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Desfecho da briga de poder no The Guardian é vitória do modelo de jornalismo gratuito do jornal

Katharine Viner - Editora The Guardian - foto: Perfil Twitter

Chegou ao fim uma batalha que vinha sendo travada dentro de um dos mais importantes jornais globais, o britânico The Guardian. A CEO Annete Thomas anunciou ontem (9/6) a decisão de deixar o posto após 15 meses. A decisão representa uma vitória da jornalista Katharine Viner. Ela dirige a redação desde 2015 e tornou-se um símbolo da defesa do jornalismo de qualidade e do modelo de negócio baseado na contribuição voluntária de membros. 

O motivo do embate entre as duas, que chegou a ser noticiado algumas vezes pela imprensa britânica e virou alvo de especulações nos bastidores, era o tamanho do investimento do grupo no jornalismo.

Viner queria aumentar os recursos, enquanto Thomas defendia uma abordagem financeira mais contida. E tentava elevar as receitas advindas do digital, passando a cobrar mais pelo conteúdo que hoje é acessado livremente. 

Entre os rumores que se seguiram à notícia está também um “conflito de personalidades”, que teria feito com que “questões menores se transformassem em grandes desentendimentos”. Mas há outros componentes que não podem ser ignorados além das questões financeiras e estratégicas. 

Katharine Viner – Foto Perfil Twitter

Viner tem 50 anos e é inglesa da gema, nascida em Yorkshire. Formou-se em língua inglesa em Oxford e entrou para o Guardian em 1997, como redatora. Foi eleita para o cargo atual em uma votação entre os membros da redação, tornando-se a primeira mulher a ocupar o posto em 184 anos.

Ela figura entre os jornalistas globais mais relevantes e engaja-se em causas como mudança climática, liberdade de expressão e feminismo. É crítica do papel das plataformas digitais na desinformação. 

Annette Thomas – Foto Perfil Twitter

Thomas tem 56 anos, é americana e tem um passado acadêmico. Formou-se em Bioquímica e Biofísica em Harvard e tem doutorado em Filosofia, Biologia celular e Neurociência por Yale. Trabalhou por vários anos na imprensa acadêmica, mas nunca em um veículo de grande circulação. 

As diferenças culturais entre britânicos e americanos na forma de conduzir negócios (e relacionamentos pessoais, em que até o sotaque importa), aliadas a vivências desiguais no universo do jornalismo não devem ter ajudado em nada a encontrar o equilíbrio. 

O jornal The Times, que revelou a notícia na tarde de quarta-feira (9/6), citou uma fonte anônima que resumiu o conflito entre as duas: 

“Annette é uma mulher corporativa de alto gabarito orientada por processos, e demanda controle total. Kath é uma ‘Guardiã’ que vive e acredita plenamente em sua missão.”

Modelo de propriedade

É um padrão que se repete em muitas organizações jornalísticas que trazem executivos fortes para solucionar problemas do negócio.  No caso do Guardian, a tradição jornalística falou mais alto. E seu modelo de propriedade também ajuda a explicar porque a balança pendeu para Katharine Viner.

O jornal não tem um dono. A holding Guardian Media Group é a editora do site de notícias e dos jornais Guardian e Observer, a versão dominical do jornal. Conta com um conselho, com maioria de diretores independentes. Mas é controlado pelo Scott Trust, um fundo criado para salvaguardar o futuro da publicação. Tanto Viner quanto Thomas integram o conselho e o trust

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O Scott Trust controla um fundo de investimento que detinha £ 956 milhões em março de 2020. Em um ano típico, gera rendimentos entre £ 25 milhões e £ 30 milhões, que são aplicados nos jornais, deficitários apesar da contribuição voluntária dos leitores.  

No ano passado, o Guardian sofreu uma saída de caixa de £ 16 milhões, inferior à que se previa, pois cortou 180 funcionários e o público pagante aumentou. No final de novembro, tinha 548 mil doadores regulares e 352 mil  assinantes de seus aplicativos premium e edições para tablets − representando um aumento de 60% em relação ao ano anterior.

A saída de Thomas pode acelerar revisões no formato atual.  O presidente do GMG, Neil Berkett, deve deixar o cargo no ano que vem, enquanto o Scott Trust também busca um novo presidente para seu conselho.

Na semana passada, Ole Jacob Sunde, presidente interino do Scott Trust, disse à equipe que estava procurando reformar os procedimentos de governança.

“Devemos nos perguntar se a estrutura atual, com dois conselhos e linhas de comando comerciais e editoriais separadas, é o que funciona melhor para o nosso futuro nas próximas décadas”, escreveu ele em um e-mail para toda a empresa.

A saída 

O desligamento da CEO foi anunciado com grau de franqueza incomum para situações do gênero. No comunicado, Annete Thomas assumiu que não conseguiu levar a cabo seu plano de negócio por ter encontrado resistências internas, alfinetando as atuais estruturas, que a seu ver “precisam evoluir”: 

“Decidi deixar o cargo de CEO, pois a governança e as estruturas atuais precisam de mais tempo para evoluir totalmente para apoiar a implementação do plano estratégico centrado no leitor”.

Ela perdeu a briga mas não sairá de mãos vazias. Segundo o jornal The Times, em vez do aviso prévio deve receber o pagamento de um ano de salário e benefícios, totalizando 600 mil libras (equivalente a quase R$ 4,3 milhões). 

Leva também na bagagem parte do mérito por uma performance financeira notável em um ano marcado pela pandemia, em que o jornal reduziu as perdas operacionais em 50%.

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Na questão do mérito, é quase impossível identificar o quanto do sucesso deve-se ao trabalho meramente financeiro e o quanto é resultado do jornalismo de qualidade praticado pela redação, que atraiu e fidelizou os leitores, fazendo-os abrir a carteira para pagar por algo que é oferecido de graça.

O jornal viveu um ano de ouro em audiência, catapultada por duas grandes pautas: a pandemia e Donald Trump. Por ter investido fortemente em investigar os atos do ex-presidente e cobrir o que ele dizia, o Guardian conquistou leitores não apenas no Reino Unido, mas também nos Estados Unidos. 

O modelo de assinaturas 

Mais do que uma briga entre executivos pelo poder, o desfecho da batalha no Guardian tem implicações sobre o modelo de negócio sem paywall, que pelo menos neste round saiu vencedor, já que Annete Thomas não conseguiu realizar seu plano de buscar mais receita dos leitores online. 

O The Guardian é uma das mais notáveis experiências da contribuição voluntária como fonte de recursos. Mas tem uma história e um perfil que não se comparam com os de muitos outros, além de operar em um mercado diferente. 

No Reino Unido, os grandes jornais declaram sua opção política abertamente, apoiando um dos dois grandes partidos que historicamente se revezam no comando do país, o Conservador ou o Trabalhista.

O Guardian é trabalhista até a raiz dos cabelos, e não esconde isso. Sua posição é crítica não apenas ao governo local de Boris Johnson, mas também a regimes direitistas no plano internacional.  É um dos jornais britânicos que mais publica matérias negativas sobre atos do governo de Jair Bolsonaro. Essa linha política bem definida faz com que seus leitores sejam mais do que leitores. São aliados.

O Guardian tornou-se uma espécie de “time” para o qual muitos liberais torcem. Essa relação particular com o público, aliada à qualidade de seu jornalismo, vêm assegurando o crescimento do modelo adotado desde 2016, ancorado na base de leitores e nas  contribuições voluntárias.

Em abril de 2021, durante o Seminário Internacional de Jornalismo Online promovido pelo Knight Center de Jornalismo para as Américas, Viner contou em conversa com o editor-chefe do jornal San Francisco Chronicle, Emilio García-Ruiz, que a opção pelo modelo foi vista inicialmente com descrédito. Ao ponto de ser comparada a um “pratinho de mendigo” pela Private Eye, uma revista satírica: 

“Muitos não acreditavam que iria funcionar. Nunca dissemos que nunca faríamos um acesso pago, mas acho que encontramos uma alternativa para o acesso pago”. 

O jornal tem assinaturas premium para a versão digital e também publicidade impressa, embora em baixo grau. A maior fonte de receita é a colaboração voluntária, que aumentou em 2020, mas continua não pagando as contas, assumidas pelos recursos do fundo. 

Para convencer o leitor, o Guardian tem um processo bem estruturado e sedutor. Quando uma notícia é aberta, o site informa quantas matérias foram lidas em um determinado período de tempo, lembra a importância de ter acesso ao jornalismo independente baseado na “verdade e integridade” e pede a contribuição.

No final de cada matéria há um longo statement sobre a importância de financiar o bom jornalismo. E algumas vezes aparece o pedido para o leitor se registrar, enfatizando que não se trata de paywall

“Acho que o que você precisa para o modelo funcionar é um leitor que está muito envolvido com você e talvez uma espécie de perspectiva distinta. Não há muitas organizações de notícias globais de nossa escala que também sejam progressistas e não tenham um proprietário”, disse Viner.

Honrando a imagem de “cria” da redação, ela defendeu os valores básicos do jornalismo: 

“É realmente fundamental  acreditar no que você faz bem e não ser puxado pelo que estiver na moda no momento. Seja a boa e velha matéria ou a apuração moderna, com uso de novas técnicas, É importante fazer reportagem − descobrir o que está acontecendo, coisas que as pessoas não sabem ou que alguém quer esconder. Isso é apenas voltar ao básico e manter sua verdadeira identidade.”

A perspectiva distinta do The Guardian, disse Viner, está em seu enfoque temático, como nas questões ambientais, nas ciências, na saúde, sem descuidar do jornalismo investigativo:

“E isso não precisa ser uma estrutura separada. Pode ser uma pequena equipe no núcleo, com pessoas entrando e saindo de um grupo investigativo de acordo com a pauta. Acho que isso dá um verdadeiro dinamismo e uma espécie de senso de direção”.

A pandemia 

A pandemia afetou o trabalho de um jornal que tem um forte espírito colaborativo em sua redação. Viner contou como o efeito do isolamento social foi amenizado. A reunião matinal diária tornou-se virtual. 

Essa modalidade passou a reunir mais profissionais do Guardian de todo o mundo, segundo ela. Agora eles se encontram às segundas, quartas e sextas-feiras, todos conectados online, chegando a reunir 550 profissionais. 

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Há também “almoços aleatórios” às sextas-feiras, em que dois funcionários que não se conhecem se encontram para conversar e almoçar juntos online. Mas a editora disse que eles sentem falta de se reunir para debater ideias, com a injeção de criatividade que isso envolve.

Quando García-Ruiz perguntou sobre a reabertura do trabalho presencial, Viner adiantou que certamente estabelecerá um modelo híbrido, devido à situação difícil e incerta que ainda existe.

Como estratégia de mídia, ela reforçou que voltar ao básico, às origens do veículo, resgatar sua identidade histórica, é o mais importante. Mas, acima de tudo, continuar fazendo um bom jornalismo. “A boa qualidade é importante”, disse.

Um princípio que saiu vencedor na luta entre o financeiro e a redação. Mas que agora ainda enfrenta o desafio de alcançar o equilíbrio entre receitas e despesas. E que pelas condições muito particulares do Guardian, não significa que seja a solução para todos os jornais. 

A conversa entre Katharine Viner e Emílio Garcia-Ruíz pode ser vista aqui: 

 

 

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