Londres – A condenação de uma mulher saudita que cursa doutorado no Reino Unido a 34 anos de prisão na Arábia Saudita por suas postagens no Twitter provocou protestos das principais entidades de defesa de direitos humanos do mundo. 

Salma al-Shehab, de 34 anos, cursava doutorado na Universidade de Leeds, no Reino Unido, e viajou de férias ao seu país natal em janeiro de 2021, quando foi presa sob acusação de usar a Internet para “causar agitação pública e desestabilizar a segurança civil e nacional”. 

O jornal The Guardian, que revelou a história e teve acesso aos documentos da condenação, expôs também as ligações do Twitter com o reino saudita, que detém participação na plataforma por meio de seu fundo soberano, o PFI. 

Jornalista condenada por uso do Twitter duas semanas após visita de Biden

Inicialmente Salma al-Shehab tinha sido condenada a três anos de detenção, mas na segunda-feira (15) um tribunal de apelações revisou a sentença para 34 anos,  uma das mais pesadas de que se tem notícia para crimes semelhantes. 

A condenação aconteceu duas semanas depois da criticada viagem do presidente dos EUA, Joe Biden, à Arábia Saudita, onde foi recebido pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman. 

O país foi responsável por um dos mais notórios crimes contra jornalistas, o assassinato do saudita Jamal Khashoggi dentro da embaixada de seu país, em Istambul, ocorrido em 2018. Depois de três anos, a Turquia enviou o caso para ser julgado em Riad

Mas diferentemente de seu compatriota, um conhecido colunista do Washington Post que frequentemente denunciava ao mundo violações de seu país, Salma al-Shehab é uma profissional de saúde, com pouco mais de 2 mil seguidores no Twitter e nem 200 no Instagram.

Segundo a Organização Saudita Europeia para os Direitos Humanos (ESOHR), com sede em Berlim, a condenada é especialista em medicina oral e odontológica, estudante de doutorado na Universidade de Leeds e professora da Universidade Princess Nourah. Ela é casada e tem dois filhos pequenos.

O comunicado da organização afirma que juízes do tribunal de apelações invocaram o regime de contraterrorismo e seu financiamento para justificar a decisão, embora todas as acusações contra ela estejam relacionadas à sua atividade no Twitter.

O The Guardian teve acesso aos documentos judiciais, que alegam que Shehab estava “ajudando aqueles que buscam causar agitação pública e desestabilizar a segurança civil e nacional seguindo suas contas no Twitter” e retuitando postagens sobre direitos das mulheres. 

Um dos motivos da irritação do governo saudita seria o apoio à ativista feminista Loujain al-Hathloul, que já foi presa e agora está no país proibida de viajar, apontou o jornal britânico

“Pedimos às autoridades sauditas que libertem Salma, permitindo que ela volte para cuidar das crianças e concluir seus estudos com segurança no Reino Unido”, disse a Freedom Initiative em comunicado. “Tuitar em solidariedade a ativistas dos direitos das mulheres não é crime”.

A Comissão de Liberdade Religiosa Internacional dos Estados Unidos disse acreditar que a identidade religiosa de Shehab, que é muçulmana xiit,a tenha contribuído para a prisão e para o rigor da sentença.

As relações do Twitter com a Arábia Saudita 

Na reportagem que revelou a história da condenação, o The Guardian expôs um lado pouco conhecido do Twitter: a participação acionária importante do reino comandado por Mohammed bin Salman, um reconhecido repressor da liberdade de expressão, e que teria ordenado a morte de Khashoggi. 

A Arábia Saudita ocupa o 166º lugar no Índice de Liberdade de Imprensa da organização Repórteres Sem Fronteiras, que lista 180 nações. 

A análise destaca que “praticamente todos os meios de comunicação sauditas operam sob controle oficial direto”. E que o código penal e as leis antiterroristas e de crimes cibernéticos permitem prisão de jornalistas que se arrisquem a criticar o governo, sob alegação de blasfêmia e incitação ao caos.

A organização afirma também que desde 2018 o governo vem apertando o controle sobre as mídias sociais. 

Um recente exemplo foi a prisão de uma egípcia que publicou um vídeo no TikTok considerado ofensivo por supostamente conter insinuações de cunho LGBT. 

De forma contraditória, o mesmo reino que reprime os que usam as redes sociais para se expressar investe nelas. 

Segundo o The Guardian, um dos maiores investidores do Twitter é o bilionário saudita Príncipe Alwaleed bin Talal, que possui mais de 5% do Twitter por meio de sua empresa de investimentos, a Kingdom Holdings. 

Em maio passado, a Kingdom Holding anunciou a venda de 17% do controle para o fundo soberano, que é presidido por bin Salman, tornando o governo saudita um investidor indireto significativo no Twitter.

O Guardian disse que o Twitter não comentou o caso nem informou sobre influência dos acionistas sobre as atividades da empresa de mídia social, assim como não fez em outro caso recente. 

O Twitter manteve ativa uma conta verificada com mais de 2 milhões de seguidores de Bader al-Asaker, assessor do príncipe Mohammed, apesar de acusações do governo dos EUA de que ele teria comandado uma operação para identificar usuários da plataforma que foram posteriormente presos pelo governo saudita.

Na semana passada, o ex-funcionário do Twitter Ahmad Abouammo, de dupla nacionalidade libanesa e norte-americana, foi condenado por um tribunal da Califórnia sob a alegação de que agiu como agente não registrado do governo saudita.

A Arábia Saudita também vem apertando o cerco contra a indústria cultural. O país foi um do que suspendeu a exibição da nova animação da Pixar, Lightyear. O motivo foi um beijo entre personagens mulheres.