O governo britânico abriu na semana passada uma consulta pública para revisar a legislação atual de Segredos Oficiais do Estado, um conjunto de quatro atos datados de 1911, 1920, 1939 e 1989 que será substituído por uma lei única. Entre as propostas da comissão que elaborou o projeto está a criminalização de fake news espalhadas em favor de potências estrangeiras hostis ou para minar as liberdades acadêmicas e um tratamento diferente para o vazamento de informações confidenciais, inclusive no exterior e se feito por cidadãos de outras nacionalidades.

O texto de 67 páginas elaborado pelo Home Office (Secretaria Nacional do Interior), que tem entre as suas funções o combate ao terrorismo, ressalta o respeito à liberdade de imprensa. Mas aponta a necessidade de “equilíbrio” para proteger informações confidenciais que possam prejudicar o país, ainda que o vazamento tenha sido feito sob a justificativa de interesse público. As penas mais rigorosas podem desestimular denúncias que envolvam documentos oficiais à imprensa. 

A consulta fica aberta até 22 de julho. Na apresentação, o governo britânico destaca a necessidade de aumentar as penas de crimes existentes e de criar novas punições a fim de modernizar as leis “desatualizadas” da Grã-Bretanha para combater as ameaças:

A Secretária Nacional, Priti Pattel, disse:

“As campanhas de desinformação têm se tornado cada vez mais ferramentas para semear a discórdia, tentar interferir na democracia e perturbar o tecido da sociedade do Reino Unido por meio de divisão e polarização”.

A caracterização da disseminação de fake news como crime não é abrangida pela legislação britânica atual. Após sua aprovação, se comprovada a atuação em favor de interesses estrangeiros, qualquer pessoa que tente interferir com fake news na vida acadêmica ou na democracia britânica em eleições nacionais, regionais ou locais, ou ainda em referendos como a recente votação do Brexit, ficará sujeita à prisão.

A proposta não menciona quais são as potências estrangeiras hostis, mas surge após a suspeita de interferência russa nas eleições britânicas e nos ciberataques à infraestrutura digital do país. Também sucede rumores de intromissão da China nas universidades do Reino Unido para roubar propriedade intelectual e influenciar campanhas políticas. Como justificativa o texto da proposta de revisão diz:

“Operações de desinformação e informação se tornaram ferramentas essenciais para atores estatais e não estatais para semear a discórdia, tentar interferir na democracia do Reino Unido e causar perturbação social, estimulando a divisão e a polarização.

Isso virou uma ameaça em constante evolução devido à natureza ampla e rápida em que a informação pode se espalhar online, e a maior velocidade em que os atores podem produzir e legitimar narrativas prejudiciais ao país.”

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A medida tornará os crimes previstos pela Lei de Segredos Oficiais mais fáceis de serem objetos e processos judiciais e aumentará as sentenças máximas disponíveis para violações que atualmente são punidas com o uso de  outras leis, como fraude e suborno. Dessa maneira, a sabotagem, a espionagem econômica e a interferência estrangeira passsarão a ser caracterizadas como novos crimes autônomos.

Atualmente, apenas a espionagem acarreta a pena máxima de 14 anos, com todos os outros crimes, incluindo o vazamento de segredos oficiais, sujeitos a penas de até dois anos.

Vazamento de informações confidenciais x interesse público 

A proposta de revisão inclui uma alteração nas classificação de informação sensível, que faz parte da legislação de 1989, e também a possibilidade de punição para quem vazar dados confidenciais no exterior, sendo ou não cidadão britânico, o que a lei atual não permite. 

Outra novidade é a criação de um órgão independente e com poderes legais para receber e investigar denúncias de irregularidades ou crimes envolvendo vazamento de informações secretas. Os acusados teriam direito a recurso, podendo provar que a divulgação foi feita para proteger o interesse público.

O texto sugere a intenção de coibir o vazamento por parte de funcionários do governo, ao ressaltar que “já existem salvaguardas que lhes permitem levantar questões sem a necessidade de realizar um divulgação não autorizada”, levando o problema a instâncias internas dentro do próprio governo. 

Também faz referência à liberdade de imprensa, mas clama por equilíbrio: 

A liberdade de imprensa é parte integrante dos processos democráticos do Reino Unido, assim como a capacidade de os indivíduos denunciarem e responsabilizarem as organizações, quando houver sérias alegações de irregularidades. 

No entanto, deve haver equilíbrio para proteger informações oficiais (incluindo informações de segurança nacional), quando o seu comprometimento tiver o potencial de prejudicar o Reino Unido, seus cidadãos ou interesses, com a divulgação podendo levar a graves danos em muitos casos”.

A proposta sustenta que “a preocupação fundamental é que uma pessoa que busca fazer uma divulgação de dados não autorizada, seja ela do governo ou alguém externo que esteja na posse de informações oficiais, raramente (ou nunca) será capaz de julgar com precisão se o interesse público em divulgar as informações superam os riscos causados por essa divulgação”, ainda que ela venha a ser punida: 

“Mesmo se a conclusão posterior for de que o vazamento não era de interesse público e a pessoa que o fez cometeu um crime, isso não desfaz o dano potencial causado pela divulgação.”

A ideia vem despertando controvérsia. Em um artigo no jornal The Times, o advogado Alex Bailin, do escritório Matrix Chambers, disse achar que “a falta de uma defesa legal para descriminalizar divulgações de interesse público quase certamente coloca o Reino Unido em violação de obrigações legais internacionais, notadamente a Convenção Europeia de Direitos Humanos”. 

Ele usou como exemplo a hipótese de um funcionário público revelar interferência ilegal do governo nas vacinas contra o coronavírus. “Ele estaria agindo pelo bem da sociedade. No entanto, ele também estaria violando os Atos de Segredos Oficiais e não teria defesa se processado”. 

Bailin observa que o funcionário público teria a opção de vazar a informação a um parlamentar, que com imunidade poderia revelar o ato sem risco de processo. No entanto, segundo o advogado, ainda assim o funcionário público correria o risco de ser preso. 

Eficácia é posta em dúvida se não houver responsabilização das plataformas

Outros críticos da proposta do governo britânico disseram que ela não será eficaz se a ameaça das fake news não for combatida em conjunto com outra regulamentação apresentada nesta terça-feira: a Lei de Danos Online. Ela impõe às plataformas o “dever de cuidar”, que as forçará a agir contra o conteúdo prejudicial mesmo que seja legal, incluindo a desinformação.

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As críticas também partiram da imprensa. Matt Dathan, do The Times, comparou a prisão de disseminadores de fake news à de traficantes de drogas, dizendo que logo aparecem substitutos. Para ele, só ocorrerá uma grande mudança quando as gigantes tecnológicas forem forçadas a implantar algoritmos que combatam as notícias falsas:

“São as plataformas que espalham a desinformação e que são os veículos das notícias falsas. Sem Facebook, Twitter e YouTube, Moscou não tem voz.”

No Brasil, dois projetos já aprovados em primeira instância

Atualmente, a disseminação de fake news também não é um crime no Brasil, e as possíveis punições podem acontecer nos casos em que forem utilizadas como um veículo para a realização de um crime que já esteja contemplado no Código Penal, como a calúnia ou a difamação. Mas já existem dois projetos de leis aprovados em primeira instância, um no Senado e outra na Câmara.

Uma iniciativa que tem a mesma preocupação da do Reino Unido quanto ao impacto negativo das fake news na democracia foi aprovada agora em maio na Câmara Federal e depende de aprovação do Senado. Trata-se do projeto de lei 2462/1991, que revoga a Lei de Segurança Nacional e estabelece diversos crimes contra o Estado Democrático de Direito e a Humanidade, incluindo os que atentam contra o funcionamento de instituições democráticas no processo eleitoral.

Entre os novos crimes previstos, está descrito o crime de comunicação enganosa em massa, caracterizado pelo disparo em massa de fake news em aplicativos como o WhatsApp. O responsável estará sujeito uma pena de prisão de um a cinco anos, mais multa. Esta é a definição do delito na proposta:

“Promover ou financiar, pessoalmente ou por interposta pessoa, mediante uso de expediente não fornecido diretamente pelo provedor de aplicação de mensagem privado, campanha ou iniciativa para disseminar fatos que sabe inverídicos capazes de comprometer o processo eleitoral.”

Outra iniciativa é o projeto de lei 2630 que criminaliza as fake news na internet e nas redes sociais, aprovado em junho de 2020 no Senado, e aguardando aprovação da Câmara.

A proposta aguarda parecer do relator da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) e cria a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, aplicável às redes sociais e aplicativos de mensagens disponíveis aos brasileiros que tenham pelo menos dois milhões de usuários.

Os principais pontos incluem a obrigação das plataformas de excluir as contas falsas, criadas ou usadas “com o propósito de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público”. Elas tambémterão que limitar o número de envios de uma mesma mensagem e o número de membros por grupo, além de verificar se o usuário autorizou sua inclusão no grupo ou na lista de transmissão e desabilitar a autorização automática para inclusão em grupos e em listas de transmissões.

Seu autor, o senador Alessandro Vieira, ressalta que a liberdade de expressão está garantida na Constituição, mas sem o direito da manifestação de opinião de forma oculta ou dissimulada, que impeça a sua responsabilização”.

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