Uma entrevista celebrizada como um dos momentos mais marcantes da história da TV britânica transformou-se, 26 anos depois, em um dos maiores constrangimentos já enfrentados por um órgão de imprensa.
A rede britânica BBC publicou hoje o relatório final de uma nova investigação sobre a entrevista concedida pela Princesa Diana em 1995 ao repórter Martin Bashir, que a deixa em maus lençóis. O documento atesta que a emissora “encobriu as táticas que Bashir usou para garantir a entrevista” – o uso de extratos bancários falsos apresentados ao irmão de Diana, Charles Spencer, para convencê-lo de que a princesa estava sendo espionada.
A reabertura da análise do caso foi atribuída pela BBC ao ex-juiz da Suprema Corte John Dyson, que considerou os métodos usados pelo jornalista como desonestos e em desacordo com as políticas da rede. Sua conclusão não perdoou o então chefe de redação da BBC, Anthony Hall, líder da apuração aberta na época, que concluiu em 1996 que Martin Bashir era “um homem honesto e honrado”. A atual investigação classifica a primeira de “falha e ineficaz”.
Na entrevista, vista por mais de 23 milhões de espectadores, Diana fez a famosa revelação sobre a infidelidade do Príncipe Charles, “há três pessoas nesse casamento”, que acelerou o divórcio. Na época, despertou estranheza o fato de ela ter falado a um repórter iniciante, em vez escolher alguém mais famoso e experiente.
Para conseguir a entrevista, Martin Bashir pediu a um designer da própria BBC para falsificar os extratos bancários, fazendo a princesa acreditar que pessoas da sua própria equipe estavam sendo pagas para vigiá-la.
O caso voltou à tona em outubro do ano passado, depois que a emissora Channel 4 exibiu um especial em comemoração aos 25 anos da entrevista. O programa falou dos bastidores e trouxe de volta a história da falsificação, que tinha sido abafada na época.
Pressionada, a BBC abriu na ocasião a investigação conduzida por John Dyson. Em seu relatório de 127 páginas, o ex-Juiz concluiu que a rede “ficou aquém dos altos padrões de integridade e transparência que são sua marca registrada”.
O designer que produziu a falsificação foi demitido. Bashir teve melhor sorte. Ganhou notoriedade e subiu na carreira, virando estrela da BBC. Até que em 2004 mudou-se para os Estados Unidos para apresentar o Dateline, da ABC, supostamente com um contrato de US$ 1 milhão. Foi depois para a MSNBC, onde chegou a ter um programa próprio.
Em 2013, saiu da rede por comentários impróprios a respeito da então candidata a vice-presidente Sarah Palin. Três anos depois foi acolhido de volta pela BBC, como editor de religião. Desde que o escândalo voltou à pauta, estava afastado por motivos de saúde, mas chegou a ser fotografado andando na rua.
Famosos em defesa da BBC
Diante das pressões para que a verdade sobre o episódio fosse devidamente apurada e informada à sociedade, a publicação do relatório era inevitável. Mas o momento não poderia ser pior.
A BBC vem enfrentando questionamentos por parte da administração do primeiro-ministro Boris Johnson e de setores da sociedade a respeito de sua imparcialidade, de seu modelo de negócio e da suposta concentração em temas de interesse da audiência dos grandes centros, sobretudo dos londrinos.
Nesta quinta-feira (20/5), um elenco de celebridades como o ator Hugh Grant e os escritores Hillary Mantel e Salman Rushdie, que fazem parte do grupo British Broadcasting Challenge, publicou uma carta aberta endereçada ao Secretário Nacional de Mídia, Esportes e Digital, Oliver Dowden. Eles acusam o governo de planejar mudanças drásticas na atual estrutura da BBC de forma secreta e fora das regras estabelecidas para comissões dessa natureza:
“Estamos preocupados que o governo esteja sendo assessorado por um comitê que não foi estabelecido sob as diretrizes do Gabinete de Ministros e que se reúne em segredo, sem registro público de sua agenda, discussões ou recomendações.”
O grupo afirma que “em uma em uma era de desinformação e de politização de notícias e de opiniões, é hora de fortalecer as emissoras de serviço público do país em vez de diminuí-las; impedir “ataques políticos e financeiros míopes” e fornecer uma visão de futuro que permita ao sistema de emissoras públicas crescer “de forma confiável e independente“.
O episódio da fraude de Martin Bashir para enganar Diana ocorreu há longínquos 26 anos, e não está relacionado ao momento atual vivido pela BBC. Mas para a opinião pública e os críticos de seu modelo, é um arranhão que não vai ajudar a enfrentar os que querem mudanças, como o fim da taxa obrigatória paga por todas as residências britânicas que utilizam os canais da rede, mesmo via internet.
Rumores abafados
A conversa de uma das maiores celebridades da história recente com o então jovem repórter Martin Bashir é tida nos meios jornalísticos britânicos como “a entrevista do século”, por ter revelado fatos íntimos do desastroso conto de fadas.
A princesa não apenas concordou em falar, como adicionou o requinte de crueldade de pedir que a entrevista fosse veiculada no dia do aniversário do herdeiro do trono britânico.
O irmão de Diana, Charles Spencer, que intermediou os contatos para a realização da entrevista, foi também quem iniciou a pressão que culminou com o relatório agora divulgado. Depois que a entrevista do Channel 4 foi exibida em 2020, ele exigiu da BBC uma investigação formal, afirmando que se não tivesse visto os extratos, jamais teria convencido Diana a dar a entrevista. Sua reivindicação recebeu o apoio dos filhos de Diana, os príncipes William e Harris.
No fim de 2020, a BBC desculpou-se formalmente, mas não conseguiu evitar a abertura da investigação. Sua conclusão reverte o veredito da apuração feita na época e que não resultou em nada, embora a fraude já tivesse sido denunciada na ocasião pelo jornal Mail on Sunday.
O caso também chamuscou o jornalista Tony Hall (Lord Hall), antecessor do atual diretor-geral, Tim Davie por sua conduta em 1996. Chefe de redação da BBC na época, ele foi o responsável pela investigação, que não puniu ou repreendeu o que foi classificado de “lapso” do repórter, classificado como “homem honesto e honrado”.
O relatório divulgado hoje examinou um dossiê fornecido ao ex-juiz Lord Dyson, incluindo oito páginas de anotações que o irmão de Diana fez da conversa entre Bashir e a princesa no primeiro encontro de ambos em 19 de setembro de 1995, cerca de dois meses antes da entrevista.
O jornal Daily Telegraph diz ter visto uma cópia das notas, que incluiriam uma lista de alegações (supostamente de Bashir), entre elas a de que os telefones de Diana estariam grampeados e que ela estaria sendo seguida.
Antes da divulgação do relatório, o Daily Telegraph conversou com Richard Ayre, diretor editorial da BBC em 1995. Ele afirmou que nunca teria permitido que os extratos fossem falsificados e mostrados ao conde Spencer, o que ele só consideraria aceitável apenas no caso de investigação de crimes graves.
Em março deste ano, a Scotland Yard (polícia metropolitana de Londres) anunciou que não haveria investigação criminal sobre as alegações de “atividade ilegal relacionada a um documentário transmitido em 1995, depois da avaliação por detetives especializados”.
O relatório integral da investigação anunciada pela BBC pode ser visto aqui: dyson-report-20-may-21
Um relato explosivo de outro personagem da história
“O caso vai além de Bashir, dizendo respeito a como a BBC mentiu não apenas para esconder o fracasso de seus padrões editoriais (..) mas para proteger a cadeia de comando que deveria compartilhar a responsabilidade pelo escândalo”.
Mangold apontou o então editor do Panorama (já falecido), Steve Hewlett, como responsável por encobrir o caso na época:
“Não pretendo ter provas – afinal, os acobertamentos são elaborados para não deixar impressões digitais -, mas todas as evidências apontam que Hewlett está por trás do acobertamento da BBC para proteger a si mesmo, a Bashir e a toda a empresa. Acredito que ele organizou pessoalmente uma operação da BBC para colocar a culpa do escândalo em imaginários “colegas invejosos, encrenqueiros e vazadores” da equipe do Panorama. E quem era o colega ciumento (sem nome)? Eu.”
Mangold foi demitido meses depois do episódio e diz ter escrito o relato com profunda tristeza e sem vingança porque Hewlett era seu chefe e, na sua opinião, um editor de verdadeiro talento:
“Mas a verdade é que ele cometeu um erro catastrófico na entrevista com Diana. Ele permitiu que Bashir, um profissional não testado, trabalhasse sem um produtor sênior do Panorama, que deveria estar constantemente ao seu lado, na maior e mais sensível história que o programa havia abordado.”
O veterano jornalista diz ser “uma lei imutável da BBC que repórteres de atualidades, independentemente de sua reputação e experiência, tenham produtores que são seus chefes e policiais pagos pela administração. “
“Dado que Bashir não era um repórter da equipe, mas sim um freelance contratado, era ainda mais crucial para ele ser supervisionado em todas as etapas. Lançá-lo sem qualquer supervisão imediata desde o primeiro dia do projeto significava que Hewlett estava fazendo uma grande aposta, pois ele não teria controle nem consciência do perigoso comportamento ético de Bashir.”
Segundo Mangold, “para ocultar essa falha administrativa, Hewlett teve que agir rápido para executar um encobrimento envolvendo seus chefes e a assessoria de imprensa da BBC”. Ele acusa o ex-chefe de ter criado uma história falsa para explicar o escândalo, usando a máquina de publicidade da própria BBC para convencer a imprensa mundial. “O inocente seria manchado, e o culpado seria inocentado”, afirmou no artigo publicado pelo The Times.
Mangold não esconde a mágoa pela condução do caso:
“O encobrimento criou a ficção de que o Panorama estava crivado de colegas invejosos de Bashir, encrenqueiros e vazadores, e que todos seríamos descobertos e demitidos. Foi tão bem-sucedido que todos os autores do escândalo receberam aclamação, e dois funcionários totalmente inocentes tiveram suas carreiras destruídas e, no meu caso, a reputação manchada”.
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