Londres – Depois de se tornar símbolo do enfrentamento da censura do regime de Vladimir Putin ao erguer um cartaz contra a invasão da Ucrânia durante um telejornal ao vivo de uma emissora estatal, a jornalista russa Marina Ovsyannikova saiu do país, voltou, protestou novamente, foi condenada à prisão domiciliar e desapareceu. 

Os novos capítulos revelados agora são dignos de um roteiro de filme de espionagem. 

Em uma coletiva de imprensa em 10 de fevereiro na sede da Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em Paris, Ovsyannikova e o secretário-geral da organização, Christophe Deloire, descreveram a extraordinária operação pela qual ela conseguiu fugir secretamente da Rússia com a ajuda da RSF, há quatro meses .

Jornalista russa ganhou o apoio da RSF

Deloire disse que entrou em contato com Marina Ovsyannikova para oferecer a ajuda da entidade de liberdade de imprensa cinco dias depois que ela se tornou um símbolo de resistência à propaganda russa em 14 de março de 2022, quando interrompeu o noticiário noturno do canal de TV estatal russo Channel One brandindo uma placa contra a guerra. 

Ela deixou o país e passou três meses na Alemanha, trabalhando como correspondente para o jornal Die Welt. Voltou à Rússia sob a justificativa de participar de uma audiência sobre a custódia da filha.

Sua passagem pela empresa de mídia alemã foi controvertida, com jornalistas locais reclamando da preferência dada a ela, oriunda de uma TV estatal, em detrimento de outros profissionais russos com histórico de trabalho na mídia independente. 

Ovsyannikova deu mostras de ter gostado da ideia de desafiar a censura de Putin e fez outro protesto, solitário, diante do Kremlin. As imagens da jornalista russa foram postadas nas redes sociais. 

Em julho, ela foi condenada à prisão domiciliar, monitorada por uma pulseira eletrônica, enfrentando uma possível sentença de dez anos de prisão sob a acusação de “espalhar notícias falsas sobre as forças armadas russas” por relatar o número de crianças mortas em Ucrânia.

A prisão terminaria em 9 de outubro, mas no dia 1º a rede estatal Russia Today (RT) noticiou que Ovsyannikova e a filha de 11 anos haviam sumido de casa. 

Em uma entrevista à emissora, o ex-marido da jornalista russa, Igor Ovsyannikov, disse desconhecer o paradeiro da filha, que teria sido sequestrada pela mãe.  

Ele observou que elas não poderiam sair legalmente do país, pois a menina não tinha passaporte estrangeiro nem autorização paterna para viajar ao exterior. No dia 3 de outubro, a jornalista entrou na lista de pessoas procuradas. 

A fuga na madrugada 

Segundo a história revelada nesta sexta-feira em Paris, a ordem chegou tarde.

A Repórteres Sem Fronteiras contou que um intermediário informou à organização que Marina Ovsyannikova queria fugir do país, e a organização criou um plano para tirá-la da Rússia de forma clandestina. 

Durante quatro meses, uma pequena unidade de funcionários da RSF trabalhou em sigilo para organizar a fuga, chamada “Operação Evelyne”.

“Os recursos implantados pela RSF foram extraordinários”, disse Ovsyannikova na coletiva de imprensa.

“Eles salvaram minha vida, me ajudaram a fugir da Rússia, um país onde o governo é comandado por criminosos de guerra.”

A saída da Rússia foi feita em um final de semana, quando muitos vigilantes estariam de folga. Ela desativou a pulseira eletrônica com um alicate, e daí a história ganha ares de filme de ação. 

Ao todo, foram utilizados sete carros. Pouco antes de chegar à fronteira, seu carro ficou preso em um campo lamacento.

Então, ela e seu guia tiveram que percorrer as últimas centenas de metros no escuro, tentando se guiar pelas estrelas.

Depois de vagar por várias horas, ela finalmente cruzou a fronteira e encontrou os contatos que a esperavam.

Ovsyannikova chegou à França em outubro de 2022, e recebeu ajuda da organização para se instalar no país, incluindo compras, consultas médicas e contatos com autoridades. 

A RSF não deu mais detalhes sobre a fuga, sob a justificativa de proteção da jornalista, da filha e dos que ajudaram na operação. 

O que Marina Ovsyannikova fez “mostra que é possível resistir aos aparelhos de propaganda, que se pode destroçá-los por dentro, que se pode dizer não e que é possível sair deles, desertar, opor-se à falsificação da história e as notícias, e opor-se à sua manipulação”, afirmou Deloire.

Na entrevista, Marina lançou um livro autobiográfico em que descreve a “fábrica de propaganda” da mídia em Moscou, que a levou a fugir com a filha de onze anos.

O livro, intitulado “Entre o bem e o mal, como finalmente me rebelei contra a propaganda do Kremlin”, foi lançado na Alemanha pela editora Langen Muller e posteriormente será publicado em inglês e francês.

Veja a história da jornalista que desafiou Putin 

Apesar de ter se manifestado diversas vezes dentro da Rússia contra Putin, Marina Ovsyannikova não é uma unanimidade na mídia como outros jornalistas dissidentes, a começar pelo detentor do Nobel da Paz, Dmitry Muratov. 

Ela fez uma longa carreira na TV estatal e seu ex-marido também. Vivia uma vida de privilégios, reservada aos que se alinham ao governo russo, até o dia 14 de março. 

A posição combativa aproveitando um espaço na censurada mídia estatal russa a princípio destoou do passado de Ovsyannikova. Ela nasceu em 1978 em Odessa, cidade portuária ucraniana ameaçada de ataque, e cresceu no sul da Rússia.

Na escola de jornalismo da Universidade de Kuban, estudou com Margarita Simonyan, a editora-chefe de um dos principais órgãos da mídia estatal russa, a RT (Russia Television).

Depois da invasão do estúdio, a editora da RT negou ser amiga da jornalista que furou o bloqueio da censura estatal, embora tenha admitido que a recomendou para uma vaga.

Marina Ovsyannikova tinha outros laços pessoais com a rede estatal: Igor Ovsyannikov, seu ex-marido, era diretor da RT. 

Nas redes sociais a atividade da jornalista era bem diferentes dos atos de protesto.  No Instagram ela se se apresentava como mãe feliz, dona de cães golden retrievers e amante de fitness e de natação em mar aberto.

Posts antigos revelam que ela tinha uma vida glamurosa, exibindo roupas caras, jóias e viagens possíveis com um bom salário de funcionária graduada da mídia estatal da Rússia.

Tudo mudou quando a então editora do telejornal noturno Vremya, do canal estatal Channel One, invadiu o estúdio quando programa era transmitido ao vivo no dia 14 de março com um cartaz dizendo: “Pare a guerra. Não acredite em propaganda. Eles estão mentindo para você” em russo. 

A jornalista passou por um longo interrogatório, foi acusada de ser espião britânica mas não foi presa. Mudou-se para a Alemanha e foi contratada pelo jornal Die Welt, onde fez reportagens criticando seu país.

Em uma delas, escreveu: “os russos têm medo”.

No início de julho, ela anunciou o que seria o fim de um contrato de três meses e retornou à Rússia sob a alegação de precisava participar de uma audiência de custódia dos filhos. 

Mas a passagem pela Alemanha foi marcada por controvérsias, com protestos contra o Die Welt por tê-la contratado devido ao seu longo histórico de trabalho em uma emissora controlada pelo governo russo. 

Assim que voltou à Rússia, a jornalista continuou a desafiar o governo. No dia 13 de julho ela gravou um vídeo em apoio ao político da oposição Ilya Yashin, que está detido em prisão preventiva por supostamente espalhar informações falsas sobre os militares russos.

Dois dias depois, fez um protesto silencioso diante do Kremlin, transmitido em suas redes sociais, exibindo um cartaz que dizia: “Putin é um assassino. Seus soldados são fascistas”.  

Por causa dele, ela foi detida condenada a cumprir a prisão domiciliar e a pagar uma multa, recebidas com indignação.

“As acusações são absolutamente absurdas. É como se me acusassem de atear fogo no Mar Cáspio ou espalhar varíola”, disse. 

O objetivo do julgamento é intimidar todas as pessoas que se opõem à guerra na Federação Russa.”

Na época, ela descreveu a Rússia como um país agressor, dizendo: “O início desta guerra é o maior crime do nosso governo”.