A decisão do time de futebol feminino da Inglaterra de se ajoelhar em campo nas partidas das Olimpíadas de Tóquio, anunciada na nesta quinta-feira (15/7) é mais uma reação ao clima de indignação que tomou conta do Reino Unido desde a final da Eurocopa, no último domingo. 

As “leoas” declararam a intenção de fazer tudo o que estiver ao alcance para chamar a atenção para todas as formas de racismo, unidas em solidariedade aos que têm suas vidas afetadas por ele. 

Desde que o movimento Black Lives Matter começou, nos Estados Unidos, o combate à discriminação entrou na agenda da sociedade britânica, já que o país foi protagonista no comércio mundial de escravos e exerceu como nenhum outro o poder de dominar colônias.

No entanto, muitos dos avanços conquistados recentemente começaram a cair por terra quando a Inglaterra perdeu o primeiro pênalti na partida contra a Itália. Foi um azar para o combate ao racismo, pelo fato de o autor da cobrança ter sido um negro.

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Mas não há nada tão ruim que não possa piorar. Dois jogadores negros também perderam suas chances, dando a vitória aos italianos diante de um Wembley lotado de torcedores que haviam passado a semana entoando “football is coming home”, hino da campanha inglesa. 

Ataques racistas a jogadores geraram repúdio nacional

Alguns deles, sem ingressos, tentaram de forma selvagem invadir o estádio, ferindo até o pai de um ídolo da torcida inglesa, o zagueiro Harry Maguire. 

Como era de se esperar, os ataques racistas pelas redes sociais contra Marcus Rashford, Bukayo Saka e Jadon Sancho foram imediatos.

Mas o tamanho da comoção foi surpreendente. Desde segunda-feira, análises sobre o desempenho do time quase não tiveram espaço na imprensa e nas mídias sociais. O racismo pelas redes dominou a pauta, colocando mais uma vez as plataformas digitais na berlinda.

Os críticos − incluindo a Football Association, que em abril comandou um boicote de quatro dias às redes − acusam as empresas de não fazerem o suficiente para evitar os abusos e para ajudar as autoridades a encontrar os responsáveis, ao manterem o anonimato dos usuários.

O príncipe William, presidente da entidade, que estava no estádio com a mulher, Kate, e o filho mais velho, George, foi um dos indignados. 

As redes sociais não foram as únicas a sofrer reação negativa. O governo se debate para reverter uma onda de críticas, demonstrando mais uma vez o risco de assumir posições que possam ferir sensibilidades e ir de encontro a movimentos da sociedade, como o despertar para o racismo provocado pelo Black Lives Matter.

Governo tentou endossar críticas, mas acabou virando alvo

O primeiro-ministro Boris Johnson e a secretária nacional do Home Office (área responsável por Justiça e Segurança Pública) Priti Patel cumpriram o roteiro, manifestando-se nas redes contra os abusos.

O contra-ataque foi rápido. Viraram alvo de execração pública por manifestações anteriores, em que consideram aceitável vaiar hinos de times adversários e classificaram de “político” o ato dos jogadores se ajoelharem contra o racismo.

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As recriminações pelo que foi tachado de hipocrisia partiram de pessoas comuns, de políticos e de jogadores. Para os críticos, ambos deveriam ter dado o exemplo, aliando-se antes e não depois da porta arrombada aos que defendem postura mais ativa no combate à discriminação.

O assunto dominou a mais importante sessão semanal do Parlamento, a PM Questions, que acontece às quartas-feiras, durante a qual o primeiro-ministro é sabatinado pela oposição. Boris Johnson foi mais uma vez criticado, em rede nacional, pela atitude permissiva sobre vaias e sobre o ato de ajoelhar que muitos consideram incentivo ao racismo.  

Rivalidade não deve sinônimo de preconceito ou xenofobia

O episódio com os atletas não foi a única consequência do clima de “vida ou morte” que dominou a final da Eurocopa. Houve também ataques a torcedores da Itália e até a italianos residentes no Reino Unido, que relataram na imprensa terem sofrido assédio nas ruas.

O que era para ser um congraçamento virou gatilho para expressões de nacionalismo exacerbado, um mal que se agravou no Reino Unido depois do Brexit.

Atletas da seleção de futebol da Inglaterra foram alvo de racismo após perderem pênaltis. (Divulgação/English Team)

Rixas entre países não são novidade no esporte. As do Brasil com a Argentina fazem parte do folclore. Mas em um ambiente de intolerância com minorias raciais e imigrantes, o que era paixão e motivo de piadas tem se transformado em agressão, seja física, verbal ou online.

Na noite de terça-feira,  Boris Jonhson anunciou que iria se reunir com  executivos do Twitter e do Facebook para cobrar ação. Pode ser que algo mude, mas até agora nada aconteceu. 

Suspeitos dos ataques foram presos pela polícia da cidade de Manchester, e devem pagar pelo que fizeram. O clima é de revolta. 

Vaiar hinos dos rivais: uma atitude perigosamente permitida

O problema não acaba nas redes sociais, embora seja potencializado por elas. Há uma reflexão a ser feita por líderes políticos e por celebridades que têm influência sobre o público a respeito de seu papel ao tratar de temas como o racismo.

O recado transmitido por pessoas famosas à sociedade é poderoso. E se o recado é ambíguo ou pouco assertivo, alimenta mentes doentias, que veem seus preconceitos validados.

Outra reflexão que a final da Eurocopa proporciona é sobre o discurso do esporte entre nações, incluindo patrocinadores, clubes, atletas e líderes de torcida.

O estímulo ao clima de guerra, construindo um cenário de vitórias e derrotas épicas, admitindo-se vaiar hinos de países amigos, pode estar ajudando a aflorar sentimentos perigosos em locais onde o campo já é fértil.

Lembrando a máxima que diz que a diferença entre remédio e veneno é a dose, pode ser a hora de começar dosar o tamanho do uso do nacionalismo como forma de engajamento. Os efeitos estão se mostrando preocupantes.

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