A censura do Talibã sobre os jornalistas no Afeganistão está fazendo com que a mídia desapareça no país, e o restante da imprensa que ainda opera, funcione sob a mordaça dos radicais. Estimativas apontam que de 108 publicações que funcionavam em 2020, entre rádios, jornais e TVs, cerca de 100 cessaram suas atividades com a ascensão do grupo ao poder.

Jornalistas mulheres estão sendo obrigadas a abandonar seus trabalhos. O Talibã faz ameaças diretas às profissionais de imprensa, ou ainda, pressiona as empresas onde elas trabalham a retirá-las de atividade.

Segundo levantamento divulgado pela organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF) em parceria com o Centro para a Proteção de Jornalistas Mulheres Afegãs (CPAWJ), de um total de 700 jornalistas mulheres que trabalhavam no Afeganistão, cerca de 76 continuam trabalhando.

Em outras palavras, destaca a RSF, “mulheres jornalistas estão em vias de desaparecer da capital”. O estudo comparou a situação atual com registros do ano passado, quando o país possuía 108 veículos de comunicação com um total de 4.940 funcionários em operação. 

Nesta quinta-feira (9/9), o aeroporto de Cabul foi reaberto e deve retomar gradualmente uma rotina de voos.

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Mesmo tendo prometido publicamente proteger os jornalistas no Afeganistão e respeitar a liberdade de imprensa, por trás das câmeras o Talibã está impondo regras e restrições à mídia. Jornalistas foram espancados ao cobrir protestos da população contra os radicais.

“Um dos talibãs colocou o pé na minha cabeça, esmagou meu rosto contra o concreto. Eles me chutaram na cabeça … Achei que eles iam me matar”, relatou o fotógrafo Nematullah Naqdi à Agência France Presse (AFP). O novo governo proibiu protestos, a menos que sejam autorizados pelo Ministério da Justiça.

Canais de TV privados são ameaçados diariamente, e emissoras são forçadas a suspender parte da programação por ordem dos radicais, sob a justificativa de que o conteúdo deve respeitar a Sharia, lei islâmica.

Todos os escritórios locais da Tolo News, rede de TV privada com alcance nacional, fecharam. Em Mazar-i-Sharif, a quarta maior cidade do país, jornalistas foram forçados a parar de trabalhar e a situação é “muito tensa”, relata a RSF.

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Um correspondente de uma estação de rádio nacional contou à RSF que segue trabalhando “sob a ameaça do Talibã, que comenta tudo o que faço. ‘Por que você fez essa matéria? E por que não nos pediu nossa opinião?’ eles dizem. Eles querem comentar todas as reportagens”.

Correspondentes estrangeiros em Cabul estão conseguindo trabalhar de maneira “quase normal”, afirma a RSF, “mas por quanto mais tempo isso durará”?, questiona a organização.

O Departamento de Informação e Juventude do Emirado Islâmico do Afeganistão emitiu a seguinte mensagem para jornalistas estrangeiros em 21/8: “Antes de entrar em campo e gravar entrevistas com combatentes do IEA e a população local, eles devem se coordenar com o IEA ou, caso contrário, serão presos”.

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A RSF explicou que a maioria das jornalistas foi forçada a parar de trabalhar nas províncias, onde quase todos os meios de comunicação privados deixaram de operar com o avanço das forças do Talibã. 

Algumas ainda conseguem trabalhar de casa, mas o número é muito menor em comparação a 2020, quando havia 700 jornalistas mulheres em atividade no país.  

Cerca de dois dias após a tomada do poder pelo Talibã, repórteres e apresentadoras de canais como Tolo News, Ariana News, Kabul News, Shamshad TV e Khurshid TV voltaram a falar no ar e a cobrir eventos, mas a tolerância dos extremistas logo se esgotou.

Nahid Bashardost, repórter da agência de notícias independente Pajhwok, foi espancada pelo Talibã enquanto fazia uma reportagem perto do aeroporto de Cabul em 25/8. Outras jornalistas disseram que guardas posicionados fora de seus locais de trabalho as impediram de sair para reportagens.

Um produtor que trabalhava para um canal nacional privado disse à RSF que o Talibã espancou cinco repórteres e operadores de câmera, chamando-os de “descrentes”.

“Eles controlam tudo o que transmitimos. No campo, os comandantes do Talibã pegam os números de nossos repórteres e dizem a eles: ‘Quando você preparar esta reportagem, você dirá isso e aquilo’. Se eles disserem outra coisa no material, eles são ameaçados.”

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Um representante de um canal comercial de TV contou que, no lugar do conteúdo proibido pelo novo governo dos radicais, eles estão transmitindo curtos boletins de notícias e documentários antigos.

O proprietário de uma estação de rádio privada ao norte de Cabul disse à RSF que o grupo extremista controla a cobertura de notícias: 

“Eles nos disseram: ‘Você pode trabalhar livremente, desde que respeite as regras islâmicas’, mas então eles começaram a nos ‘orientar’ sobre as notícias que poderíamos ou não transmitir e o que eles consideram as reportagens justas”. O proprietário acabou fechando sua estação de rádio. 

Um outro profissional contou à RSF que o Talibã está pedindo que os meios de comunicação mais tradicionais do país transmitam vídeos e clipes de áudio de propaganda do grupo extremista.

“Quando os veículos se opõem, o Talibã diz que é apenas publicidade e está disposto a pagar para que seja transmitido, e então insiste, referindo-se ao nosso dever nacional ou islâmico.”

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Em 29/8, combatentes do Talibã fizeram uma aparição na TV nacional afegã , cercando o apresentador de um debate político  enquanto ele lia um manifesto do grupo que pedia a colaboração dos telespectadores, que não devem temê-los.  “Não tenham medo”, disse o apresentador, rodeado de metralhadoras.

O trecho do programa foi compartilhado pela jornalista e apresentadora do BBC World News Yalda Hakim, que descreveu a situação como “surreal” e acrescentou: “É assim que um debate político agora aparece na TV afegã — soldados talibãs vigiando o apresentador”.

A Deutsche Welle, emissora pública alemã, denunciou que um de seus editores foi perseguido pelas tropas do Talibã. Após não encontrarem o jornalista, que havia fugido, os radicais mataram um de seus parentes e deixaram outro gravemente ferido.

Na província de Herat, em reunião com representantes da imprensa em 17/8, o novo governador declarou que “não era inimigo [da imprensa] e que definiriam a nova forma de trabalhar juntos”.

O governador citou uma frase da lei islâmica: “A Sharia define tudo: ‘Comande o que é bom, proíba o que é mau.’ Você apenas tem que aplicá-lo”.

“Depois disso, a maioria dos meus colegas deixou a cidade e nós que ficamos temos que provar constantemente que aquilo que transmitimos comanda o que é bom e proíbe o que é mau”, diz o chefe da rádio local.

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