O bloqueio total do sinal de internet sem fio em banda larga, confirmado pelas agências internacionais de notícias na manhã da última sexta-feira (2/4), agrava ainda mais a situação da liberdade de imprensa em Mianmar, que vem se deteriorando a cada dia desde o golpe militar decretado em 1º de fevereiro. Não há mais jornais independentes em funcionamento no país, tendo restado apenas sites de notícias e publicações estatais. 

Em matéria publicada na quinta-feira (1/4), o New York Times contabilizou pelo menos 56 jornalistas já presos ou detidos no país e três fotógrafos baleados baleados ao cobrirem manifestações contra o golpe.

Até correspondentes internacionais – da BBC e da Associated Press – chegaram a ser detidos. O jornal americano afirma que 28 profissionais de imprensa permanecem sob custódia, incluindo pelo menos 15 que enfrentam o risco de penas de prisão de até três anos sob uma lei “que proíbe a divulgação de informações que possam induzir oficiais militares a negligenciar ou falhar em seus deveres”.

A morte da mídia independente do país foi decretada em 18 de março pelo site de notícias Myanmar Now. Na véspera, a junta militar havia suspendido o The Standard Time (San Taw Chain). Antes dele, tinham sido fechados os jornais The Myanmar Times, The Voice, 7Day News e Eleven, restando apenas os onlines. Na matéria, o jornal diz: 

Daqui a alguns anos, 17 de março de 2021 será lembrado como o dia em que a breve era de liberdade de imprensa de Mianmar – por mais parcial e imperfeita que tenha sido – realmente morreu.

Na sexta-feira (1/4), o IPI (International Press Institute) publicou um relatório documentando a repressão ao jornalismo no país. O vice-diretor da organização, Scott Griffen, cobrou ação internacional:

“A repressão à liberdade de imprensa em Mianmar não dá sinais de acabar. A pressão internacional efetiva deve ser aumentada para impedir as prisões e ataques a repórteres no país. As detenções de jornalistas estrangeiros e locais são um esforço para intimidar toda a mídia em Mianmar e lançar um manto de silêncio sobre os crimes cada vez mais hediondos cometidos pelo regime militar.”

O Reino Unido emitiu uma nota condenando a violência em Mianmar. O país foi colônia britânica e tornou-se independente em 1948. 

Problemas anteriores ao golpe agravados pelo corte de acesso à Internet 

A liberdade de imprensa em Mianmar já era crítica antes da tomada do poder pela junta militar. Em 2020, o país caiu uma posição em relação a 2019 e ficou em 139º no ranking World Press Freedom Index da organização Repórteres Sem Fronteiras. 

Desde o golpe de fevereiro, a reação à censura da imprensa estava sendo feita com a ajuda de jovens e de repórteres cidadãos utilizando as redes sociais. A junta militar já bloqueando temporariamente o acesso às redes e o sinal de internet, conforme monitoramento da organização NetBlocks. 

Mas com a oficialização do corte do sinal de banda larga sem fio, confirmado pela NetBlocks e pelo site do principal provedor do país, essa resistência fica mais difícil. 

Segundo a AP, estariam funcionando apenas os serviços de conexão por fibra ótica, mais lentos. O acesso a redes móveis, mais baratas e populares, foi bloqueado. Com isso, até a leitura de jornais online será dificultada. 

A empresa de telecomunicações norueguesa Telenor, uma das maiores operadoras de Mianmar, também confirmou que não pode mais prover o acesso. Passou a oferecer conexão por fibra ótica de até 40 Mbps, bem abaixo do acesso de alta velocidade que é de no mínimo 100 Mbps.

Nem jornalistas e veículos estrangeiros escaparam 

Um dos casos de repressão à liberdade de imprensa em Mianmar registrados no relatório do IPI é o do fotojornalista freelancer polonês Robert Bociaga, deportado esta semana após duas semanas preso. Ele gravou um vídeo para a Associated Press apelando à comunidade internacional para pressionar a junta militar. A entrevista foi reproduzida por veículos em vários países. 

A própria Associated Press foi vítima. Thein Zaw, um jornalista da agência, foi libertado da prisão depois de ficar preso por mais de três semanas devido à cobertura dos protestos. O relatório do IPI informa que no momento de sua libertação, pelo menos 20 outros jornalistas ainda estavam encarcerados. 

Aung Thura, BBC

Também a BBC foi alvo dos ataques à liberdade de imprensa em Mianmar. No dia 19 de março, o repórter Aung Thura, que trabalha para a rede britânica, foi levado junto com um colega da agência de notícias local Mizzima. Eles faziam uma reportagem diante de um tribunal na capital, Nay Pyi Taw. Thura foi libertado horas depois. 

Ainda assim, os estrangeiros são os que podem oficialmente continuar atuando. Quem trabalha para os meios de comunicação cujas licenças foram revogadas corre o risco de ser preso durante a cobertura dos protestos. 

O IPI afirma que os ataques à liberdade de imprensa em Mianmar fizeram com que os jornalistas passassem a trabalhar sem identificação, como coletes ou capacetes de proteção. O relatório traz o depoimento de uma profissional que não quis se identificar por medo da repressão: 

“Se você usa um colete ou câmera, torna-se alvo. No fim de semana, um fotógrafo levou um tiro na mão enquanto tentava tirar fotos das forças armadas. É muito perigoso para os jornalistas estarem em Mianmar no momento. Muitos estão escondidos e não dormem em suas casas desde o início de fevereiro”. 

Por causa do risco, segundo a jornalista local, profissionais estrangeiros tiveram que deixar o país ou estão planejando fazê-lo. Ela relatou ao IPI que veículos locais tentam resistir à repressão à liberdade de imprensa em Mianmar, mas foram levados a reavaliar sua forma de trabalho: 

“Muitos jornalistas dependem do público para enviar informações e fotos. Isso dificulta a verificação das informações, pois não dá mais para simplesmente ir ver”.

Pressões começaram 10 dias após o golpe e a imprensa resistiu 

Segundo o Myanmar Now, demorou 10 dias para o Ministério da Informação do regime começar a fazer o que classificou de “demandas orwellianas”. O jornal relata que em 11 de fevereiro foram emitidas novas instruções ao Conselho de Imprensa de Mianmar, exortando a mídia a “praticar a ética” e parar de se referir ao “Conselho de Administração do Estado” como uma junta.   

Citando disposições do esboço da constituição militar de Mianmar, os árbitros da verdade da junta alegaram que o regime chegou ao poder por meios legítimos porque o estado de emergência foi devidamente declarado.

Jornais, periódicos e sites que persistiram no uso de linguagem sugerindo o contrário não estavam apenas errados, mas também violaram a ética da mídia e incitaram a agitação, insistiu o ministério.

Onze dias depois, segundo o jornal, próprio golpista, o general Min Aung Hlaing, avisou aos veículos de imprensa que suas licenças de publicação seriam revogadas se continuassem a usar palavras que não tivessem sua aprovação.

Mas em 25 de fevereiro, em uma demonstração de desafio, cerca de 50 meios de comunicação declararam sua intenção de continuar relatando a situação à medida que ela se desenrolava e de descrever o regime e suas ações como bem entendessem.

Como era de se esperar, a repressão se intensificou. O Myamar Now diz que dois dias depois, a junta começou a perseguir os mais vulneráveis e essenciais: os repórteres.

Em 27 de fevereiro, cinco jornalistas que cobriam a repressão da junta contra as protestos foram presos e acusados ​​de incitação à luz do Código Penal.

A repórter multimídia do Myanmar Now, Kay Zon Nway, foi presa naquele dia. Ela estava fazendo seu trabalho de documentar o ataque brutal aos manifestantes no município de Sanchaung, de Yangon, quando foi presa enquanto fugia das forças do regime que atacavam todos que estavam à vista. 

Outros quatro – Aung Ye Ko da 7Days News, Ye Myo Khant da agência Myanmar Pressphoto, Thein Zaw da AP e Hein Pyae Zaw da ZeeKwat Media – estavam trabalhando perto de Hledan quando foram levados sob custódia. 

O jornal informou que os cinco foram para uma notória prisão militar, onde aguardam julgamento por acusações baseadas “na noção ridícula de que eles foram de alguma forma responsáveis ​​pelo caos que estavam lá apenas para testemunhar, com grande risco de vida”. De acordo com as recentes emendas à lei, podem pegar até três anos de prisão pelo crime de compartilhar o que viram.

Destemido, o Myanmar Now não esconde sua posição contrária ao golpe. Um pedido de doações aos que visitam o site refere-se diretamente às ameaças à liberdade de imprensa em Mianmar: 

Desde a matéria publicada pelo jornal em 18 de março, a situação não melhorou. O relatório do IPI registra que no dia 24 de março, após uma operação noturna, quatro funcionários do Kanbawza Tai News foram presos pelas forças de segurança. O diretor de redação Nann Nann Tai, o repórter Nann Win Yi, o editor U Tin Aung Kyaw e o segurança Ko Sai Sithu foram libertados na noite do dia seguinte. 

Jornalistas cidadãos enfrentam perigos para informar 

A reportagem do New York Times sobre os ataques à liberdade de imprensa em Mianmar é assinada por Richard Paddock, veterano correspondente do jornal americano na Ásia.  Ele destacou a entrada em cena dos jovens nativos da era das mídias sociais e do compartilhamento de informações diante das pressões sobre o jornalismo profissional.

Segundo ele, essa turma “entrou na briga”, arriscando suas vidas para ajudar a documentar a brutalidade dos militares. E diz que a função tornou-se tão comum que eles passaram a ser chamados pelas iniciais CJ (Citizen Journalist). 

Um vídeo no Twitter feito por um deles mostra o momento em que o freelance Ko Htet Myat Thu fotografava um protesto, foi baleado na perna e levado por militares. 

O ex-secretário do conselho de imprensa, Myint Kyaw, disse que a grande mídia de Mianmar passou a contar com os jornalistas cidadãos para obter vídeos e dicas de pauta. 

“Eles estão visando jornalistas profissionais. Por isso, nosso país precisa de mais CJs”, disse Ma Thuzar Myat, um dos jornalistas cidadãos. “Eu sei que posso ser morto em algum momento por fazer um vídeo mostrando o  que está acontecendo. Mas não vou recuar. ”

Outra CJ citada pela matéria do jornal americano, Thuzar Myat, de 21 anos, observou que poucas pessoas foram capazes de documentar os protestos em 1988, quando o Tatmadaw, como os militares são conhecidos, reprimiu um movimento pró-democracia massacrando cerca de 3.000 pessoas. 

Ela disse que vê como seu dever ajudar a capturar evidências da violência de hoje, embora um soldado já tenha ameaçado matá-la se  não parasse.

O Facebook anunciou que estava fornecendo um recurso de segurança para permitir que usuários em Mianmar reforçassem as configurações de segurança, bloqueando seus perfis para impedir o acesso de não amigos de forma que estranhos não possam  compartilhar ou baixar fotos em tamanho real e ver qualquer postagem na linha do tempo de uma pessoa.

O Tatmadaw tem um histórico de reprimir a oposição. Quando assumiu o controle em 1962, reinou por quase meio século antes de decidir dividir o poder com líderes civis eleitos e abrir o país para o mundo exterior.

Repressão em Mianmar 

A Human Rights Watch, com sede em Nova York, divulgou um relatório na sexta-feira (2/4) dizendo que centenas de pessoas, incluindo políticos, autoridades eleitorais, jornalistas, ativistas e manifestantes, estão desaparecidas. E que a junta militar se recusa a confirmar sua localização ou permitir o acesso a advogados ou familiares, em violação ao direito internacional.

“O uso generalizado de prisões arbitrárias e desaparecimentos forçados pela junta militar parece ter o objetivo de causar medo nos corações dos manifestantes antigolpe”, disse Brad Adams, diretor da Human Rights Watch para a Ásia.

Os governos devem exigir a libertação de todos os desaparecidos e impor sanções econômicas direcionadas contra os líderes da junta para responsabilizar esses abusos militares.”

Em 30 de março, a Associação de Assistência a Prisioneiros Políticos informou que 2.608 pessoas já foram detidas e pelo menos 521 mortas como resultado do golpe militar ocorrido no início de fevereiro.

Leia também: 

https://mediatalks.com.br/2021/03/24/jornalistas-entre-figuras-publicas-que-politica-de-moderacao-do-facebook-permite-atacar-ou-ter-morte-pedida/