O jornalista investigativo holandês Peter De Vries, de 64 anos, baleado no dia 6 de julho no centro de Amsterdã, não resistiu aos cinco disparos que recebeu, um deles na cabeça. A morte foi anunciada na tarde de quinta-feira pela família, que disse em um comunicado: 

 “Peter lutou até o fim, mas não conseguiu vencer a batalha. Ele morreu cercado por pessoas que o amam. Viveu por sua convicção: ‘De joelhos não há maneira de ser livre’.

 Estamos imensamente orgulhosos dele e ao mesmo tempo inconsoláveis. ”

O caso chocou a Holanda e o mundo do jornalismo, por ter ocorrido em um país com imprensa livre e sem grandes conflitos sociais. No entanto, expôs o risco crescente a que jornalistas estão submetidos  ao denunciar casos de corrupção e narcotráfico, como vinha fazendo De Vries. 

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O México é o exemplo mais dramático dessa situação. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, o país foi o mais mortal para a imprensa em 2020, com oito mortos, superando até nações em guerra, como o Afeganistão.

“Os vínculos entre traficantes de drogas e políticos permanecem, e jornalistas que se atrevem a cobrir essas ou outras questões relacionadas continuam sendo alvos de assassinatos bárbaros”, disse a instituição em seu relatório anual. 

Traficante número 1 da Holanda é suspeito de arquitetar o atentado

O atentado a Peter De Vries vem sendo associado ao chamado inimigo público número 1 da Holanda, o traficante Ridouan Taghi, que está preso respondendo a diversos processos de tráfico e assassinato. 

Mais do que investigar o traficante como jornalista, De Vries envolveu-se diretamente no caso, tornando-se um dos conselheiros da principal testemunha, identficada como Nabil B, que fez parte da quadrilha de Taghi mas desligou- se e virou informante.

Geeman é principal suspeito no ataque a tiros a De Vries. (Reprodução/Instagram)

Um dos advogados da testemunha e seu irmão foram assassinados em 2019, em crimes atribuídos ao traficante. De Vries sabia que poderia ser um alvo desde 2019, depois da avisado pela polícia, mas rejeitou proteção especial.

Em entrevista à mídia holandesa, o juiz e promotor italiano Nicola Gratteri disse que a Holanda, junto com a Alemanha, a Bélgica e a França, subestimam a influência desestabilizadora do crime organizado na sociedade. Segundo ele, a Holanda está “minimamente equipada” para enfrentar as gangues criminosas. 

“Os países europeus não têm ideia do que realmente é um mafioso, um criminoso sério, e do que é capaz”, disse Gratteri. Ele defende penas mais pesadas para criminosos. 

Dois suspeitos estão sob custódia pelo atentado. Trata-se de um polonês de 35 anos de Maurik em Gelderland e um DJ de 21 anos de Rotterdã, Delano Geeman, que se apresenta como “Demper” ou “Slick” e seria primo de um integrante do grupo crimonoso. 

Ele tem antecedentes criminais e participa de um canal no YouTube chamado 101Barz, acusado de glorificar a violência.

Acredita-se que Geeman tenha sido o atirador, e o polonês teria dirigido o carro da fuga. A polícia realizou buscas domiciliares em Maurik, Tiel e Rotterdam e apreendeu informações e munição. 

Atentado no centro de Amsterdã

O ataque a Peter De Vries  aconteceu por volta das 19h30 perto da Leidseplein, uma das principais praças do centro de Amsterdã. Ele tinha acabado de deixar o estúdio da RTL Boulevard, onde havia gravado um programa. Imagens do crime, que chocou a Holanda,  circularam pelas redes sociais. 

O jornalista começou a carreira no De Telegraaf, principal jornal holandês.  Um caso de assassinato em Haia despertou seu interesse pelo jornalismo policial. 

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Nos trinta e cinco anos que se seguiram, ele investigou mais de 500 arquivos de assassinatos e se tornou um dos repórteres policiais mais conhecidos do país, sobretudo depois de passar a apresentar um programa de TV. 

Seu livro sobre o sequestro do magnata da cerveja Freddy Heineken, em 1983, foi adaptado para um filme de Hollywood estrelado por Anthony Hopkins.

Violência contra jornalistas na Europa
Fundador do Wikileaks passa por batalha judicial há quase uma década. Na foto, adesivo “free Assange”. (Markus Spiske / Unsplash

Segundo análise da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), a Europa é o continente mais favorável à liberdade de imprensa, mas a violência contra jornalistas aumenta. Em países como Hungria, Polônia e Grécia, há registro de episódios envolvendo cerceamento de informações e prisões de jornalistas.

A Hungria, governada pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, vive estado de emergência desde março de 2020. A legislação em vigor pune a divulgação de notícias falsas, o que é usado sistematicamente pelo poder central contra publicações desfavoráveis ao governo.

O país “assume sem constrangimento algum sua escolha política de reprimir a liberdade de imprensa e de expressão”, afirma a RSF. A postura de Orbán, segundo a organização, influencia ainda outros países do bloco europeu, como Polônia e Eslovênia, a reprimir o jornalismo e a liberdade de expressão. No Reino Unido, a prisão de Julian Assange, fundador do Wikileaks, é considerado um caso emblemático.

Recentemente, a organização publicou um estudo em que aponta 22 jornais do mundo “assassinados” por governos nos últimos cinco anos. Os métodos vão desde sufocamento financeiro, com corte de verbas, ao confisco de bens e à proibição de compra de papel para imprimir as publicações.

A RSF aponta que além do jornalismo investigativo, a cobertura de manifestações tem sido um trabalho perigoso para jornalistas. Casos de agressões na França, Itália e Alemanha foram registrados, bem como episódios de violência policial contra profissionais da imprensa na Bulgária, Polônia e Sérvia.