A tomada de poder no Afeganistão pelo Taleban assustou o mundo pela rapidez com que se consumou, expondo ao ridículo a inteligência militar das maiores potências globais.

Mas os acontecimentos dos últimos dias mostram que o Taleban aprimorou também suas habilidades de comunicação.

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Após assumir o controle do país, o grupo colocou em marcha uma operação de relações públicas destinada a transmitir ao mundo uma imagem diferente da que construiu em duas décadas.

Mesmo tendo tomado o poder sem oposição, uma boa reputação é importante para enfraquecer a ideia de novas intervenções. E pode facilitar acordos, financiamentos externos e ajuda humanitária, em um momento em que o Fundo Monetário Internacional bloqueou acesso a uma reserva de US$ 370 milhões (R$ 2,2 bilhões) destinada a ajudar na recuperação econômica do Afeganistão.  

Taleban ocupou Cabul com uma assessoria de imprensa “de tirar o chapéu”

O primeiro movimento nesse sentido aconteceu no dia em que a capital Cabul foi ocupada, com uma ação de assessoria de imprensa de tirar o chapéu.

Ao ligar para o telefone de uma apresentadora da BBC que estava no ar e conceder uma longa entrevista, o porta-voz do Taleban em língua inglesa, Suhail Shaneen, deu mostras do preparo do grupo.

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Ele foi evasivo em algumas respostas. Mas falou em tom sereno e reforçou durante toda a conversa sua mensagem-chave: tranquilizar.

A palavra reassure (dar tranquilidade, em inglês) foi usada seguidas vezes. A entrevista foi uma boa ideia bem executada.

Principal oficial de relações públicas do Taleban encarou com serenidade o ceticismo da RSF

No mesmo dia, o principal homem de RP do grupo, Zabihullah Mujahid, dialogou com a organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que em julho tinha ido ao país para avaliar a dramática situação dos jornalistas locais.

Novamente, transmitiu tranquilidade e garantiu respeito à liberdade de imprensa. A RSF manteve-se cética, e soltou um comunicado duvidando das reais intenções do Taleban − em particular sobre a autorização para mulheres jornalistas trabalharem.

Seguindo o manual de boas práticas de RP, era preciso dar evidências. Na terça-feira (17/8) elas vieram.

Apresentadoras e repórteres voltaram ao ar em um dos principais canais afegãos, o Tolo News. E uma jornalista da Al Jazeera foi a primeira a fazer perguntas na primeira coletiva do Taleban, na terça-feira.

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A coletiva foi o momento máximo do plano. Os líderes estavam impecáveis, transmitindo imagem distante daquele estereótipo de guerrilheiros sujos e descabelados, de armas em punho em um deserto empoeirado.

Taleban concedeu entrevista coletiva “mais democrática” do que o americano Joe Biden

A sessão foi bem organizada, conduzida por Mujahid, uma figura que saiu das sombras depois de ter passado anos falando com a imprensa sem mostrar o rosto − e levantando dúvidas sobre se seria a mesma pessoa ou várias que se revezaram sob pseudônimo.

Pode soar estranho comparar a coletiva de um grupo extremista que tomou um país à força com entrevistas de presidentes da maior democracia do mundo. Mas, por incrível que pareça, algumas comparações com episódios recentes nos Estados Unidos são favoráveis ao Taleban.

O porta-voz Zabihullah Mujahid (Reprodução/Al Jazeera)

Para começar, houve espaço para perguntas, diferentemente da coletiva de Joe Biden na segunda-feira (16/8). O presidente americano leu um pronunciamento defendendo a retirada das tropas e saiu sem responder aos jornalistas, podendo-se ouvir ao fundo um coro de reclamações.

A animosidade das coletivas de Donald Trump também não se repetiu. Mujahid não demonstrou irritação ou usou palavras duras, embora tenha evitado questões de repórteres afegãos.

Como ficará a imagem de movimento terrorista violento?

Isso não quer dizer que a liberdade de imprensa e de expressão no Afeganistão seja maior do que nos Estados Unidos.

E apesar do notável esforço para reverter a má reputação, as dúvidas ainda são maiores do que as certezas.

Os relatos da imprensa internacional sobre mortos durante um protesto contra o Taleban nesta quinta-feira (19/8) na cidade de Asadabad e de bloqueios para os afegãos se aproximarem do aeroporto são um mau sinal, assim como a caçada dos radicais a um jornalista alemão, que conseguiu fugir, mas teve um parente morto em seu lugar.

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Que direitos terão as mulheres, incluindo jornalistas? Será a mídia independente instada a transmitir programação religiosa, como aconteceu em várias cidades durante a marcha para Cabul? Jornalistas continuarão a ser assassinados e encarcerados no país que se tornou um dos mais mortais para a imprensa?

Se o Taleban conseguir deixar para trás a imagem de movimento terrorista violento e opressor, terá sido o maior sucesso da história da comunicação corporativa. Mas para isso, a narrativa moderada dos primeiros dias precisará ser comprovada na prática.

Como disse o primeiro-ministro britânico Boris Johnson no Parlamento, nesta quarta-feira, o Taleban será julgado por atos, não por palavras.

*atualizado em 20/8.

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