Londres – Durante seu mandato, o ex-presidente americano Donald Trump usou as redes sociais como poucos governantes tinham feito atรฉ entรฃo, estabelecendo diรกlogo direto com a sociedade principalmente pelo Twitter, onde chegou a ter quase 89 milhรตes de seguidores. 

O castelo comeรงou a ruir no dia 6 de janeiro de 2021, quando a invasรฃo do Capitรณlio por apoiadores incentivados por ele nas mรญdias digitais chocaram o mundo com cenas de destruiรงรฃo da casa legislativa do paรญs. 

Diante do clamor pรบblico, as principais plataformas suspenderam ou expulsaram de vez o polรญtico que governou online a naรงรฃo mais poderosa do mundo. Ele esbravejou contra as Big Techs e tentou voltar ao mundo das mรญdias sociais por conta prรณpria, atรฉ agora sem sucesso, mostrando que nรฃo รฉ tรฃo fรกcil viver sem as gigantes digitais. 

Papel das redes na insurreiรงรฃo

O uso das redes sociais para insuflar o movimento que invadiu o Congresso virou tema espinhoso para as plataformas digitais. 

Em marรงo, legisladores americanos sabatinaram durante vรกrias horas o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, o CEO do Google, Sundar Pichai, e Jack Dorsey, CEO do Twitter na รฉpoca, sobre uma variedade de tรณpicos, incluindo a insurreiรงรฃo.

“Acho que a responsabilidade รฉ das pessoas que agiram para infringir a lei e fazer a insurreiรงรฃo”, disse Mark Zuckerberg, tentando se defender. 

No primeiro aniversรกrio da invasรฃo que deixou cinco mortos e um enorme trauma na democracia americana, continuam circulando livremente conteรบdo endossando as teses do ex-presidente, como a da eleiรงรฃo fraudada, a rejeiรงรฃo ร  mรญdia e teorias conspiratรณrias como o QAnon.

Banir o ex-presidente nรฃo encerrou a histรณria, mas teve um simbolismo importante.

Jรก para o polรญtico,  o resultado foi mais do que simbรณlico, privando-o de um palanque digital que atรฉ hoje nรฃo conseguiu voltar a ocupar. 

Primeira rede a expulsar Trump de verdade foi o Twitter

A primeira plataforma a tomar uma atitude definitiva contra Donald Trump depois da rebeliรฃo no Congresso foi o Twitter. No dia 8 de janeiro, a rede social anunciou o fim da conta @realDonaldTrump, do ex-presidente. 

E quando Trump tentou contornar a suspensรฃo passando a postar na conta @POTUS, o nome oficial do Gabinete do Presidente, a plataforma de mรญdia social removeu esses tuรญtes tambรฉm. A conta da campanha Trump, @TeamTrump, foi igualmente suspensa.

Embora seus apoiadores continuem tuitando sobre suas teses, como a alegada fraude nas eleiรงรตes e crรญticas ร s polรญticas de controle do coronavรญrus, alvos frequentes de ataques virulentos devem ter respirado aliviados. 

Entre eles estรก a imprensa, que se tornou objeto da ira do ex-presidente, inconformado com o noticiรกrio negativo a seu respeito. O tamanho da ira foi medido pelo projeto US Press Freedom Tracker. 

Um levantamento dos 24,5 mil tuรญtes de Trump, do dia em que anunciou a candidatura atรฉ 8 de janeiro, mostrou que 2.500 deles foram contra jornalistas e veรญculos de imprensa tradicionais, numa perigosa estratรฉgia para desacreditar o jornalismo. 

O presidente cunhou termos ofensivos, como Lamestream Media (um trocadinho com mainstream media, expressรฃo que denomina os grandes veรญculos, e a palavra lame, que tem o sentido de algo fraco ou insatisfatรณrio). 

O resultado dessa campanha foi visto na invasรฃo do Capitรณlio. O slogan “Murder the Media” foi esculpido em uma das portas de madeira pelos manifestantes. 

Facebook: suspensรฃo de Trump virou batata-quente 

Embora tenha saรญdo na frente ao punir Donald Trump, o Facebook pena atรฉ hoje com a forma como tem conduzido as sanรงรตes ao ex-presidente. 

A rede suspendeu Trump logo no dia 7 de janeiro. Ele tinha 35 milhรตes de seguidores no Facebook e 24 milhรตes no Instagram.

Mas foi por tempo indeterminado, e nรฃo uma expulsรฃo, o que gerou crรญticas de todos os lados. 

O que o Facebook fez foi jogar a bola para o campo do Conselho de Supervisรฃo, um grupo de personalidades da mรญdia e da sociedade encarregado de analisar as decisรตes de moderaรงรฃo. 

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Seria รณtimo para a empresa se o Conselho decidisse expulsar de vez o ex-presidente, ficando com o รดnus da decisรฃo, que agrada a quem acha que a presenรงa de Trump nas redes sociais era nociva, mas desagrada aos que defendem seu direito ร  liberdade de expressรฃo. 

Mas o plano nรฃo saiu como esperado. Banir Trump de vez do Facebook virou uma batata-quente descomunal, que nem o Conselho pago para tomar decisรตes quis assumir. E que provocou questionamentos sobre a validade de sua prรณpria existรชncia. 

No dia 5 de maio, um grupo de cinco membros do Facebook Oversight Board simplesmente devolveu o problema de volta ร  empresa, instando-a a tomar uma decisรฃo definitiva sobre o caso em seis meses.

Em um longo documento, fez uma sรฉrie de crรญticas ร s polรญticas de moderaรงรฃo do Facebook e recomendou mudanรงas, mas deixou a cargo da empresa anunciar o que faria sobre o futuro de Trump na rede. 

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Em junho, o Facebook saiu de cima do muro, mas nรฃo muito. Anunciou suspensรฃo de Trump da rede social por dois anos. 

Trump nas redes em voo solo 

Desde que deixou a presidรชncia e perdeu suas contas digitais, Donald Trump sinalizou que voltaria ร s redes sociais em grande estilo, com uma plataforma prรณpria para reunir seus seguidores, que nesse tempo migraram para redes sem moderaรงรฃo, como Parler e Gab, que chegaram a crescer rapidamente nos dias que se seguiram ao motim em Washington.

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Mas eram espaรงos marginais, e Trump havia prometido uma rede prรณpria. A primeira tentativa foi com baixo investimento. Acabou tendo baixo impacto e vida curta. 

Um dia antes de o Conselho de Supervisรฃo do Facebook devolver para a empresa a decisรฃo sobre a permanรชncia de Trump na rede social, ele criou um blog com cara de plataforma dentro de seu prรณprio site. 

A seรงรฃo fazia parte do principal portal da campanha presidencial derrotada, usado pelo ex-presidente para arrecadar dinheiro e vender os produtos com a logomarca  MAGA โ€“ Make America Great Again. 

A ferramenta โ€“ chamada de โ€œDa Mesa de Donald J.Trumpโ€, em alusรฃo ao tempo em que ocupava o cargo e dando a ideia de que ele ainda dirigia o paรญs โ€“  nรฃo permitia interaรงรฃo, mas foi desenhada para facilitar o compartilhamento de mensagens no Facebook e no Twitter.

Parecia boa ideia, mas nรฃo emplacou. No dia 2 de junho, a rede americana CNBC informou que o espaรงo estava saindo do ar. 

A NBC News chegou a noticiar que o blog obteve apenas 212 mil engajamentos no total, muito menos do que os tuรญtes do ex-presidente.

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 A saรญda virou motivo de chacota nas redes sociais, como a sugestรฃo de que “Trump cancelou a si prรณprio”.

Gettr, uma rede para apoiar Trump

Ainda nรฃo era a rede prรณpria, mas em 4 de julho, dia da Independรชncia dos EUA, um aliado de Trump, Jason Miller, anunciou a criaรงรฃo da rede Gettr, uma abreviatura para Getting Together (ficando juntos).

Miller trabalhou como porta-voz do ex-presidente na Casa Branca e continuou falando por Trump na mรญdia e nas redes sociais mesmo depois do fim do mandato. 

Um dia apรณs o nascimento, a Gettr entrou no radar da First Draft, que monitora fake news globalmente.

Em um comunicado, a agรชncia apontou que o mito da eleiรงรฃo roubada, repetido diversas vezes por Trump durante o pleito americano, virou tema central na plataforma, que tambรฉm abriu espaรงo para perfis ligados ao movimento QAnon.

Embora a rede nรฃo tenha versรฃo em portuguรชs, brasileiros usaram as redes sociais para convocar usuรกrios. 

Truth Social: enfim Trump nas redes em grande estilo

“A” rede de Trump seria finalmente revelada ao mundo em 20 de outubro, com embalagem de grande empreendimento ร  altura do empresรกrio que se tornou polรญtico.

O ex-presidente anunciou a criaรงรฃo da Truth Social, destinada a lutar contra “a tirania das Big Tech do Vale do Silรญcio”.

O projeto estรก a cargo de uma nova empresa de mรญdia criada por Trump, a Trump Media & Technology Group (TMTG), que alardeia ter nascido com a missรฃo de โ€œdar voz a todosโ€. 

No site do TMTG, a tela de abertura exibe uma bandeira americana em uma paisagem rural com o sol nascendo ao fundo, cenรกrio interiorano associado a uma parcela importante do pรบblico conservador, que vive fora dos grandes centros urbanos americanos. 

A companhia foi criada por uma associaรงรฃo de Donald Trump com a Digital World Acquisition Corp.

Sediada em Miami, a DWAC รฉ uma SPAC (empresa de aquisiรงรฃo de propรณsito especรญfico, especializada em ajudar companhias a lanรงarem aรงรตes em bolsas de valores).

Tem como diretor financeiro o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Braganรงa, que se apresenta como herdeiro do trono do imperador Pedro II. No entanto, o รบnico membro da equipe citado no site รฉ Patrick Orlando, Chairman e CEO.

Alรฉm da Truth Social, a TMTG disse que ofereceria tambรฉm um serviรงo de vรญdeo por assinatura chamado TMTG+, que contarรก com programaรงรฃo de entretenimento, notรญcias e podcasts. Um vรญdeo antecipava a futura rede.

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Considerando o histรณrico de promotor de fake news de Trump, que chegou a merecer da Universidade Cornell em 2000 o tรญtulo de maior emissor de desinformaรงรฃo sobre a Covid, o slogan parece irรดnico: Follow the Truth! (Siga a Verdade!).

Com inspiraรงรฃo na linguagem do Twitter, os posts seriam chamados truths (verdades) ou re-truths, que funcionariam como os retuรญtes. 

Sรณ falta a rede funcionar 

Funcionariam, porque atรฉ agora a promessa da rede social nรฃo se concretizou. 

O domรญnio truth.com exibe apenas um convite para assinar a lista de espera, apesar das promessas de que em novembro entraria no ar em versรฃo beta, para lanรงamento definitivo no primeiro trimestre de 2022.

Um dos motivos para o atraso pode ter sido o constrangimento causado por um hacker no dia do lanรงamento. 

Um integrante do grupo Anonymus conseguiu invadiu o domรญnio e criou vรกrios perfis falsos de pessoas ligadas a Trump, como Mike Pence. Chegou ao requinte de abrir uma conta @realdonaldjtrump, na qual foi postada a desagradรกvel foto de um porco defecando. 

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A versรฃo beta teve que ser tirada do ar ร s pressas depois da invasรฃo, enquanto os administradores da nova rede social bloqueavam as contas criadas irregularmente, tentavam impedir postagens desabonadoras e a criaรงรฃo de novos perfis.

Alรฉm do ridรญculo polรญtico, o vexame comprometeu o projeto pela รณtica comercial, jรก que expรดs uma vulnerabilidade incompatรญvel com uma plataforma que anunciou planos de rivalizar com Twitter e Facebook.

Em dezembro, sem dar explicaรงรตes sobre a ausรชncia da versรฃo beta, a TMTG emitiu um comunicado informando que tinha levantado   US$ 1,25 bilhรฃo junto a investidores e estava pronta para rivalizar com as gigantes de tecnologia.

No comunicado destinado ao mercado financeiro, o ex-presidente utilizou uma linguagem incomum para esse tipo de nota, voltando a atacar os inimigos que o privaram do contato direto com seus milhรตes de seguidores. 

No segundo parรกgrafo do texto, o ex-presidente afirmou: 

โ€œUS$ 1 bilhรฃo envia uma mensagem importante ร s Big Techs, de que a censura e a discriminaรงรฃo polรญtica devem acabar.

A Amรฉrica estรก pronta para a TRUTH Social, uma plataforma que nรฃo discriminarรก com base na ideologia polรญtica. ร€ medida que nosso balanรงo patrimonial se expande, a TMTG estarรก em uma posiรงรฃo mais forte para lutar contra a tirania das Big Techsโ€

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A Amรฉrica pode estar pronta, mas a Truth Social parece que ainda nรฃo, indicando que a volta de Trump ร s redes sociais รฉ um caminho bem mais complexo do que o ex-presidente poderia imaginar. 

Por enquanto, ele continua contando com seus apoiadores para dialogar com usuรกrios das redes sociais. Isso quando nรฃo sรฃo tambรฉm cancelados. 

O caso mais recente foi a da congressista Marjorie Taylor Greene, expulsa do Twitter e suspensa do Facebook nos primeiros dias de 2022por posts com desinformaรงรฃo sobre a Covid. 

Quando a notรญcia surgiu, o ex-presidente voltou a bater nas redes โ€œTodos deveriam abandonar o Twitter e o Facebookโ€, disse ele. โ€œEles sรฃo enfadonhos, tรชm apenas um ponto de vista da esquerda radical. . . eles sรฃo uma vergonha. . . continue lutando, Marjorie! โ€

Assim que a Truth Social entrar no ar, a congressista terรก outra alternativa. Enquanto isso nรฃo acontece, ela ficou limitada ร  sua conta parlamentar, na qual se comporta bem melhor do que na conta pessoal. 

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