Enquanto o Palácio de Buckingham silencia sobre as acusações feitas pelo príncipe Harry e por Meghan Markle na devastadora entrevista à apresentadora americana Oprah Winfrey, que foi ao ar no Reino Unido na noite de segunda-feira (8/3), a Sociedade dos Editores (SoE)  britânica não deixou barato. Na própria segunda-feira, divulgou um comunicado rechaçando os ataques feitos pelo casal, que, embora direcionados aos tabloides, acabam respingando em todo o setor. A entidade tem mais de 400 membros, entre executivos e editores de organizações de mídia e acadêmicos.

O comunicado publicado no site e reproduzido por boa parte da imprensa diz que a “mídia do Reino Unido não é preconceituosa e não será influenciada em seu papel vital de responsabilizar os ricos e poderosos após o ataque à imprensa pelo duque e duquesa de Sussex, referindo-se aos trechos em que o casal diz que teve deixar a Grã-Bretanha em parte devido ao racismo, culpando setores da mídia britânica.

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Mas o ato não foi bem recebido por parte do jornalismo. Dois dias depois da nota, o diretor da entidade deixou o cargo. Ian Murrey sofreu uma onda de ataques por não admitir racismo na imprensa do país.  A SoE  se comprometeu a “trabalhar para ser parte da solução” sobre a diversidade na mídia depois que mais de 200 jornalistas negros assinaram uma carta aberta criticando uma “indústria em negação”.

Como foi a defesa inicial 

Para contradizer o casal, a entidade havia destacado na nota de segunda-feira a foto da capa de uma edição do Evening Standard um tabloide publicada em outubro do ano passado, com espaço generoso para a campanha antirracismo de Harry e Meghan.

O Secretário-geral da SoE, Ian Murray, que assinou o comunicado em resposta às alegações do casal, disse:

“Não é aceitável que o duque e a duquesa façam tais afirmações sem fornecer qualquer evidência que as sustentem. Se os Sussex acham que a imprensa estava sendo racista ao questionar suas ações e ao comentar sobre seus papéis quando trabalhavam como membros da família real financiados pelo contribuinte, eles estão enganados. 

No caso de Meghan Markle, seu noivado e casamento com o príncipe Harry, houve cobertura ampla e favorável por parte da imprensa do Reino Unido, o que se refletiu na cordialidade demonstrada ao casal pelo povo britânico. Mas isso não pode e não deve significar que a imprensa deva abster-se de relatar, investigar e comentar sobre o estilo de vida e as ações do casal.

É uma pena que o casal não tenha mencionado em sua entrevista o enorme apoio que a mídia do Reino Unido tem dado às obras de caridade realizadas pelo duque e pela duquesa. A imprensa do Reino Unido também desempenhou um grande papel em garantir que o serviço do príncipe no Afeganistão fosse adiante, concordando com um embargo em relatar sua capacitação para  cumprir seu papel no Exército no Oriente Médio.

A mídia do Reino Unido tem orgulho de seu histórico denunciando o racismo e de estar na vanguarda das campanhas de apoio à conscientização sobre saúde mental, outra das questões levantadas pelo casal.

Também não é razoável que o duque e a duquesa confundam a cobertura legítima feita pela mídia regulamentada do Reino Unido com o ‘velho oeste das mídias sociais’.”

Murray também alfinetou o paradoxo entre a privacidade desejada pelos Sussex e suas últimas entrevistas:

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“É estranho que o casal tenha atacado a mídia do Reino Unido anteriormente por suposta intrusão em suas vidas privadas, ainda que tenha se aberto em várias ocasiões à mídia nos Estados Unidos, sobretudo com essa última entrevista com audiência global. 

A mídia do Reino Unido nunca deixou de chamar a atenção para aqueles em posições de poder, celebridade ou influência. Se às vezes as perguntas são estranhas e embaraçosas, então que seja. Mas a imprensa certamente não é racista.”

A Sociedade de Editores já havia criticado o casal quando foi anunciado, em outubro de 2020, o corte de relações com os jornais The Sun, Daily Mirror, Daily Mail e Daily Express, classificando a iniciativa de censura.

Apresentador deixa programa ao vivo e perde emprego 

Os ânimos no mundo do jornalismo britânico estão tão exaltados que o apresentador Piers Morgan, da ITV, simplesmente saiu do set do programa matinal Good Morning Britain na manhã de terça-feira (9) depois que seu colega de bancada, Alex Beresford, criticou a maneira como ele “continua destruindo” a duquesa de Sussex. O programa é exibido pela ITV, a mesma que comprou os direitos de exibir a entrevista com Oprah Winfrey no Reino Unido.

Morgan chegou a dizer na manhã de segunda-feira (8) não acreditar que Meghan tenha tido pensamentos suicidas, o que gerou uma reclamação da organização de saúde mental Mind. No dia seguinte, o órgão regulador das telecomunicações no país, o Ofcom, abriu uma investigação depois de receber mais de 41 mil  reclamações sobre comentários. No fim da tarde, a ITV anunciou o desligamento do profissional.

Na briga ao vivo, Beresford chamou o comportamento de Morgan de “diabólico” e  disse: “Sinto muito, mas Piers fala alto regularmente e todos nós temos que sentar lá e ouvir. Das seis e meia às sete da noite de ontem foi incrivelmente difícil de assistir. Ele tem a capacidade de entrar aqui e falar sobre uma posição que não compreende totalmente”.

Morgan enfureceu-se de vez  quando Beresford expôs o fato de que Markle rompeu o relacionamento com ele no passado: “Ela tem o direito de interromper a ligação com você, se ela quiser “. O apresentador levantou e foi embora, exclamando: “OK, para mim chega”. Mas acabou voltando e disse a Beresford: “O que precisamos fazer, Alex, é conversar de maneira civilizada, já que trabalhamos no mesmo programa e na mesma equipe. Um monólogo muito pessoalmente depreciativo sobre um de seus colegas não é a melhores maneira de fazer isso”.

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O que disseram Harry e Meghan

Em vários pontos da longa entrevista concedida a Oprah na verdade uma conversa entre amigos, com levantadas de bola gentis Harry e Meghan mencionaram racismo e voltaram suas baterias contra os jornais. Harry chegou a ser indagado diretamente por Oprah Winfrey sobre se esse teria sido um dos motivos de ter deixado o país há um ano, e ele confirmou que sim.

O impacto dessas declarações para o jornalismo é negativo, e mais ainda para o jornalismo britânico, que não é composto apenas pelos tabloides sensacionalistas. Mas para o mundo a percepção hoje é de que a imprensa do país adota práticas condenáveis.

Harry afirmou que “o Reino Unido não é fanático, mas a imprensa britânica é fanática, especificamente os tabloides”. Disse haver um “ambiente tóxico” de “controle e medo” criado pela mídia.

O príncipe revelou ter “pedido calma aos tabloides britânicos, uma vez como namorado, uma vez como marido e outra como pai”.

Ele mencionou ainda supostos “contratos invisíveis a portas fechadas” entre alguns membros da família real e os tabloides:

 “Para simplificar, se você, como membro da família, quiser beber, jantar e dar acesso total a esses repórteres, você terá uma melhor divulgação”, disse ele. “Existe um nível de controle causado pelo medo que persiste há gerações”.

Meghan, que sempre foi uma celebridade internacional até casar-se com Harry e por isso não é exatamente novata no que diz respeito ao assédio de jornalistas, reclamou de uma “máquina monstruosa de clickbait”. E acusou os assessores de comunicação do palácio de não terem conseguido protegê-los da mídia da mesma forma que fizeram com outros membros da família.

“Eles são bem-vindos pelo Palácio. Há uma engrenagem em jogo lá, porque desde o início de nosso relacionamento eles
atacaram e incitaram racismo”.

Ela disse ainda que jornalistas de tabloides passaram um ano seguindo seu pai. E que mantiveram a matéria que causou o rompimento entre os dois na gaveta por um mês, antes de publicá-la no domingo anterior a seu casamento para “criar drama”.

A duquesa sugeriu que a pressão dos tabloides contribuiu para ideias de suicídio. E acha que havia dois pesos e duas medidas na forma como a mídia cobriu assuntos relacionados a ela em comparação ao tratamento recebido por Kate Middleton.

“Agora vejo melhor o que estava em jogo naquele momento. Eles realmente pareciam querer uma narrativa de herói e vilão”, disse Meghan.

Mesmo antes da entrevista a Oprah, o casal já vinha sinalizando que este seria um dos temas. No mês passado, o príncipe Harry disse ao apresentador James Corden, em uma entrevista passeando por Los Angeles em um ônibus aberto, que suas experiências com a imprensa acabaram contribuindo para que ele se afastasse da família:

“Todos nós sabemos como pode ser a imprensa britânica e isso estava destruindo minha saúde mental”, disse ele.

A imprensa também foi exposta nas revelações sobre o episódio em que Kate teria sido levada às lágrimas durante uma prova de roupas que antecedeu o casamento. Segundo Meghan contou a Oprah, a história teria sido oposta: ela é que teria chorado, ao ponto de a futura rainha da Inglaterra ter pedido desculpas e levado flores.

Mas sobrou de novo para a imprensa, pois Meghan reclamou de essa versão nunca ter aparecido publicamente – talvez por nunca ter sido contada, nem mesmo por ela própria, pois é difícil imaginar que um jornal abrisse mão desse furo, sobretudo no momento em que Meghan desfrutava de alta popularidade.

Na entrevista, Meghan e Oprah fizeram referência ao fato de que um assessor real estava ouvindo, em fevereiro de 2018, o primeiro telefonema entre elas após o casamento, embora saiba-se que a duquesa e a apresentadora já haviam falado em particular antes disso. Meghan acusou a família real de amordaçá-la:

“É realmente libertador poder ter o direito e o privilégio de dizer sim, estou pronta para falar, de poder fazer minha própria escolha e falar por mim mesma.”

Denúncia mais sensível não partiu de um tabloide 

Apesar de os tabloides serem invasivos e tratarem os temas que envolvem a realeza com mais agressividade ou ironia, no caso do Daily Mirror, que passou a publicar diariamente notícias sobre o casal chamando-os de “publicity-shy“, em alusão ao paradoxo de não querer visibilidade e ao mesmo tempo provocar notícias –, coube ao The Times a revelação mais delicada para o casal.

Na semana passada, o jornal publicou uma matéria revelando que funcionários da equipe de comunicação do Palácio de Kensington denunciaram ter sofrido bullying por parte da duquesa, o que provocou a abertura de uma investigação formal.

 Um porta-voz do casal Sussex chamou a matéria de “uma campanha de difamação calculada com base em desinformação enganosa e prejudicial”.

Questão de Estado 

O impacto da entrevista acabou resvalando até na diplomacia. O The Daily Telegraph destacou em sua capa de terça-feira (9/3) a declaração da secretária de imprensa do presidente norte-americano Joe Biden, Jen Psaki, de  que foi preciso coragem para Harry e Meghan contarem sua própria história e falar sobre as lutas contra a saúde mental.

O primeiro-ministro Boris Johnson foi mais cuidadoso. No domingo, ele já havia evitado em entrevistas ao vivo na TV a pergunta sobre se assistiria à entrevista. Questionado sobre as alegações de que a Família Real não cuidou da saúde mental dos Sussex e de que um membro teria especulado sobre a cor da pele do filho do casal, Johnson se recusou a comentar, exceto para dizer que “sempre teve a maior admiração pela rainha e pelo papel unificador que ela desempenha “.

Indagado se acreditava que a Família Real seria racista, Johnson não entrou na bola dividida. Experiente, disse que “quando se trata de assuntos relacionados com a Família Real, a coisa certa para os primeiros-ministros dizerem é nada”.

Os tabloides e suas perseguições   

Os tabloides britânicos não são exatamente anjos de candura, e o passado condena. O caso célebre do News of the World, um jornal secular que fechou as portas por ter grampeado telefones de celebridades, é uma mancha na história da imprensa do país. E por vezes  eles exageram, como em manchetes como esta do Daily Mail, depois que Meghan apareceu nas redes sociais comendo torrada com creme de abacate. O jornal sugere que ela estaria se alimentando de um produto que provoca seca e está relacionado a crime de gangues em países de onde a fruta é importada.

Meghan também não foi a única a enfrentar escrutínio e críticas. A doce e meiga Kate Middleton também teve seu calvário com os tabloides, que entre outras coisas exploraram sua origem de classe média. Mas soube contornar, diferentemente de Meghan e Harry, que preferiram partir para o ataque.

O colunista do The Times Hugo Rikfind escreveu sobre a relação de celebridades com a fama:

“Independentemente da realeza, sabemos como são conflitantes os impulsos dos colossalmente famosos, que desejam atenção e odeiam tudo ao mesmo tempo. Por que Meghan seria diferente? Em escala bem menor, conheço muitos jornalistas cujo dia pode ser arruinado por um tweet. Agora, imagine isso com os Sussex.

Mas não tenho certeza se uma entrevista confessional é a saída. Alguma celebridade, alguma vez, conseguiu com um ‘deixe-me-dizer-minha-verdade’ o seu caminho para a serenidade? Você não acalma os tubarões jogando carne para eles”. 

A julgar pelas reações, ele pode estar certo. Não é apenas a mídia a reagir ao que eles falaram. A imprensa e as redes sociais foram inundadas por matérias questionando algumas das falas, como a de que o casamento teria acontecido antes em uma cerimônia privada (houve uma benção, mas não é válida legalmente). Não vai ser fácil para eles.

O que dizem as pesquisas 

Uma pesquisa do instituto YouGov Direct com 2.104 adultos nos Estados Unidos depois da entrevista apontou que os americanos aprovaram a decisão de conceder a entrevista (44% a 20%) em total contraste com  a opinião pública na Grã-Bretanha, onde o oposto é verdadeiro (47% acharam impróprio, enquanto 21% disseram que a decisão foi correta).