Londres – Após uma maratona de mais de 10 horas de debates que se estendeu pela madrugada, o Parlamento de Singapura aprovou na segunda-feira (4/10) a controvertida lei que permitirá ao governo censurar internet e redes sociais, colocando em risco a liberdade de imprensa e de expressão.
O Partido da Ação Popular da cidade-Estado, que detém o poder há mais de 60 anos, usou sua esmagadora maioria para passar a lei contra interferência estrangeira na política interna, proposta à casa legislativa pelo governo do primeiro-ministro, Lee Hsien Loong ,há três semanas.
Com ela, as autoridades ganham o direito de determinar aos provedores de internet e mídia social que entreguem informações dos usuários, bloqueiem conteúdo e removam aplicativos.
A regulamentação desencadeou intensos debates e reações de entidades internacionais que defendem a liberdade de imprensa e de expressão.
Grupos e indivíduos envolvidos na política local podem agora ser designados como “pessoas politicamente significativas”, tendo que revelar fontes de financiamento estrangeiro e ficando sujeitos a outras “contramedidas” para reduzir o risco de interferência do exterior.
Os infratores podem ser condenados à prisão e a pagar multas pesadas.
Leia também | França cria comissão para combater teorias da conspiração, um “veneno” na sociedade, segundo Macron
No discurso de duas horas feito para defender o projeto, o ministro de Direito e Assuntos Internos, K. Shanmugam, disse: “a lei tem como objetivo conter uma séria ameaça que diz respeito à segurança e soberania nacional”.
O ministro destacou sua importância para “garantir que Singapura continue fazendo suas próprias escolhas sobre como governar o país e viver sua vida.”
Campanhas hostis
A Lei de Interferência Estrangeira (ou Fica, na sigla local), foi proposta para combater interferências conduzidas por meio do que o governo aponta como campanhas de informação hostis e o uso de proxies (tecnologia que dá acesso à internet) locais.
Segundo o jornal de Singapura The Straits Times, parlamentares de ambos os lados do espectro político abordaram preocupações expressas por advogados, especialistas e ativistas da sociedade civil nos últimos dias, incluindo sobre a linguagem ampla da lei e a falta de supervisão judicial.
Uma petição chegou a ser apresentada para adiar a votação e considerar mudanças sugeridas pelo Partido dos Trabalhadores. Mas com ampla maioria, o Partido da Ação Popular conseguiu aprovar o projeto de lei, por 75 votos a favor, 11 contra e duas abstenções.
Algumas emendas propostas ao projeto foram aceitas pelo governo, incluindo a expansão da lista de pessoas politicamente significativas definidas para incluir um membro do comitê executivo ou órgão de governo semelhante de um partido político.
Outra modificação aceita foi tornar obrigatória a divulgação da designação dessas pessoas.
Leia também | Censura em Hong Kong derruba site de museu sobre Massacre da Praça da Paz Celestial
O partido também sugeriu disposições adicionais que permitem apelações ao tribunal e a um registro público de pessoas politicamente importantes, entre outras mudanças, que, segundo ela, diminuiriam a probabilidade de abuso de poder e levariam a uma maior transparência.
No entanto, os aspectos principais da regulamentação, como a impossibilidade de classificar altos funcionários públicos como pessoas politicamente significativas, permaneceram na versão final, o que gerou reações de entidades que defendem a liberdade de imprensa.
Outro ponto controverso da lei é que, a pretexto de proteger as informações confidenciais, os recursos contra as instruções emitidas serão avaliados por um tribunal de revisão independente, e não pela Justiça comum.
Influência no pensamento
Em seu discurso, o ministro Shanmugam disse que “a mistura interracial e interreligiosa de Singapura é facilmente explorada por atores estrangeiros, que têm constantemente construído narrativas secretas e inteligentes para tentar influenciar o pensamento da população e semear a divisão”.
“Na minha opinião, esta é uma das ameaças mais sérias à nossa população, e eu acho que a maioria dos parlamentares não está realmente ciente disso”, disse ele.
Shanmugam afirmou ainda que “a internet se tornou um teatro particularmente atraente para adversários que procuram nos fazer mal”.
Leia também | Observatório global vai monitorar impacto das plataformas digitais sobre a democracia
Sentimento antiamericano
O sentimento antiocidental ficou claro na posição do governo. O ministro disse que “enquanto a mídia internacional identifica regularmente Rússia, China, Irã e Coreia do Norte como perpetradores, os Estados Unidos (EUA) e outros países ocidentais têm capacidades semelhantes ou, no caso dos EUA e Reino Unido, até superiores”.
Ele também disse que a interferência estrangeira e a necessidade de legislação têm sido amplamente discutidas e debatidas há mais de três anos, desde 2018, quando um comitê criado para estudar a questão das notícias falsas reuniu evidências detalhadas sobre a seriedade da ameaça .
Para Shanmugam, a lei é “uma abordagem mais calibrada para a era da internet”. Ele afirmou que “o risco de interferência estrangeira desonesta é muito maior do que o risco de um governo desonesto abusar de seu poder”.
Leia também |Veículos de imprensa podem ser processados por comentários de leitores? Na Austrália, agora podem
Ele também defendeu o escopo da lei, afirmando que é menos restritiva do que regulamentos existentes nos EUA e Austrália.
Ouvido pelo jornal australiano The Age, Eugene Tan, professor associado de direito na Singapore Management University, discordou. Para ele, a lei de Singapura vai muito mais longe do que a da Austrália.
Conflito com Austrália
A menção aos EUA é Reino Unido (do qual Singapura é uma ex-colônia) é natural, pelo poder exercido pelas plataformas digitais e dominância dos dois países na cena internacional.
Já a inclusão da Austrália como inimigo deve-se a ao caso de um ex-senador australiano acusado de receber doações de um empresário com conexões com o governo da China para defender a posição do país na questão diplomática envovendo o mar da China Meridional.
Sam Dastyari renunciou à Câmara há quatro anos, depois que suas ligações com o bilionário doador político chinês Huang Xiangmo foram reveladas.
Influência estrangeira não é bem-vinda
Enfatizando a necessidade de endurecer a interferência estrangeira em Singapura, o ministro também citou a expulsão em 2017 do acadêmico americano Huang Jing, nascido na China, acusado de ser um agente de influência de um país não identificado, bem como relatos de desinformação russa e tentativas de Moscou de influenciar as eleições nos Estados Unidos, França e Alemanha
Em maio, o governo ficou insatisfeito com apresentação de um webinar pela embaixada americana com um grupo de direitos LGBTQ+, lembrando que “as missões estrangeiras aqui não devem interferir em nossos assuntos internos, sociais e políticos”.
Leia também | México, Síria e Sri-Lanka são primeiros Estados julgados em tribunal para assassinatos de jornalistas
Riscos para a liberdade de imprensa
A organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), que defende a liberdade de imprensa, disse que a lei traz “as sementes das piores tendências totalitárias”.
“Este projeto de lei institucionaliza a perseguição de qualquer entidade nacional que não siga a linha estabelecida pelo governo e pelo partido no poder, começando pelos meios de comunicação independentes”, disse Daniel Bastard, chefe do escritório da RSF na região Ásia-Pacífico.
Com a nova lei, o risco de agravamento das pressões sobre a imprensa independente em Singapura torna-se ainda maior, já que os grandes veículos apoiam o governo.
Leia também | China não quer celebridades “afeminadas” na TV e recomenda que emissoras evitem artistas “imorais”
Há dois anos havia sido introduzida uma lei destinada a combater a desinformação online, criticada por grupos de direitos humanos e gigantes da tecnologia por restringir a liberdade de expressão.
Em setembro, o site de notícias online Citizen foi bloqueado por não declarar suas fontes de financiamento.
Em entrevista ao jornal australiano The Age, Kirsten Han, uma jornalista freelance que cofundou o site de notícias independente New Naratif, preocupa-se com a natureza ampla da lei que significa que “qualquer pessoa que estiver fazendo algo em uma questão importante” pode ser pego por ela e receber a ordem de divulgar informações, inclusive no caso da mídia em suas fontes.
O governo insiste que a lei não tem o objetivo de restringir as críticas ou a interação legítima com estrangeiros, dizendo que, em vez disso, é direcionada a “métodos coordenados e enganosos por atores estrangeiros hostis para manipular nosso discurso político e perturbar nossa sociedade”.
Leia também