir o governo, em agosto de 2021.

Mas sua estadia durou pouco e foi marcada por uma perseguição implacável devido a reportagens anteriores sobre LGBTs e mulheres afegãs.

Ex-chefe das sucursais afegãs da Agence France-Presse (AFP) e da Associated Press (AP) entre 2009 e 2017, O’Donnel foi detida, interrogada e coagida a publicar nas redes sociais um pedido de desculpas por suas matérias como condição para não ser presa e poder deixar o país, mas denunciou a história após chegar ao Paquistão. 

Jornalistas perseguidos no Afeganistão 

O caso de Lynne O’Donnel é o mais recente exemplo da extensão da deterioração da liberdade de imprensa no Afeganistão. Desde a queda do governo oficial, agentes do Talibã exercem censura e intimidações. 

Em dezembro passado, 40% dos veículos independentes locais tinham deixado de funcionar, segundo levantamento da organização Repórteres Sem Fronteiras.  

Em maio, uma ordem do Ministério para a Propagação da Virtude e Prevenção do Vício proibiu mulheres de mostrarem o rosto na TV e foi desafiada por algumas emissoras. Em outras, colegas homens demonstraram apoio ao cobrirem seus rostos também.

A proibição confirma o pessimismo dos que não acreditaram na promessa do Talibã de que o jornalismo seria respeitado, feita logo após a tomada do poder. 

O’Donnel é australiana e escreve uma coluna para a revista Foreign Policy. Com a iminência da queda do governo, ela conseguiu deixar o país poucas horas antes do Talibã assumir o comando. Mas decidiu voltar nesta semana, como relata em sua coluna:

“Eu queria ver por mim mesma o que havia acontecido com Afeganistão desde que saí de Cabul em 15 de agosto de 2021, horas antes de começar o que muitos moradores agora chamam de ‘reinado de terror’.”

A jornalista chegou a Cabul, capital do Afeganistão, no dia 16 de julho. No dia seguinte, foi ao Ministério das Relações Exteriores para se registrar como profissional de imprensa estrangeira, segundo contou em entrevista ao Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ). 

Porém, o porta-voz do ministério, Abdul Qahar Balkhi, negou o seu registro, alegando que reportagens produzidas por O’Donnel em 2021 sobre a situação das pessoas LGBT no país e adolescentes forçadas a se casarem com comandantes talibãs eram “imprecisas”.

Por isso, ela seria contatada por oficiais de inteligência e obrigada a deixar o país. No mesmo dia, um agente do governo telefonou pedindo que ela comparecesse a um interrogatório da Diretoria Geral de Inteligência (GDI, em inglês); ela recusou.

Dois dias depois, no entanto, o mesmo agente ligou dizendo que ela seria impedida de deixar o país a menos que desse o depoimento. Quatro agentes do governo talibã foram até o local onde O’Donnel estava hospedada e a conduziram para o escritório da GDI.

Ela relatou que por quatro horas foi coagida e ameaçada de prisão. Os oficiais disseram que ela poderia deixar o país se pedisse desculpas publicamente nas redes sociais pelas matérias.

O’Donnell postou a retratação em sua conta pessoal no Twitter e voou do Afeganistão para o Paquistão no dia seguinte, disse ela ao CPJ.

“Peço desculpas por 3 ou 4 reportagens escritas por mim acusando autoridades de se casarem à força com adolescentes e usá-las como escravas sexuais dos comandantes do Talibã. Esta foi uma tentativa premeditada de ‘assassinato de caráter’ e uma afronta à cultura afegã.

Essas matérias foram escritas sem nenhuma prova ou base sólida e sem nenhum esforço para verificá-las por meio de investigação ou encontros presenciais com supostas vítimas.”

‘Gato e rato’ com Talibã, diz jornalista

Na sua coluna de quarta-feira (20), Lynne O’Donnel revelou que os tweets foram publicados sob ameaça de prisão. Ela também foi obrigada a gravar um vídeo negando que tivesse sido solicitada a postar na rede social.

O’Donnell foi condenada a revelar suas fontes e todos os seus detalhes, bem como notas, fotos, gravações de vídeo e vídeo. A jornalista disse ainda que foi obrigada pelas autoridades do Afeganistão a gravar um vídeo afirmando que não havia sido coagida.

“Twitte um pedido de desculpas ou vá para a cadeia”, disse a inteligência do Talibã. Custe o que custar: Eles ditaram. Eu twittei”, disse O’Donnell.

Segundo ela, os oficiais disseram que as informações contidas nas matérias “eram fantasias, mentiras inventadas e que as fontes não existiam”.

Em seu texto, a jornalista relata que, durante o tempo em que ficou no escritório do Talibã, esteve em contato com diplomatas australianos e um colega jornalista, que via em tempo real sua localização do WhatsApp.

“Enviei mensagens de texto durante as quatro horas, a eles e a meus editores da Foreign Policy”, contou.

Depois de gravar o vídeo e publicar no Twitter, os agentes disseram a australiana que ela estava “livre” e poderia “ir a qualquer lugar do país”.

Depois do encontro e com base em sua vivência no país, a jornalista disse que os talibãs são  “homens violentos, orgulhosos de sua violência”, destacando ainda “sua incompetência e sua total falta de capacidade de governar”.

Na quinta-feira (21), Balkhi, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Afeganistão, publicou no Twitter uma declaração alegando que a jornalista havia “se oferecido para corrigir a situação com um pedido de desculpas” e disse que o Talibã “continua comprometido com os princípios da liberdade de imprensa”.

Após deixar o país, a jornalista diz que não mais voltará ao Afeganistão.

“A outrora orgulhosa mídia independente do Afeganistão não existe mais, e agora não há mais ninguém.

O país está mergulhando em uma paisagem infernal de terror, fome e pobreza. Mas quem vai contar a história?”.

Uma pesquisa da Federação Internacional de Jornalistas publicada em março mostrou que menos de seis meses depois da tomada do poder, 87% das mulheres jornalistas sofreram discriminação de gênero durante o regime Talibã, e 60% delas perderam seus empregos e carreiras.

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