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Às vésperas das eleições, Facebook desmantela “fábrica de trolls” operada pelo governo na Nicarágua

Imagem: Twitter Yanina Turcios

Além da censura à imprensa e perseguição a jornalistas, o regime de Daniel Ortega criou uma extensa operação de uso das redes sociais para manipular a opinião pública e atacar opositores, que acaba de ser desmantelada pelo Facebook a uma semana das eleições na Nicarágua.

Na segunda-feira, 1º de novembro, a empresa de mídias sociais anunciou em seu relatório mensal de outubro que havia detectado e eliminado uma “fábrica de trolls” administrada pelo governo da Nicarágua e pelo Partido Sandinista de Libertação Nacional (FSLN).

 A empresa diz ter removido 937 contas do Facebook, 140 páginas, 24 grupos e 363 contas do Instagram na Nicarágua, no que classificou de a maior operação de trolls já desmontada até hoje. 

O motivo foi “violação da política contra interferência estrangeira ou governamental, configurando comportamento inautêntico coordenado”.

No dia 7 de novembro Daniel Ortega buscará um quarto mandato consecutivo, enquanto cerca de 40 oponentes estão na prisão ou em prisão domiciliar, incluindo sete de seus possíveis opositores no pleito e vários jornalistas.

Os principais veículos de imprensa foram fechados e profissionais de imprensa fugiram do país. 

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Rede operada pela estatal de telecomunicações 

As contas canceladas tinham cerca de 585 mil seguidores; 74,5 mil faziam parte de um ou mais grupos e 125 mil usuários seguiam as contas no Instagram. Os investimentos em anúncios no Facebook e no Instagram foram estimados em  US$ 12 mil.

Segundo o relatório, a operação de trolls, que começou em 2018 após o início dos protestos contra o governo, tinha como alvo o público interno do país e era operada diretamente por funcionários do Instituto de Telecomunicações e Correios da Nicarágua (TELCOR), trabalhando na sede do serviço postal em Manágua. 

Grupos menores adicionais de contas falsas eram administrados por outras instituições governamentais, incluindo a Suprema Corte e o Instituto de Previdência Social da Nicarágua. 

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A “fábrica de trolls” não envolveu apenas as plataformas Facebo0k e Instagram. A rede do regime de Ortega empregou uma estratégia envolvendo contas falsas também no TikTok, Twitter, YouTube, BlogSpot e Telegram.

 “Eles postaram conteúdo positivo sobre o governo e comentários negativos sobre a oposição, usando centenas de contas falsas  para corromper ou manipular o discurso público por meio da construção de personas (usuários falsos) nas plataformas, enganando as pessoas sobre quem está por trás delas”, afirma o relatório de investigação, assinado por Luis Fernando Alonso e Ben Nimmo da Equipe de Inteligência de Ameaças do Facebook.

Eles explicaram que a rede removida é diferente daquelas operadas por “fábricas de conteúdo clickbait” com motivação financeira, que não dependem necessariamente de contas falsas, utilizando páginas e grupos para postar indução de cliques e assim direcionar as pessoas a sites fora da plataforma e outros canais para monetizar.

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YouTube removeu contas 

Um porta-voz do Google, da Alphabet Inc, dono do YouTube, disse que a empresa encerrou 82 canais do YouTube e três blogs como parte de sua investigação em andamento sobre operações de influência coordenadas vinculadas à Nicarágua.

Alguns aliados de Ortega confirmaram que vários de seus perfis foram eliminados do Facebook. Na quinta-feira, 28 de outubro, eles revelaram que um número indefinido, mas grande, de suas contas no Twitter também foram suspensas.

Entre as contas suspensas do Twitter da Nicarágua estão: @ElCuervoNica; @ TPU19J; @nica_rojaynegra e sua conta de suporte @nica_rojaynegraR; @sapitoFSLN; @elcuervoninja; @ QueenMo1204; @JavierM_Monkey; e @taniasandinista.

Recusando-se a reconhecer a existência da “fazenda de trolls”, eles chamaram a ação do Meta de “ataque imperialista”. E chamaram  a suspensão massiva de contas de “censura, a fim de criar uma cerca da mídia em torno das contas de esquerda no continente”, alegando que as contas na Venezuela também foram suspensas.

Os perfis começaram na sexta-feira a criar novos perfis, sob o argumento: “Se fecharem um, abriremos mais cem”, porque, “não podiam e não vão poder”, uma referência ao a narrativa política difundida pela vice-presidente e porta-voz oficial do governo Rosario Murillo, cujas palavras foram ecoadas o dia todo pelos relatos da desmantelada “fazenda de trolls”.

Conforme relatado anteriormente, algumas dessas contas, além de outras, foram várias vezes suspensas do Twitter, devido à sua linguagem violenta que infringe as regras desta rede social.

O que diz o relatório 

Segundo o Facebook, a operação começou a criar contas falsas em abril de 2018, quando protestos liderados por estudantes contra o governo estouraram em toda a Nicarágua. 

Na época, a rede de trolls lançou uma campanha online contra os manifestantes e críticos do governo. Algumas contas falsas foram detectadas e desativadas pelos sistemas automatizados entre abril e junho daquele ano.  

No entanto, a partir do final de 2019, passou a se concentrar cada vez mais em postar e ampliar artificialmente elogios sobre o governo da Nicarágua e o partido FSLN: 

“Esta atividade também incluiu conteúdo apolítico sobre turismo e esportes na Nicarágua. 

O volume de postagens e o variedade de origens aumentou ao longo do tempo, provavelmente em uma tentativa de dominar o espaço público em toda a internet com mensagens pró-governo e abafar vozes dissidentes.”

Algumas dos usuários falsos fingiram ser estudantes da Universidad Nacional Autónoma de Managua, que havia servido como um dos epicentros da organização estudantil em 2018, aponta o levantamento. 

Outras contas posaram de apoiadores do governo e apelaram às pessoas ”para“ agirem ”contra os manifestantes.

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Organizações de mídia 

À medida que esse comportamento mudou, segundo a investigação, a rede ficou mais complexa, com uma participação mais ampla do  governo. 

E além de perfis falsos, os operadores criaram várias marcas de mídia – algumas dos quais se representaram como independentes ou membros das comunidades locais – com presença em  plataformas de mídia social, blogs e sites, incluindo  Twitter, TikTok, Telegram e YouTube, além de Facebook e Instagram..

Em algumas ocasiões, eles tentaram se passar por organizações de oposição política. 

“O uso de marcas separadas parece ter sido uma tentativa de inundar o espaço de informações da Nicarágua com conteúdo pró-governo, criando a aparência de um debate público vibrante e diverso no que na verdade era uma campanha orquestrada.”

As marcas variam amplamente em estilo visual, mostra o relatório. Dois dos primeiros, chamados Molotov Digital e Siempre Mas Allá, foram construídos no Blogspot e no Blogger, respectivamente. 

Eles usaram modelos visuais simples, mas cada um apresentava no alto da página os links para suas outras contas no Facebook, YouTube, Twitter e Telegram.

Um terceiro site, Redvolución (um jogo de palavras de “rede” e “revolução”), empregou um modelo mais sofisticado baseado em WordPress, junto com contas no YouTube, Facebook, Twitter e Instagram. É abertamente partidário em seu conteúdo, apresentando um banner em contagem regressiva os segundos “até o triunfo eleitoral do FSLN em 2021″. 

Imprensa e oposição a Ortega vivem sob cerco na Nicarágua

A democracia vive uma situação precária da democracia na Nicarágua, que tem Daniel Ortega como presidente desde 2006, passando por duas reeleições.

Ortega já havia sido presidente do país entre 1979 e 1990, e hoje um sistema claro de sufocamento da imprensa e da oposição no país, com confisco de papel para impressão de jornais e o encarceramento de políticos da oposição.

Carlos Fernando Chamorro, um dos jornalistas mais importantes da Nicarágua, fugiu do país após ter sua casa invadida durante a noite, em junho. Editor do site Confidencial e membro de uma das famílias políticas mais influentes do país, Chamorro disse que deixou o país para “salvaguardar sua liberdade”.

O romancista nicaraguense Sergio Ramírez Mercado, vencedor do Prêmio Cervantes em 2017 e ex-vice-presidente do país, afirmou na Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de Imrensa que o “jornalismo das catacumbas” está voltando, numa referência a tempos em que as notícias eram lidas em igrejas sob luz de velas na Nicarágua sob ditadura.

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Tropas cibernéticas agem em outros países, inclusive no Brasil  

O uso das redes sociais por governos para manipular a opinião pública não é exclusivo da Nicarágua. O Facebook diz ter retirado redes vinculadas a governos na Etiópia , Uganda , Sudão , Tailândia e Azerbaijão .

“As operações dirigidas por um governo para atingir seus próprios cidadãos são particularmente preocupantes quando eles combinam técnicas enganosas com o poder de um estado no mundo real”. 

Em 2020, um relatório do Oxford Internet Institute revelou  qiue a desinformação industrializada está se tornando mais profissionalizada e produzida em cada vez maior escala pelos principais governos, partidos políticos e firmas de relações públicas por eles contratadas, e deve causar preocupação crescente para as democracias em todo o mundo.

Inventário Global de Manipulação Organizada da Mídia Social 2020, de autoria de Philip Howard, Hanna Bailey e Samantha Bradshaw. revela as maneiras como agências governamentais e partidos políticos têm usado de forma crescente as mídias sociais para espalhar desinformação política, poluir o ecossistema de informação digital e suprimir a liberdade de expressão e de imprensa.

O Brasil é apontado como país de média capacidade de organização, com tropas atuando para influenciar o debate político, incluindo membros do governo, partidos, firmas contratadas e influenciadores voluntários. O OII afirma que quatro das cinco estratégias principais de manipulação são utilizadas no País.

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