Londres – Jornalistas famosas e atuantes da Índia estão entre as mulheres muçulmanas oferecidas em falsos leilões por meio de um aplicativo de celular, denunciado por assédio online e retirado do ar no dia 3/1 depois que o caso ganhou visibilidade internacional.
A organização de defesa da liberdade de imprensa Repórteres Sem Fronteiras ouviu relatos de vítimas e cobrou das autoridades indianas punição aos responsáveis.
“Não fazer nada seria tolerar uma forma extremamente violenta de assédio, uma forma de intimidação que discrimina um setor da comunidade jornalística e expõe os alvos a potenciais ataques físicos ”, disse Daniel Bastard, chefe do escritório da RSF para a Ásia-Pacífico
Mulheres jornalistas são alvo frequente de assédio
A plataforma de hospedagem de código-fonte para programadores GitHub, onde o aplicativo que colocou mulheres “à venda” estava hospedado, pertence à Microsoft. A empresa americana o removeu assim que o escândalo explodiu.
A inclusão de jornalistas famosas, ao lado de advogadas e pesquisadoras, soma-se a outros tipos de assédio contra mulheres da imprensa.
Devido ao seu trabalho e exposição pública nos meios de comunicação e nas redes sociais, muitas se tornam vulneráveis a ataques nas redes, alguns se convertendo em agressões no mundo real.
Em dezembro, dois homens foram condenados, na Bélgica e no Reino Unido, por assédio a jornalistas nas redes.
O caso da Índia foi generalizado e não apenas contra jornalistas.
Fotos de cerca de cem mulheres – roubadas de suas contas nas redes sociais – e informações pessoais sobre elas foram postadas no aplicativo como se estivessem sendo “leiloadas” ou oferecidas para os usuários do aplicativo, em troca de dinheiro.
A jornalista indiana Ismat Ara, do site de notícias The Wire, um dos principais do país, relatou à RSF que tudo começou no dia 1º de janeiro.
“Um dos meus amigos me enviou uma imagem e eu abri pensando que era um desejo de Feliz Ano Novo, mas não. Foi muito chocante ver minha foto lá.”
Nome de aplicativo é insulto às mulheres
Embaixo da foto estavam as palavras: “Seu Bulli Bai do dia”. Segundo a RSF, “Bulli Bai” é o nome do aplicativo que se apresentava como uma espécie de casa de leilões dentro do GitHub, uma plataforma de aplicativos popular na Índia.
O termo “Bulli Bai”, de origem obscura, refere-se ao pênis no sul da Índia e a uma mulher servil no norte do país.
Com a difusão do aplicativo, “Bulli Bai” tornou-se um insulto para as mulheres muçulmanas em todo o país, amplamente utilizado por “trolls” que apoiam a direita nacionalista hindu na internet.
Ara contou à organização de liberdade de imprensa que apresentou uma reclamação sobre o aplicativo.
“Em minha reclamação, chamei de conspiração porque também é uma espécie de ataque coordenado contra um tipo de mulher muçulmana. É muito desumanizador – as pessoas estão mercantilizando você, tornando você um objeto.
“Como jornalista, torna-se arriscado ter fotos desse tipo circulando por aí porque estou muito exposta. E se as pessoas me agredirem fisicamente? Eu não gostaria que isso acontecesse com mais ninguém”.
Daniel Bastard, chefe do escritório da RSF para a Ásia-Pacífico, disse que o ataque às jornalistas foi “absolutamente horripilante”, e cobrou providências:
“Instamos as autoridades indianas a fazerem o que for necessário para levar os responsáveis por esses aplicativos à justiça.
Governo reage depois de caso vir a público
O ministro da Eletrônica e Tecnologia da Informação, Ashwini Vaishnaw, disse em um tweet em 2 de janeiro que a polícia estava investigando o episódio.
Segundo o jornal The Wire, a polícia de Mumbai prendeu três pessoas em conexão com o caso. A delegacia cibernética de Mumbai também registrou um caso contra os desenvolvedores não identificados do aplicativo e o Twitter que o promoveu.
Chamando o aplicativo de uma “tentativa de silenciar a participação política das mulheres muçulmanas indianas”, a Associação de Mulheres na Lei Criminal (WCLA) expressou preocupação com a falta de ação e transparência no caso por parte da polícia.
A Índia está classificada em 142º lugar entre 180 países no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa de 2021 da RSF .
O presidente Narendra Modi foi incluído na lista de predadores da imprensa elaborada pela Repórteres Sem Fronteiras em 2021, da qual o presidente Jair Bolsonaro também faz parte.
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Outro aplicativo oferecia mulheres muçulmanas
Embora tenha repercutido internacionalmente no primeiro dia deste ano, o caso de falsos leilões de mulheres muçulmanas já tinha sido denunciado no ano passado pela jornalista freelancer Quratulain Rehbar, da Caxemira.
Ela foi foi colocada “à venda” no Bulli Bai, motivando condenação da Repórteres Sem Fronteiras ao assédio online.
[THREAD] #India🇮🇳: @RSF_inter condemns in the strongest terms the cyberharassment targeting Delhi woman journalist @khanthefatima. Her personal details and pictures were posted on a special App called "#SulliDeals", where users rate and auction muslim women as "deal of the day". pic.twitter.com/9Gfi3xyt5Y
— RSF (@RSF_inter) July 12, 2021
A editora do site Print , Fatima Khan , que foi uma das várias jornalistas anunciadas como “negócio do dia” no SulliDeals, descreveu no Twitter da RSF o efeito desta forma especialmente chocante de assédio.
"The common thread among all the targets is that these are all vocal Muslim women who aren’t afraid of expressing themselves," explained to #RSF. "The idea is to humiliate them and send the message that they don't belong in public life."
— RSF (@RSF_inter) July 12, 2021
“Assim que descobri isso, fui obviamente dominados por um medo paralisante, mil pensamentos assustadores passam por sua mente”
Mas decidi que, como jornalista, é minha responsabilidade dizer algo e não ficar quieta.“
O traço comum entre todos os alvos é que todas são mulheres muçulmanas que não têm medo de se expressar; a ideia é humilhá-las e passar a mensagem de que eles não pertencem à vida pública.”
Mulheres muçulmanas e jornalistas atuantes são alvos das ofensas
A Repórteres Sem Fronteiras afirma que as jornalistas que mais expõem suas opiniões são os alvos favoritos dos trolls que usam esses aplicativos.
“Isso vem acontecendo comigo há quatro ou cinco anos”, disse à RSF Sayema, conhecida apresentadora da Rádio Mirchi.
“Com a transformação de fotos e o uso de uma linguagem inapropriada, esse método de silenciar uma mulher não é novo. É como se eles quisessem me colocar de volta ao meu lugar por ser bastante atuante no Twitter. ”
Para a jornalista, os usuários desse tipo de aplicativo parecem pensar que uma determinada categoria de pessoas não deveria ser jornalista. E ela enxerga o que chama de “segmentação comunitária”:
“Tudo sobre você é direcionado – em primeiro lugar, você é uma mulher, em segundo lugar, você é uma muçulmana e, em terceiro lugar, você é uma voz popular e liberal progressista.”
O mais preocupante, para ela, é a impunidade que acompanha o surgimento desse fenômeno. “Em julho, houve leilões sistemáticos e isso deveria ter sido um alerta, mas nada aconteceu”, enfatiza Sayema.
Para jornalistas dessas minorias, especialmente mulheres, um círculo vicioso está lenta mas seguramente se fechando sobre eles. Assédio, impunidade, intimidação, autocensura e silêncio, denuncia a RSF.
Análise | Em 2022, defensores da liberdade de imprensa precisam ir além de gritar e espernear