Londres – Para o Brasil, que perdeu Marielle Franco e tantos outros políticos, alguns vítimas de discurso de ódio e polarização da sociedade, o assassinato de um parlamentar não espanta.
Mas no Reino Unido é coisa rara. Foram nove em mais de 200 anos, a maioria na época do conflito na Irlanda do Norte, quando cinco integrantes do parlamento perderam a vida em atentados do grupo IRA (Exército Republicano Irlandês)
Os esfaqueamento de David Amess, que completou uma semana nesta sexta-feira (22/10) com o acusado indiciado por assassinato e ato terrorista, elevou a temperatura do debate sobre questões que há tempos afligem não apenas os britânicos, mas vários outros países, incluindo o Brasil.
Uma delas é a agressividade na política, que transborda para o público por meio da imprensa e das redes sociais, inflamando a sociedade e aumentando a polarização.
A outra é a fragilidade do controle das redes sociais sobre o que nelas circula e o anonimato dos usuários, aumentando a demanda por leis capazes de obrigá-las a não permitir discurso de ódio, teorias conspiratórias e radicalização de jovens.
Esse parece ter sido o caso de Ali Harbi Ali, que matou o parlamentar durante um encontro em uma igreja em que se passou por membro da comunidade para ficar sozinho com o político.
O anonimato nas redes divide opiniões. Autoridades de segurança defendem seu fim, e também a quebra da criptografia de ponta a ponta, que dificulta identificar e punir criminosos online.
Na outra ponta, defensores dos direitos humanos se rebelam contra a ideia, por deixar expostos a riscos ativistas ou opositores de ditaduras onde há censura à livre expressão.
Mas não há divisão sobre a agressividade na política, com um movimento para reverter narrativas agressivas que estimulam divisão e podem levar a radicalismo.
Por que David Amess foi escolhido?
O motivo pelo qual Amess virou alvo de Ali, um britânico filho de somalianos de 25 anos, ainda intriga o Reino Unido. Em imagens de câmera de segurança, e ele apareceu andando calmamente em direção ao trem que o levaria ao local do crime.
A princípio o ato não parecia ligado à polarização na sociedade nem a ódio online contra o político. Mas pode ter sido consequência indireta desses dois fenômenos.
Afável e defensor dos direitos dos animais, Amess não recebera ameaças via internet, até onde se sabe. Era adorado no distrito costeiro que representava, Southend-On-Sea, em Essex, a 70 quilômetros de Londres.
Por não ocupar cargos relevantes no Partido Conservador, não era associado à discórdia que tomou conta do país devido ao Brexit, incensada pela tropa de choque do primeiro-ministro Boris Johnson.
Mesmo assim, como qualquer cidadão britânico, não estava imune ao racha de opiniões trazido pelo Brexit, que exacerbou o nacionalismo no país.
A temperatura ferveu no Parlamento e nas ruas em 2016, época do referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia.
E foi nessa época que outro crime chocou o país. A parlamentar Jo Cox foi assassinada por um homem que na hora do crime gritou “Viva a Grã-Bretanha”.
Com a votação finalizada, os ânimos acalmaram mas as feridas continuaram abertas. Nos meses que antecederam a saída efetiva do bloco, em 2019, a guerra de narrativas dentro e fora do Parlamento voltou.
Manifestantes pró-Brexit exibiam símbolos de extrema direita, entoando cânticos que remetiam a seitas medievais. A narrativa política era baseada na defesa da soberania, dos empregos e dos valores nacionais.
Parte da mídia embarcou, insuflando guerra cultural, aversão a imigrantes, a minorias e à Europa. Alguns veículos não desembarcaram até hoje.
Um artigo de opinião no jornal conservador Daily Telegraph, publicado no dia 18/10 tinha um título pouco amável com os vizinhos europeus: “A União Europeia é um império falido que condenou a si próprio à irrelevância”.
Isso mostra a herança agressiva do Brexit não apenas para com os que vivem do outro lado do Canal da Mancha, mas também para os europeus ou descendentes que vivem no Reino Unido.
E para com as minorias raciais, étnicas e religiosas, que passaram a ser hostilizadas direta ou indiretamente, com mensagens de não aceitação.
O ódio na política britânica
O Brexit se consumou, mas Johnson conservou o tom ufanista, com falas incendiárias, modelo adotado por alguns de seus auxiliares próximos. Contudo, os conservadores não estão sozinhos na descortesia.
Há um mês, a parlamentar trabalhista Angela Rayner chamou os conservadores que comandam o país de “scum” (escória) durante a convenção anual do partido. Foi recriminada até mesmo por colegas trabalhistas, mas manteve-se firme no insulto e recusou-se a retirar a agressão.
No dia seguinte à morte de David Amess, viu-se uma cena rara: Johnson e seu opositor Keir Starmer, o líder do Partido Trabalhista, foram juntos depositar flores em memória do político.
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O “speaker do Parlamento (cargo equivalente ao de presidente da casa legislativa), Lindsay Hoyle, tomou a frente na campanha para acabar com a linguagem agressiva na casa e prometeu impedir insultos no plenário.
No Reino Unido, as sessões do Parlamento são transmitidas pela TV. Uma delas, que acontece às quartas-feiras, chamada PM Questions (Perguntas ao Primeiro-Ministro) entra ao vivo nos principais canais de notícias, como BBC e Sky News.
Nela, o Primeiro-Ministro é sabatinado pelos parlamentares, começando pelos líderes dos partidos de oposição. A famosa fleuma britânica há muito deixou o lindo salão com balcões de madeira escura e bancos de couro verde para dar lugar a uma linguagem que lembra a das brigas de rua.
Tudo isso é visto por milhões de pessoas, reprisado na TV e nos jornais e compartilhado nas redes sociais. Com a morte de Amess, pode ser que algo mude no Parlamento, e quem sabe também na mídia mais engajada, que embarca na narrativa divisionista
Redes sociais, porta de entrada para a radicalização
Já nas mídias sociais o desafio é maior, porque não se restringe às grandes plataformas. A radicalização floresce no submundo da dark web.
Mas para muitos, ela começa nas redes mais populares, que são seguidamente acusadas de não fazerem o suficiente para conter o avanço de teorias conspiratórias, facilitado pelo anonimato dos usuários.
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São vários os sinais de que o autor do crime contra David Amess seja um exemplo de radicalização silenciosa pelas redes.
Ele não é um excluído social que virou lobo solitário. Filho de somalianos, nasceu no Reino Unido e estudou em boas escolas.
Não apresentava sinais típicos de terroristas, nem tinha exemplo familiar de radicalismo.
O pai, Harbi Ali Kulllane, era assessor de comunicação do ex-presidente da Somália e conhecido como liberal. Ironicamente, tem histórico de militância contra o extremismo somaliano, fazendo parte de organizações que pregam a paz.
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Por isso as redes entraram na dança com a morte de David Amess. Estudos mostram que a pandemia virou caldo de cultura para o radicalização de jovens, que ficaram mais tempo isolados e expostos a teorias da conspiração. A inteligência britânica os chama de bedroom radicals (radicais do quarto).
Uma nova reportagem do Wall Street sobre o Facebook mostra que a inteligência artificial da empresa não consegue capturar quase nada do discurso de ódio que circula na plataforma.
A ONG britânica Hope Not Hate fez um estudo mostrando uma enormidade de conteúdos antissemitas nas redes sociais, e acha que jovens estão sendo apresentados a essas ideias por elas.
Entre as especulações sobre o motivo do crime está uma ligação com o grupo terrorista al-Shabab, ligado ao Estado Islâmico.
O elo entre David Amess e o mundo árabe seria o trabalho do parlamentar para atrair investimentos do Catar e construir uma marina em sua cidade.
Ele presidia um comitê multipartidário que buscava promover bons laços entre a Grã-Bretanha e o Catar, e havia feito uma visita ao país na semana anterior ao crime. Imagens de reuniões e da visita eram postadas em suas redes sociais.
As Chairman of @QatarAPPG, I was very pleased to meet the Emir during our recent delegation to Doha. 🇶🇦 pic.twitter.com/HMO2AuWIw2
— Sir David Amess MP (@amessd_southend) October 14, 2021
Democracia afetada?
Não há um só culpado na morte do parlamentar. A combinação de discurso de ódio nas redes, faroeste na dark web, políticos que deveriam dar o exemplo inflamando a sociedade e parte da mídia endossando a intolerância criou a tempestade perfeita para que ela ocorresse.
Mas o trauma pode acelerar a aprovação da regulamentação britânica das redes sociais, a Online Harm Bill, que já começa a ser chamada de David’s Law.
Na primeira sessão PM Questions depois do crime, Boris Johnson se comprometeu a introduzir sanções criminais para gestores das empresas de mídia social que permitem que “conteúdo sujo” seja postado em suas plataformas, respondendo a críticas do opositor, Keir Starmer.
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O projeto de lei em tramitação dá ao órgão regulador Ofcom o poder de impor multas de bilhões de libras a gigantes da tecnologia que não demonstram o dever de cuidar dos usuários. Contudo, em sua forma original não determina sanções criminais contra os gestores.
Starmer pressionou Johnson a tirar vantagem do “desejo inescapável” dos parlamentares, na sequência da morte do parlamentar conservador para “reprimir o extremismo, o ódio e os abusos que inflamam os conectados.
Satisfação à sociedade adianta?
Pode ser um passo e uma boa satisfação ao clamor da sociedade. Mas prender Mark Zuckerberg ou condená-lo por crime está longe de resolver o todo o problema, ainda que possa obrigar as grandes plataformas a dificultarem a cooptação de jovens.
Tampouco será capaz de reverter um fenômeno de raízes profundas, que parece cada vez mais estar tornando carrancuda a fisionomia de uma nação célebre pela cortesia e pela democracia participativa.
Nos dias subsequentes ao crime, a insegurança dos políticos entrou na pauta, com muitos relatando ameaças online.
O modelo de encontros diretos com os “constituents” (membros da comunidade que elegeu o parlamentar), está sendo questionado, devido aos riscos aumentados da segurança.
Qunado foi atacado, David Amess fazia um tipo de reunião comum no país, chamada “surgery” (ou clínica, em tradução livre).
São encontros itinerantes, em que o parlamentar vai a escolas, igrejas, praças ou centros comunitários e conversa individualmente com pessoas (eleitores ou não) mediante agendamento prévio.
Alguns suspenderam temporariamente as “surgeries”, enquanto outros mantiveram e tentam reagir ao seu fim, por ser uma tradição da democracia britânica. Passarão a contar com proteção policial.
Esquecimento ou transformação?
Na maior parte das vezes, crimes hediondos mobilizam a sociedade nos primeiros dias para depois caírem no esquecimento, superados por outros crimes, escândalos ou asusntos do cotidiano.
A morte de David Amess pode ter um desfecho diferente. Ele ocorreu em um ambiente em que já havia movimentos contrários à agressividade na política e favoráveis à legislação de controle sobre as redes sociais.
Os que militam nas duas causas têm em suas mãos um caso dramático, incomum e que pode ser uma grande bandeira para a transformação.
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