Londres – Enquanto muitos se despediram de 2021 acreditando em um ano novo melhor, o agravamento da crise na família real britânica, com sua imagem pública ameaçada pelo envolvimento do príncipe Andrew em escândalos sexuais, indica que 2022 pode ser um novo “annus horribilis” para a rainha Elizabeth II, a exemplo de 1992.

A extensão da crise pode ser medida pela revelação do jornal The Times neste domingo (2/1), atribuindo a fontes do Palácio de Buckingham a informação de que está sendo considerada a possibilidade de ele deixar de usar o título de Duque de York e se desligar de todas as atividades oficiais, no que foi chamado de um “exílio interno”. 

O Palácio negou oficialmente, mas os rumores só crescem a dois dias da primeira audiência do processo de assédio sexual a que responde nos EUA. Voluntário ou sob pressão, o “cancelamento” seria uma forma de conter os danos à reputação da monarquia. 

Annus horribilis para a família real 

Motivos não faltam para a tentativa de blindar a rainha em uma semana que começa cheia de problemas.

Os advogados de Andrew não conseguiram suspender o processo movido pela americana Virginia Giuffre contra Andrew alegando que ela mora na Austrália. Um juiz federal negou o pedido no dia 1º de janeiro.

A audiência vai acontecer dias depois da condenação de sua amiga próxima, a ex-socialite britânica Ghislaine Maxwell, por aliciar menores para o financista Jeffrey Epstein, um ambiente desfavorável para ele. 

A crise de imagem abate a família real no ano em que a rainha celebra 70 anos no trono, com uma série de comemorações planejadas para marcar a data histórica.

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O primeiro “annus horribilis”, assim chamado pela própria Elizabeth II  em um discurso comemorativo de seus 40 anos de monarquia, foi o de 1992.

Naquele ano, três de seus filhos, Anne e Charles e o próprio Andrew, se divorciaram. No caso de Charles, a separação da idolatrada princesa Diana desgastou severamente a imagem da monarquia. 

Para completar, o Palácio de Windsor pegou fogo em 1992, destruindo importantes obras de arte e causando um prejuízo imenso.

Por coincidência, exatamente 30 anos depois a história do “annus horribilis” pode se repetir.

Não que a família real tenha ficado livre de turbulências durante todos esse tempo.

Em 2020 e 2021, o príncipe Harry e sua mulher Meghan Markle romperam o tradicional silêncio público dos integrantes da família real para reclamar de tratamento injusto e sugerir racismo. Acabaram indo morar nos Estados Unidos. 

Em 2021 o príncipe Charles, herdeiro do trono, viu-se enroscado num escândalo envolvendo seu braço-direito na fundação beneficente que comanda suas obras sociais.

Michael Fawcett teve que sair depois de denúncias (ainda em fase de investigação) de que um bilionário saudita teria recebido uma comenda real em troca de doações. Charles é questionado por alegar desconhecimento dos fatos.

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Crise de imagem provocada por escândalo sexual 

Mas nada se compara a um escândalo de natureza sexual envolvendo menores de idade, capaz de destruir a reputação de qualquer pessoa pública. E de respingar em quem estiver por perto e não demonstre claramente sua desaprovação.

É isso que está sendo cobrado da rainha abertamente nas redes sociais e veladamente na imprensa britânica. 

Andrew é um conhecido bon vivant, que sempre frequentou boates e as festas do jet set internacional – antes, durante e depois do casamento com Sarah Ferguson. Muitos afirmam que é o preferido dos quatro filhos de Elizabeth II. 

Nesse mundo de celebridades, ele se tornou amigo da socialite Ghislaine Maxwell, filha de um magnata da mídia britânica que cometeu suicídio a bordo de seu próprio iate.

Ela virou o elo de ligação entre famosos internacionais e o milionário americano Jeffrey Epstein, dono de propriedades em vários países e de um jatinho para levar seus amigos confortavelmente para festas e temporadas de férias. 

Andrew era um deles, tendo passado a frequentar as residências de Epstein em lugares como Caribe e Nova York. Donald Trump também era um dos convidados regulares, como mostram fotos em revistas de celebridades. 

A hospitalidade foi retribuída com pompa e circustância. Epstein e Ghislaine (que em determinado momento apresentavam-se como tendo um relacionamento) foram convidados para eventos reais e para um fim de semana no castelo de Balmoral, uma das residências preferidas da rainha.

Nas redes sociais e na mídia, a associação com a rainha quando as fotos apareceram, reveladas pela promotoria de Nova York durante o processo que condenou Maxwell, é direta. 

Depois das denúncias de jovens contando terem sido atraídas por Maxwell e recebido favores como viagens ou ajuda de custo para se aproximarem de Epstein e de seus amigos, o americano foi preso e cometeu suicídio na prisão em Nova York, em 2019, antes de ser julgado. 

Com esse histórico, as fotos que emergiram do casal sendo recebido na intimidade da família real são constrangedoras e explicam a tentativa dos assessores de isolarem Elizabeth II de um enredo de crimes sexuais. 

Até porque Andrew não demonstrou a menor habilidade de gerenciar a crise de imagem envolvendo a família real sem torná-la ainda pior. 

Em novembro de 2019, ele usou as próprias instalações do Palácio de Buckingham para dar uma entrevista à BBC que entrou para a história dos maiores desastres de relações públicas em tempos recentes. 

Era uma resposta a outra entrevista, dada pela acusadora ao mesmo programa, o Panorama. 

Andrew teve dificuldades de explicar suas relações com Epstein e Ghislaine Maxwell. E enredou-se ainda mais em uma teia de mentiras que depois viriam a ser expostas. 

O estrago era previsto. O assessor de imprensa do príncipe havia condenado a ideia da entrevista. Consta que os assessores do Palácio não sabiam de nada.

Talvez acostumado ao tratamento simpático da mídia britânica, o príncipe pode não ter mensurado a extensão da ameaça à imagem da família real que a conversa poderia representar. 

Amiga condenada a 70 anos 

Mais grave, no entanto, é o peso de uma decisão judicial. No dia 29 de dezembro, Ghislaine Maxwell foi condenada a 70 anos de prisão sob diversas acusações, entre elas a de ter aliciado meninas para o magnata. 

Andrew não é parte no processo de Maxwell, e sim em outro, movido diretamente contra ele pela americana Virginia Giuffre.

A mulher de 38 anos diz ter mantido relações sexuais com o príncipe em propriedades de Epstein e na casa da própria Maxwell em Londres, em 2001, quando tinha 17 anos.

Uma foto dos dois é a prova mais eloquente de que se conheciam e estiveram juntos na residência daquela que viria a ser condenada por tráfico de menores – ela aparece sorridente ao fundo. 

Estranhamente, Andrew disse na entrevista de 2019 à BBC que não lembrava de a foto ter sido tirada, o que não quer dizer muito diante da imagem impressa.

Neste sábado (1/2), Andrew sofreu mais um golpe. Seus advogados tentavam “melar” o processo alegando que Giuffre não mora mais nos Estados Unidos (e sim na Austrália), e que por isso a causa não teria efeito, por um erro de jurisdição.

Mas não deu certo. O juiz federal responsável pelo caso negou o pedido e o processo continua, com a audiência confirmada para a terça-feira. Mas ele não vai comparecer, pois se sair do país corre o risco de ser preso. 

Os advogados ainda tentarão derrubar a causa sustentando que a acusadora havia firmado um acordo com Jeffrey Epstein e recebido uma indenização para não tonar os fatos públicos.

Mas as chances de o processo ser encerrado são remotas, sobretudo depois da condenação de Ghislaine Maxwell e do clamor público.

Situação judicial de Andrew se complica 

Para complicar ainda mais, a corte pediu aos advogados que apresentem provas de duas alegações feitas com o intuito de desqualificar as denúncias feitas por Giuffre. 

Uma é a de que ele não seria capaz de transpirar por causa de um ferimento na guerra das Malvinas. Foi o argumento da defesa para tentar provar que o testemunho dela de que eles haviam dançado em uma boate e que ele suava muito seria falso. 

Logo que a história surgiu, os tabloides britânicos e americanos, como New York Post, fizeram a festa, com manchetes irônicas sobre a defesa insólita. A manchete faz um trocadilho com a palavra Highness (Alteza), com o prefixo “high” substituído por “dry” (seco).

Usuários de mídias sociais se encarregaram de desmentir a incapacidade de transpirar. Fotos de Andrew suado em várias ocasiões se multiplicaram nas redes e até hoje são repostadas a cada vez que um fato novo acontece no enredo, inferindo que a moça poderia não estar mentindo. 

https://twitter.com/Normanjam671/status/1476971325650518024?s=20

No entanto, isso poderia ser resolvido pelos advogados apresentando os laudos comprovando o problema médico. Surpreendentemente, no sábado a defesa informou que não o fará, tornando difícil desqualificar o testemunho que aponta para uma intimidade entre os dois. 

Os advogados também disseram que não vão apresentar provas do álibi evocado por Andrew para dizer que não estava com Virginia Giuffre em uma boate na noite em que ela afirma ter tido relações sexuais com ele na casa de Ghislaine Maxwell. 

Quando a história surgiu, na entrevista à BBC em 2019, ele afirmou que naquela noite havia levado uma das filhas a uma festinha de aniversário na Pizza Express. Só que não havia registros na segurança.

E aparentemente a defesa não conseguiu nenhum pai, mãe ou funcionário que pudesse atestar que ele estava lá. Isso virou uma piada interminável nas redes sociais, com todos os memes possíveis em torno do famoso membro da realeza não ter sido percebido por ninguém. 

https://twitter.com/quadtreble1/status/1477243940248207361?s=20

O capital de imagem de Elizabeth II 

Aos 95 anos, Elizabeth conseguiu levar o reinado – que recebeu inesperadamente com apenas 27 anos depois que seu pai, o rei George VI, morreu prematuramente – sem grandes dramas, a não ser os causados por alguns de seus filhos e netos.

Mas nada que pudesse ser diretamente atribuído a ela ou ao marido Philip. Ele até ficou conhecido por prosaicas gafes, mas eram tempos em que comentários racistas ou ofensivos a mulheres não eram levados tão a sério. 

A popularidade de Elizabeth II  é imensa. Mesmo aqueles que são contra a monarquia (eles existem e vêm aumentando) admiram sua figura discreta, serena, amável e assertiva em questões morais e sociais.

A poucos dias da COP26, a conferência do clima em Glasgow, uma vídeo em que ela reclamava dos líderes globais que nada faziam para controlar as mudanças climáticas mostrou uma rainha ativa e atenta a uma questão contemporânea. 

Quando o príncipe Philip morreu, em abril, o país se comoveu com a tristeza e solidão da monarca, já que as restrições da Covid impediam que se sentasse ao lado de parentes na cerimônia fúnebre. 

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Crise de imagem da família real pode ser mitigada com afastamento de Andrew

Mas capital de imagem tem limites.

Os manuais de relações públicas ensinam que crises sucessivas desgastam a reputação aos poucos.

Isso pode estar acontecendo, na visão dos assessores reais que consideram a possibilidade de que Andrew deixe de usar o título de duque de York. E talvez de membros sêniores da família que participam desse tipo de decisão, como os príncipes Charles e William. 

Na impossibilidade de ele perder o título de “filho”, deixar de se apresentar como duque seria uma saída para demostrar a desaprovação da rainha e do restante da família, incluindo seu irmão, o príncipe que herdará o trono depois que a monarca se for.  

Ser “cancelado” como duque pode parecer pouco para quem não faz parte desse mundo de conto de fadas das realezas europeias. Mas para quem faz, é quase a morte. Ou uma morte “social”. 

Na conta oficial do Duque de York no Twitter, uma postagem fixada exibe a declaração oficial de 2019 informando que ele estava se desligando de algumas das instituições de caridade depois que a associação dele com Jeffrey Epstein se tornou pública, no melhor estilo “dar os anéis para não perder os dedos”. Mas o título de duque que ele agora pode ter que abrir mão de usar vale muito mais do que alguns assentos em conselhos de ONGs. 

https://twitter.com/TheDukeOfYork/status/1197213619152396288?s=20

A situação de Andrew é tão sensível que nem sair do país para se afastar da confusão e deixar a poeira baixar ele pode, por razões legais.

Por isso os rumores são de que ele cumpriria uma espécie de exílio interno, deixando todas as funções e cargos em instituições beneficentes e militares que ainda manteve mesmo depois do início do processo judicial. 

Nenhuma dessas possibilidades saiu oficialmente do Palácio de Buckingham. Mas foram publicadas no The Times, atribuindo a fontes reais no contexto de conter a crise de imagem da família real e restringi-la ao seu principal protagonista. 

O jornal disse ter ouvido de uma fonte: “Se ele perder o caso, a questão é: o que você faz com ele? Você não pode fazê-lo renunciar como faria com uma pessoa normal, mas ele seria convidado a colocar seu ducado em suspensão.”

Traduzindo: isso significa que a informação foi provavelmente transmitida a um jornalista por uma fonte autorizada, que não disse o nome mas falou com conhecimento interno. 

Esse procedimento de comunicação com a imprensa é comum, utilizado pela realeza para tornar públicos alguns planos ou opiniões sem ter que formalizar, mas já sinalizando para a mídia e para o público a direção dos ventos.

Um porta-voz de Buckingham cumpriu o protocolo desmentindo o The Times. E o jornal igualmente seguiu o protocolo publicando o desmentido no fim da reportagem.

Mas quem conhece a forma como “a firma”, como é apelidada a família real pela sua habilidade de gestão de imagem, sabe que o método de liberar informações supostamente “não oficiais” para sinalizar os humores é comum. 

Nesse caso, a direção dos ventos é bem ameaçadora para o príncipe Andrew, que não parece mais ter aliados para ajudar em sua defesa sem que a crise de imagem da família real seja severamente afetada. 

Para a “firma”, tem muito mais em jogo do que o apoio a um membro da família em apuros. 

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