A junta militar que governa Mianmar desde o golpe de estado em 1º de fevereiro libertou nesta sexta-feira (14/5) o jornalista japonês Yuki Kitazumi. Ele foi o  primeiro profissional de imprensa estrangeiro formalmente acusado pelo regime, e sua libertação é resultado da pressão do Japão sobre Mianmar.

Preso em abril, Kitazumi tinha sido indiciado na semana passada sob a acusação de espalhar fake news. A decisão põe  fim a um incidente diplomático entre os dois países. 

Segundo a agência de notícias japonesa Kyodo, o jornalista deixou Mianmar rumo a Tóquio na manhã de hoje. Funcionários da embaixada japonesa encontraram-se com o profissional no Aeroporto Internacional de Yangon, disse o ministro das Relações Exteriores, Toshimitsu Motegi. A partida de Kitazumi também foi confirmada por sites de notícias em Mianmar. 

TV estatal anuncia libertação “apesar da violação da lei”

Ao anunciar a decisão do governo, a emissora estatal MRTV ressaltou que Kitazumi “violou a lei”, ao confirmar que o país cedeu à pressão diplomática:

“Para se reconciliar com o Japão e melhorar nosso relacionamento, as acusações contra ele serão retiradas e ele será libertado de acordo com o pedido do governo japonês.”

Kitazumi vivia na cidade de Yangon, a maior de Mianmar. Além de cobrir o golpe, os protestos e os assassinatos para jornais e emissoras japonesas, ele também postava com frequência nas redes sociais sobre a situação e seu impacto sobre os cidadãos, o que não agradou aos militares.

O jornalista havia sido preso em casa no dia 8 de abril e indiciado no dia 3 de maio, com base no artigo 505 (a) do Código Penal, que estabelece prisão de até três anos para o crime de “incitamento”. 

Detenção de outros jornalistas estrangeiros

Outros jornalistas estrangeiros tinham sido detidos temporariamente e libertados em Mianmar nos últimos dois meses, mas nenhum havia sido formalmente indiciado como Kitazumi. 

Em março, um repórter da rede britânica BBC, Aung Thura, fora detido quando fazia uma matéria diante de um tribunal na capital, Nay Pyi Taw, e libertado três dias depois. E Thein Zaw, jornalista da Associated Press, ficou preso por mais de três semanas devido a reportagens sobre as manifestações. 

Tratamento pior para jornalistas locais

Tratamento bem pior estão recebendo os jornalistas locais. O site de notícias Mianmar Now, um dos únicos que continua a funcionar depois que boa parte os veículos independentes foi fechada pelo governo, informou que o repórter Min Nyo, do jornal DVB (Voz Democrática da Birmânia), foi condenado na quarta-feira (12/5). Ele recebeu uma pena de três anos de prisão por um tribunal dentro da Prisão de Pyay, sob a mesma acusação feita a Kitazumi.

O Código Penal de Mianmar tem sido usado pelas autoridades militares para perseguir jornalistas e ativistas, em violação aos direitos à liberdade de expressão.

A seção 505 (a) considera crime publicar ou divulgar “declaração, boato ou matéria, que possa levar qualquer oficial, soldado, marinheiro ou aviador do Exército, da Marinha ou da Força Aérea a se amotinar ou a outras formas de desrespeito ou a descumprir seu dever”. A punição prevista era de dois anos de prisão, mas depois do golpe foi ampliada para três.

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Pelo menos 80 jornalistas reprimidos

Segundo observadores locais, desde a tomada de poder pela Junta Militar quase 800 pessoas foram mortas e milhares detidas, incluindo pelo menos 80 jornalistas. O grupo de monitoramento Associação de Assistência a Presos Políticos (AAPP) afirma que 50 deles ainda estão na cadeia e metade foi processada. 

A Anistia Internacional divulgou em Londres na última quarta-feira (12/5) uma nota de repúdio à condenação do repórter do DVB e às violações contra a imprensa e ativistas:

“A condenação de Min Nyo deve ser anulada e ele deve ser libertado imediatamente − junto com todos os outros jornalistas, ativistas e defensores dos direitos humanos presos ou detidos apenas por sua oposição pacífica ao golpe militar.”

Tailândia decide se devolve jornalistas que fugiram de Mianmar

Além do Japão, a Tailândia também está em uma encruzilhada diplomática envolvendo Mianmar. No domingo (9/5), as  autoridades tailandesas prenderam três profissionais do DVB em Chiang Mai, norte do país, bem como dois ativistas. Segundo a Anistia Internacional, eles cobriram os protestos contra o golpe em Mianmar até 8 de março, quando a licença de TV do DVB foi suspensa e eles tiveram que fugir para a Tailândia. Os cinco estão detidos enquanto aguardam a decisão do tribunal sobre o caso.

A Anistia está pressionando a Tailândia para não devolver à força os jornalistas a Mianmar, sob o argumento de violação do direito internacional: 

“A não devolução é um princípio jurídico internacional que proíbe a transferência de indivíduos para outro país ou jurisdição onde enfrentariam um risco real de graves violações ou abusos dos direitos humanos. Faz parte do direito internacional, tornando-o obrigatório para todos os Estados, independentemente de terem ratificado ou não os tratados relevantes.”

O dia da morte da mídia independente

Desde o golpe, medidas para suprimir a liberdade de expressão e de imprensa vêm se sucedendo em Mianmar, a antiga Birmânia, no sudoste asiático. No dia 4 de abril o governo decretou bloqueio total do sinal de internet sem fio em banda larga, dificultando as comunicações por mídias sociais e o acesso a notícias por causa das conexões mais lentas. Não há mais jornais independentes circulando, e a maior parte da população é informada pelos veículos estatais.

A morte da mídia independente do país foi decretada em 18 de março pelo site de notícias Myanmar Now, um dos poucos que resistem e continuam a operar depois do golpe. Na véspera, a junta militar havia suspendido o The Standard Time (San Taw Chain). Antes dele, tinham sido fechados os jornais The Myanmar Times, The Voice, 7Day News e Eleven, restando apenas os online.

Na matéria, o site disse que a data seria lembrada como “o dia em que a breve era de liberdade de imprensa de Mianmar – por mais parcial e imperfeita que tenha sido – realmente morreu”. 

Há duas semanas, segundo o Myanmar News, a junta militar revogou a licença de publicação de outro meio de comunicação, o Myitkyina News Journal. E o Voice of Myamar também anunciou a suspensão de suas operações, depois que seu editor-chefe e um repórter foram detidos pelo regime. 

Jornalistas em listas de procurados

Outra forma de pressão tem sido a execração pública. A organização Repórteres sem Fronteiras denunciou que desde 4 de abril o governo inaugurou a prática de publicar listas de jornalistas procurados por transmitirem informações sobre os protestos pró-democracia. A relação também inclui figuras conhecidas, procuradas por expressarem publicamente apoio aos protestos.

A lista dos que “espalham notícias para afetar a estabilidade do Estado” é transmitida todas as noites em noticiários de TV e publicada na mídia impressa estatal. Os relacionados são apresentados como “acusados ​​de acordo com o código penal, por divulgação de informações contrárias aos interesses das Forças Armadas”.

No início de março, o YouTube confirmou à agência de notícias Reuters que havia tirado do ar os canais de veículos de imprensa associados ao regime. Os veículos retirados incluem a rede estatal MRTV (Myanma Radio and Television), bem como os militares Myawaddy Media, MWD Variety e MWD Myanmar.

Um centro para promover a “liberdade de expressão”

Ex-colônia inglesa que se tornou independente em 1948, Mianmar vem alternando períodos de governos autoritários com breves intervalos democráticos.

O golpe de 1º de fevereiro foi justificado pelas Forças Armadas como reação ao que chamou de “fraude generalizada” durante a eleição geral no final de 2020, vencida por Aung San Suu Kyi, da Liga Nacional para a Democracia (NLD). Os militares prometeram “eleições livres e justas” assim que o estado de emergência acabasse, mas a repressão aos protestos e violações à liberdade de imprensa sinalizam caminho oposto. 

Ao mesmo tempo em que suprime a mídia independente, a junta dá novos passos na direção de controlar as informações. Em comemoração ao Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, inaugurou em 2/5 um complexo estatal de mídia. O Myawady Media Center tem entre suas atividades a transmissão de notícias pela TV.  Foi apresentado pelo comandante da junta, Min Aung Hlaing, como “uma força que muito contribuirá para a cultura nacional e para os interesses nacionais do país”. 

Uma reportagem no site de notícias governista Global New Light of Mianmar informou que o centro de mídia “visa tornar a mídia pública confiável, contribuir para o desenvolvimento da vida social das pessoas de acordo com a ética da mídia e disseminar técnicas de mídia modernas em linha com a ética e com padrões internacionais”.

O discurso nem de longe lembra o de um país governado por uma junta militar por meio de um golpe. O comandante afirmou: 

“Cada país é bem fundamentado por pilares executivos, legislativos e judiciais por meio de um sistema de verificação e equilíbrio. Essa é a essência da prática democrática. A mídia é o quarto pilar para monitorar os três pilares mencionados.”

Mas alertou que a mídia local deve “prevenir a infiltração mais ampla” de ideias e da cultura de “países desenvolvidos”, em um recado claro para quem, estrangeiro ou local, tentar desafiar o regime. 

Um dos piores países no ranking de liberdade de imprensa

No último ranking de liberdade de imprensa da Repórteres Sem Fronteiras o país ficou na 140ª posição entre 180 países. No relatório, divulgado em abril deste ano, a entidade lamentou o retrocesso na liberdade de imprensa a partir do golpe, depois de um período de breve liberdade iniciado em fevereiro de 2011, quando tinham sido deixados para trás 50 anos de governo militar. As reformas adotadas na época haviam feito com que Mianmar subisse 20 posições no ranking da RSF entre 2013 e 2017.

Para a organização, a atual junta militar levou esse frágil progresso a um fim abrupto, voltando dez anos no tempo:

“Os jornalistas enfrentam novamente ameaças sistemáticas de prisão e censura. Muitos se resignam a trabalhar clandestinamente para poderem reportar o que está acontecendo e escaparem da polícia. Este golpe não foi uma surpresa total, visto que o clima para a liberdade de imprensa já havia piorado nos últimos três anos.”

Segundo a RSF, o principal sinal de que a situação estava começando a mudar aconteceu em 2018. Na ocasião, dois repórteres da Reuters que investigavam um massacre de civis da etnia Rohingya foram presos. Eles foram perdoados depois de mais de 500 dias detidos.

Mas essa condenação com base em evidências forjadas serviu, de acordo com a entidade, como um aviso para todos os jornalistas pensarem duas vezes antes de realizarem reportagens investigativas que poderiam aborrecer as “Tatmadaw”, como são conhecidas as forças armadas.