Em seu primeiro livro após deixar o comando da Redação do Financial Times, que liderou entre 2005 e janeiro de 2020, o jornalista britânico Lionel Barber faz um histórico dos bastidores de um dos mais influentes e premiados jornais do mundo. Um relato que também coloca em pauta a delicada questão do relacionamento da imprensa com poderosos, na opinião de Fintan O’Toole, em sua crítica sobre o livro para o The Guardian. 

Economia, Jornalismo, Política 

The Powerful and the Damned (Os poderosos e os amaldiçoados) pode ser lido sob vários prismas. 

Para quem se interessa por economia e jornalismo econômico, é uma oportunidade de revisitar episódios transformadores nos últimos 15 anos, como a crise de 2008, a ascenção da China e o Brexit. E observar como eles foram tratados pelo Financial Times, fora e dentro do jornal. 

Conhecer as entranhas de uma redação cujas decisões podem abalar mercados e destruir (ou entronizar) corporações e personalidades é outra perspectiva. Barber conta em seu livro passagens sobre o cotidiano do FT que mostram como as coisas funcionavam de verdade lá dentro. Ou, pelo menos, a parte da verdade que ele quis contar. 

Mas o que talvez seja o principal aspecto do livro é o fato de expor as relações de um jornalista poderoso com líderes políticos, empresários e banqueiros. Na apresentação, Barber diz: 

“Como editor do FT, fui um interlocutor privilegiado de pessoas no poder em todo o mundo, cada uma oferecendo percepções exclusivas sobre a tomada de decisões de alto nível e o cálculo político, muitas vezes em momentos de crise”. 

No livro, segundo ele “uma narrativa sem paralelos e sem barreiras da vida por trás das manchetes”, fala sobre encontros com políticos às vésperas de referendos, conversas com banqueiros bilionários enfrentando colapso econômico, discussões com gurus de tecnologia do Vale do Silício e apelos recebidos de emissários estrangeiros. A lista é longa e inclui nomes como Donald Trump, David Cameron, Tony Blair, Vladmir Putin, Angela Merkel e Mohammed Bin Salman.

O resultado é um retrato fascinante − e às vezes mordaz − do poder em nossa era moderna; quem o tem, o que é necessário e o que move os homens e mulheres com o mundo a seus pés”, diz a apresentação. 

A resenha do FT do livro do ex-editor do FT 

Barber saiu do FT prestigiado, substituído por sua sub, Rouhla Khalaf, que se tornou a primeira mulher a chefiar o jornal. Pode-se esperar que a crítica do próprio veículo ao livro seja simpática.

Ela foi assinada pelo jornalista Bill Emmot, que já esteve em posição semelhante, como editor-chefe da The Economist entre 1993 e 2006. E que acaba falando também de sua própria experiência. 

Ele começa destacando o glamour da vida de um jornalista ocupando uma das mais invejáveis posições da carreira, e aproveitando para um pouco de autorreferência: 

“Na verdade, não há nenhum outro trabalho como esse. Escolher ’um dia na vida‘ do editor do Financial Times, assim como no do The Economist, é virtualmente impossível, já que o dia escolhido poderia ser passado em quase qualquer lugar do mundo, e suas características são fruto do acaso”.

Ele lembra o peso nos ombros de um editor com tamanha responsabilidade, e diz como atuava: 

Eu costumava pensar em editar a The Economist como se estivesse presidindo um seminário em constante mudança, ouvindo e tentando orientar jornalistas extremamente talentosos, cujo trabalho, como o de espiões, é o de saber o que está acontecendo, por que e onde. Em outro nível, porém, é como ser puxado em várias direções ao mesmo tempo, enquanto você tenta tomar decisões sobre os interesses dos leitores em São Francisco, Seul e Berlim, ou sobre a importância relativa das telecomunicações e do terrorismo, tudo ao mesmo tempo, Somando-se a isso a pressão de poderosos e ofendidos, frequentemente acompanhados por advogados. 

Emmot ressalta que o livro narre o que aconteceu no mundo que o Financial Times estava cobrindo e sobre quem sussurrou ou gritou o quê no ouvido do editor nos momentos em que a história estava sendo escrita. 

Talvez para ficar à margem de polêmicas, o crítico destacou principalmente o que o obra ensina sobre o modelo de negócios do FT: 

“Esse livro é, acima de tudo, uma história da expansão e fortalecimento do FT à medida que a indústria de mídia passava por seus próprios tempos turbulentos. Os jornais estavam sendo desafiados pela internet, e o FT em particular precisava recompor-se depois de um período patinando, beirando a estagnação, no início dos anos 2000.”

Ele aponta o mérito de Barber ao investir em rigor e qualidade e agarrar a oportunidade que a digitalização oferecia para passar de um jornal em papel para digital. E assim permitindo que o departamento comercial migrasse de um modelo que dependia de publicidade para outro, impulsionado por assinaturas, creditando ao editor o perfil global que o FT assumiu: 

“Nenhum editor anterior do FT teria publicado memórias apresentando visitas de trabalho a lugares tão variados como Ruanda, Mianmar, Japão e Brasil, nem encontros com empresários tão diversos como Philip Green, Masayoshi Son e Ren Zhengfei, da Huawei. Embora o FT antes de Barber circulasse em todo o mundo, não era verdadeiramente global em leitores ou mentalidade. Agora é”. 

Emmont chama a atenção também para as passagens sobre grandes reportagens recentes do Financial Times, como a denúncia envolvendo o jantar beneficiente do Presidents Club, em Londres, no qual o assédio sexual era frequente, ou a fraude contábil na empresa alemã de pagamentos Wirecard. E acha que não é para qualquer um bancar tais reportagens: 

“Como Barber entendeu claramente, para fazer isso de forma eficaz, uma publicação precisa primeiro construir e manter uma reputação de qualidade, confiabilidade e independência, apoiada em um modelo de negócios sólido, para que tenha condições de correr riscos que vão do tempo dedicado pelos jornalistas para produzi-las à reputação do jornal que é colocada à prova”.

Por outro lado… relações perigosas expostas 

No espírito jornalístico, é necessário registrar que nem todos adoraram o livro ou as histórias nele contadas. Uma das mais fortes críticas veio do The Guardian, jornal que se posiciona à esquerda politicamente. 

Para resenhar The Powerful and the Damned, o jornal também não escalou um jornalista da casa. Convidou Fintan O’Toole, colunista do Irish Times, crítico literário e comentarista político que escreve regularmente artigos de opinião do Guardian.

Ele começa ironizando a opinião de Barber sobre o fato de a lista de personalidades citadas no início do volume incluir majoritariamente homens, reproduzindo um comentário que ele faz em outro ponto do livro: “Um dia vou lidar com a questão do macho alfa, mas não agora”. E mostra-se assustado com a classificação feita pelo autor sobre os players com os quais lidou ao longo da carreira no jornal: política, negócios e finanças, realeza, jornalismo e diplomacia. 

“O coração afunda. Se o jornalismo  enquadra-se tão facilmente em tal lista, como pode fazer seu trabalho de confortar os aflitos e afligir os confortáveis?”

O’Toole segue alfinetando a forma como o Barber descreveu seus encontros com membros da realeza: “O autor diz que ’foram a ele concedidas audiências ‘, o que considera inadequado em se tratando de um jornalista. E faz referência ao passado dos que gentilmente, em suas palavras, concederam tais audiências: ’Um é um suposto assassino e outro é amigo de um criminoso sexual condenado’”. 

O crítico é mordaz em relação ao relacionamento do editor com o poder, destacando passagens apontadas como “reveladoras” e que mostram as pressões exercidas por poderosos. No entranto, não há na resenha sugestão de que Lionel Barner tenha sucumbido a pressões. 

“O drama inerente à posição de Barber reside na tensão insolúvel entre a proximidade do poder e a objetividade jornalística. O capitalismo, como praticado durante a maior parte do mandato de Barber na liderança do jornal, é um jogo exclusivo, um sistema administrado por e para uma pequena elite. Ele não disfarça sua noção de sua missão como editor do FT: tornar-se o mais íntimo possível − como ele também os chama repetidamente − dos “players de poder”. Mas também é um excelente jornalista, comprometido com reportagens sérias e independentes”. 

Para O’Toole, o relato de Lionel Barber “tem ótimos close-ups e fotos amplas muito borradas”, observando que “exposições individuais chocantes não levaram a um escrutínio suficiente do quadro geral”. E comenta que ao longo do livro o editor reconhece falhas em perceber certos cenários externos: 

“Talvez estivéssemos muito próximos das pessoas importantes da City e de Wall Street”; “Éramos lentos para entender e relatar o nível frouxo de arbitragem tributária entre multinacionais”; “Deveríamos ter debatido mais profundamente os custos da austeridade”.

Mas o crítico não parece perdoar tais falhas, sob a ótica política: 

“Elas não aconteceram porque Barber ou os excelentes jornalistas que trabalhavam para ele fossem estúpidos, mas porque há um contrato tácito em andamento. Se você quer ser íntimo dos players poderosos, pode revelar alguns de seus segredos sujos. O que você não deve revelar é o que na verdade não é nenhum segredo: que o mundo que eles criaram não é sustentável nem compatível com a democracia liberal”. 

Vale a leitura? 

Não é todos os dias que se pode mergulhar nos bastidores de uma redação como a do Financial Times. 

Com as devidas ressalvas − uma certa arrogância, que em alguns momentos parece um pouco de deslumbramento com uma vida glamurosa  que poucos jornalistas têm a chance de viver −,  The Powerful and the Damned é uma visão importante sobre a prática do jornalismo econômico.

E sobre os difíceis limites entre a imprensa e o poder que não desafiam apenas grandes editores como Lionel Barber, mas todos os que se dedicam a essa profissão. 

As versões do livro em papel, e-book e audiobook estão disponíveis na Amazon,

E também em livrarias  independentes como a eBooks, eleita como a livraria mais ética do Reino Unido. 


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