O caso de Roman Protasevich, jornalista preso na Bielorrússia em uma operação espetacular ordenada pelo chamado “último ditador da Europa”, o presidente Aleksander Lukashenko, colocou em evidência o poder dos jornalistas cidadãos para combater a censura e mobilizar a sociedade contra o autoritarismo.
Capturado a bordo de um avião que voava entre a Grécia e a Lituânia e foi obrigado a fazer um pouso forçado em Minsk neste domingo (22/5), Protasevich é o editor do Nexta, um canal que desafiou a censura aos meios de comunicação tradicionais utilizando o Telegram, uma plataforma livre da moderação das redes sociais.
O Nexta surgiu no YouTube há seis anos, criado pelo então adolescente Stepan Putilo, para veicular paródias musicais de cunho político. Hoje são três canais − Nexta, Nexta Live e Luxta −, que viraram uma poderosa máquina.
O sistema é baseado na Polônia, e aproveitou a característica de transmissão segura de informações sob anonimato do Telegram para transformar-se na principal fonte de noticias no país desde que a conexão de internet foi severamente interrompida após as eleições de 9 de agosto de 2020, vencidas pela oposição. O resultado não foi aceito por Lukashenko, no poder desde 1994, dando início a uma série de conflitos.
A crise política ajudou a elevar o número de seguidores, de 300 mil no início de agosto para mais de dois milhões em apenas dois meses, juntando os três canais. Não é pouco em um país com cerca de dez milhões de habitantes. O Nexta Live tem agora mais de 1,2 milhão de membros e o Nexta TV, 588 mil. Pode ser acessado também pela internet.
Em entrevista ao Euronews ano passado − canal que agora está banido da Bielorrússia − , Roman Protasevich, de 25 anos, descreveu o canal como “uma organização de mídia descentralizada do século 21, usando vários sites, sem um site ou página central”.
Nexta significa “alguém” no idioma local. Segundo Protasevich, o nome reflete a ideia de uma rede de milhares de bielorrussos compartilhando noticias, contando histórias que não seriam veiculadas na mídia estatal ou mesmo em veículos independentes, por temor de represálias. Ele assegura receber documentos e informações de dentro do próprio governo, transmitidos por funcionários de alto escalão insatisfeitos com os rumos políticos.
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Não é só. O canal tornou-se uma ferramenta de mobilização para os protestos. Passou a compartilhar mapas mostrando onde a polícia estava, indicando locais para manifestantes se refugiarem, fazendo contatos com ativistas e advogados especializados em direitos humanos e orientando sobre como contornar os bloqueios da internet impostos pelo governo.
Driblando a censura estatal
Desde a prisão de seu editor-chefe, o canal tem transmitido notícias sobre o ocorrido, driblando a censura local. Na manhã desta segunda-feira (24), um post fazia um resumo da história:
O que se sabe sobre a detenção de Roman Protasevich no momento:
?Lukashenko cometeu um ato de terrorismo de estado e vários países estão iniciando uma proibição total de voos civis no espaço aéreo da Bielorrússia. A Air Baltic já decidiu evitar voar, sem esperar pela proibição.
? O Departamento de Estado dos EUA e o presidente da Comissão Europeia exigem a libertação imediata de Roman Protasevchia.
?Junto com Roman Protasevich, sua namorada Sofia Sapega foi retirada do vôo. Ela é cidadã da Federação Russa, estudando para um mestrado na European State University (YSU) em Vilnius no âmbito do programa “Direito Internacional e da União Europeia”.
?Os pais de Roman Protasevich estão convencidos de que a prisão de seu filho é uma operação pré-planejada, cuidadosamente preparada não só pelos serviços especiais da Bielorrússia: “Esta é uma razão para as autoridades ilegítimas mostrarem como podem agir. No entanto, o mundo inteiro vê que esses métodos são desumanos e ilegais. Muitos meios de comunicação chamam isso de ato terrorista. Eu concordo totalmente com isso”.
? O Gabinete do Procurador-Geral da Lituânia lançou uma investigação sobre a aterrissagem forçada de um avião da Ryanair em Minsk.
?A Ryanair comentou secamente sobre o incidente com a detenção do avião. Eles se desculparam e disseram que o controle de tráfego aéreo bielorrusso alertou os pilotos sobre a ameaça potencial e os instruiu a pousar o avião no aeroporto mais próximo − em Minsk. Mas eles mantiveram em silêncio sobre o fato de que a aeronave estava mais perto de Vilnius [capital da Lituânia] e que os passageiros foram detidos a bordo.
? O chefe da Ryanair acredita que havia funcionários da KGB bielorrussa a bordo do avião com Protasevich e chamou o incidente com o avião de “um sequestro apoiado pelo Estado”.
O modelo adotado pelo Nexta colocou em evidência o valor das mídias sociais, tão criticadas por serem território fértil para a proliferação de fake news, como meio de expressão em sociedades onde não há liberdade de imprensa. E a prisão espetacular de seu editor pode ter sido um tiro no pé do governo, pois ajudou a dar notoriedade global a um personagem que até então pouco conhecido fora dos meios locais e dos círculos políticos e jornalísticos.
Euronews banida em abril
A captura de Roman Protasevich virou uma questão diplomática, com manifestações da União Europeia e de vários outros países, ameaçando sanções à Bielorrússia, incluindo bloqueio aéreo.
Mas não foi essa primeira incursão de Alexander Lukashenko sobre a liberdade de imprensa. No dia 12 de abril ele havia anunciado o banimento da Euronews da Bielorrúsia. A emissora é a líder de difusão de notícias na Europa. O canal é distribuído em treze línguas para mais de 100 países, incluindo o Brasil.
Um comunicado do Ministério do Interior informou que o órgão regulador decidiu não renovar a licença de operação da Euronews. O motivo alegado foi o de que a emissora veiculava anúncios em inglês, em desrespeito à legislação que obriga anúncios em russo ou bielorrusso.
O informe oficial acrescenta que no lugar da Euronews entraria uma programação produzida pela Rússia, sobre a Segunda Guerra Mundial.
A decisão, considerada uma censura aos meios de comunicação, foi duramente criticada pela Associação de Jornalistas da Bielorrússia (BAJ), pela Federação Europeia de Jornalistas (EFJ) e pela Federação Internacional de Jornalistas (IFJ).
Em comunicado conjunto, a IFJ e a EFJ condenaram a proibição da transmissão do Euronews na Bielorrússia como “uma nova tentativa do governo bielorrusso de restringir a liberdade de imprensa e de restringir o direito de seus cidadãos à liberdade de informação”.
50 representações de jornalistas pediram ação contra violações
A IFJ e a EFJ ressaltaram que a decisão foi tomada em meio à crescente pressão das autoridades sobre os órgãos de imprensa que operam na Bielorrússia. Dezenas de jornalistas e funcionários da mídia foram presos por cobrirem manifestações antigovernamentais.
Em março, líderes de 50 sindicatos e associações de jornalistas de 34 países europeus exortaram seus governos a tomar medidas em face das constantes violações dos direitos humanos e da liberdade de imprensa na Bielorrússia.
Ales Bialiatski, líder da Viasna, principal organização humanitária do país, disse que a medida revela “a situação de desespero em que se encontram os meios de comunicação independentes na Bielorrússia”:
“O Euronews permitia aos telespectadores se manterem a par dos acontecimentos europeus. Vai ser agora substituído por um canal de propaganda. A população da Bielorrússia está sendo isolada da informação e é isso o que o regime quer”.
O país da Europa mais perigoso para jornalistas
O ranking anual da organização Repórteres Sem Fronteiras colocou a Bielorrússia na 158ª posição em liberdade de imprensa. A entidade afirma ser o país mais perigoso da Europa para a imprensa:
“Jornalistas e blogueiros críticos são sujeitos a ameaças e violência e são presos em grande número. Existem cortes na internet. Os principais sites de notícias estão bloqueados. A mídia impressa é censurada e o acesso à informação é restrito.
Desde a disputada eleição presidencial, em agosto de 2020, os poucos meios de comunicação independentes foram perseguidos pela polícia, tentando impedir a cobertura dos enormes protestos de rua.
Eles já foram perseguidos pelas autoridades, multados e forçados ao exílio, mas não haviam sido perseguidos nessa escala. As batidas e os processos são muito mais frequentes e as sentenças de prisão cada vez mais longas. Apesar dos riscos e do aumento da propaganda na mídia estatal, jornalistas corajosos continuam a cobrir os acontecimentos.”
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