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Crime bárbaro contra repórteres no Haiti expõe riscos do jornalismo na América Latina

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Londres – O brutal assassinato de dois jornalistas no Haiti confirma o alerta feito em relatório da Unesco sobre a liberdade de imprensa no dia anterior ao crime, de que a América Latina se transformou na segunda região do mundo mais perigosa para o jornalismo, respondendo por 14 das 55 mortes registradas em 2021.

Os jornalistas Wilguens Louissaint e Amady John Wesley foram baleados e teriam sido queimados vivos na quinta-feira (6/1) enquanto cobriam confronto entre gangues na capital haitiana, Porto Príncipe. Há sete meses, outro jornalista do Haiti havia sido morto. 

A porta-voz da ONU Stephane Dujarric disse: “Este é apenas mais um exemplo do que os jornalistas de todo o mundo enfrentam […] apenas por tentarem dizer a verdade”.

Jornalista do Haiti trabalhava para rádio canadense

A violência no Haiti se intensificou desde o assassinato do presidente  do país, Jovenel Moise, em julho de 2021. Há poucos dias, o primeiro-ministro, Ariel Henry, teve que fugir de uma cidade ao norte do país depois de um tiroteio entre seus seguranças e um grupo armado.

Gangues criminosas praticam sequestros e bloqueios em terminais de distribuição de gás – e miram em jornalistas que denunciam seus atos, assim como vem ocorrendo em vários países da região, em que o crime organizado ou políticos insatisfeitos atacam a mídia. 

Amady John Wesley, de 30 anos, trabalhava para a estação de rádio Écoute FM, sediada em Montreal, Canadá. A emissora afirmou que o repórter foi assassinado de forma “selvagem”, e suspendeu  sua cobertura no Haiti em face do crime.

A outra vítima, Louissaint, de 22 anos, colaborava com várias mídias digitais em Porto Príncipe. Um terceiro repórter que cobria o confronto, Wilmann Vil, conseguiu escapar ileso.

A polícia do Haiti não confirmou as informações de que eles teriam sido queimados vivos, mas afirmou em um comunicado que os corpos tinham “ferimentos de bala de alto calibre”.  

Com Louissant e Wesley, três jornalistas foram mortos no Haiti em sete meses. O repórter Diego Charles foi assassinado em junho passado, junto com um ativista político da oposição e outras pessoas. Os crimes seguem impunes.

Por dois anos consecutivos, a partir de 2018, dois casos chocaram profundamente o país – o desaparecimento do fotojornalista Vladjimir Legagneur e o assassinato do jornalista Néhémie Joseph, no ano seguinte.

‘Ataque deliberado’ a jornalistas do Haiti 

O presidente da Haitian Online Media Association (Associação de Mídia Online do Haiti), Gordson Lebrun, atribuiu o crime às Gangues Toda-Poderosas (Almigthy Gangs), e exigiu justiça. 

“Tudo indica que foi um ataque deliberado contra jornalistas”, disse o presidente do Comitê de Liberdade de Imprensa e Informação da SIP (Sociedade Interamericana de Imprensa), Carlos Jornet, diretor do jornal argentino La Voz del Interior, de Córdoba, Argentina. 

Ele acrescentou que “a única maneira de deter a violência e impunidade que cerca os crimes contra jornalistas é por meio de investigações eficientes e da administração da justiça”.

O presidente da SIP, Jorge Canahuati Larach, lamentou o fato e condenou o assassinato. 

“Começamos o ano com um acontecimento horrendo que ameaça o jornalismo após o caos e a violência que passaram a reinar no Haiti com o assassinato do presidente Jovenel Moise ”, disse ele.

Unesco: América Latina responde por 14 dos 55  jornalistas mortos em 2021 

O drama dos jornalistas no Haiti não é um fato isolado na América Latina. Por não ter registrado nos últimos anos conflitos civis de longa duração ou guerras como países da África e da Ásia, a região não figurava entre as mais perigosas para a mídia, mas esse quadro vem mudando. 

Levantamento da Unesco divulgado no dia 6 de janeiro contabilizou  55 profissionais de mídia e jornalistas assassinados em todo o mundo em 2021, dos quais 14 na América Latina e Caribe.

Além dos assassinatos, muitos profissionais de imprensa continuam sujeitos a altos índices de violência física, de intimidação, de assédio e com risco de serem presos, que podem ocorrer inclusive durante a cobertura de protestos de rua, como aconteceu no Cazaquistão esta semana.

Na América Latina isso também virou rotina. Em julho passado, dez repórteres foram mantidos em em prisão domiciliar ou sob custódia em instalações do Estado por cobrirem protestos de rua, motivando apelo internacional da organização Repórteres Sem Fronteiras

Repórteres Sem Fronteiras: pandemia agravou ameaças 

O Índice de Liberdade de Imprensa Mundial da organização Repórteres Sem Fronteiras (RSF), o mais abrangente estudo da situação da prática do jornalismo no mundo, destacou em 2021 o “declínio generalizado na América Latina”, observando que “com algumas exceções, a crise do coronavírus exacerbou um ambiente já complexo e hostil para os jornalistas”.
A RSF registrou que a  pandemia alimentou a censura na América Latina e os repórteres tiveram grandes problemas para descobrir como os governos da região lidaram com a crise de saúde pública. 

Esse foi um dos fatores que levou a região a ver a maior deterioração em sua pontuação geral de violações à liberdade de imprensa (+ 2,5%).

O Brasil teve queda de 4 pontos no índice em relação a 2020, ficando na quarta posição.

Embora sem mortes como aconteceu com os repórteres haitianos, perdeu terreno devido ao que a RSF classificou como “falta de transparência por parte do governo liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, que tentou por todos os meios possíveis minimizar a escala da crise, criando tensão entre as autoridades e os meios de comunicação nacionais”.

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Mas o caso dos jornalistas do Haiti faz lembrar um dos episódios mais sombrios da história da imprensa no Brasil. Em 2002, o repórter investigativo Tim Lopes foi sequestrado e assassinado por traficantes de drogas, durante uma reportagem na comunidade Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro. 

Ele sofreu violência extrema quando ainda estava vivo, e o corpo foi queimado em uma fogueira feita com pneus. Com a comoção pública provocada pelo caso, traficantes foram identificados, presos e condenados, em um raro caso de punição para crimes contra jornalistas. 

Crimes contra imprensa seguem impunes

Na última década, os culpados por cerca de oito a cada dez assassinatos de jornalistas no mundo não receberam qualquer  punição, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ) em levantamento divulgado para marcar o Dia Internacional pelo Fim da Impunidade por Crimes contra Jornalistas em novembro de 2021. 

O Brasil é um dos integrantes do “clube” de 12 países em que agressões à imprensa sem que os autores sejam responsabilizados se repete com frequência. 

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Brasil, campeão de assédio a jornalistas 

Embora episódios como esse não tenham virado rotina no país, o Brasil virou um dos campeões mundiais de assédio a jornalistas, com casos seguidos de profissionais de mídia atacados online e ao vivo. 

O caso mais notório é o da jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo.

Em 2021 ela ganhou processos movidos contra o presidente Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo, depois de uma campanha contra ela nas redes sociais em resposta a denúncias de uso ilegal do WhatsApp para mobilização de eleitores.

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Assim como jornalistas do Haiti, profissionais mexicanos também sofrem com gangues

Embora vários países da região tenham visto a liberdade de imprensa se deteriorar, as estatísticas da América Latina nos índices de liberdade de imprensa são puxadas para o alto pelo México, segundo país com maior número de jornalistas assassinados em 2021, ao lado do Afeganistão.

Desde 2000, o México já teve assassinados mais de 150 profissionais de mídia. Uma das causas é a violência de grupos ilegalmente armados, como os cartéis do tráfico de drogas. A outra é a reação de políticos acusados de más práticas ou corrupção. 

Uma das histórias mais absurdas ocorridas no país em 2021, exemplo da ousadia do crime organizado como o que vitimou jornalistas no Haiti, foi a ameaça a uma jornalista de TV feita por um cartel de drogas.

O grupo criminoso divulgou um vídeo pelas redes sociais em que homens mascarados ameaçavam de morte a apresentadora do principal telejornal da Milenio Television, Azucena Uresti, alegando “cobertura injusta” favorecendo grupos rivais. 

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Em dezembro, o México reconheceu pela primeira vez a responsabilidade do Estado na morte de um profissional de imprensa.

As autoridades mexicanas fizeram um pedido de perdão público e assinaram um acordo de reparação com os familiares do jornalista Alfredo Jiménez Mota, desaparecido em 2005.

Mas a impunidade no país continua sendo o padrão. A maioria dos crimes contra jornalistas continua impune, e o medo afeta a informação à sociedade. 

O Sindicato Nacional de Redactores de la Prensa do país afirma que em  95% dos assassinatos de jornalistas, os autores não foram punidos. 

Jornalistas lutam contra ameaça e censura 

A crise que afeta a imprensa no México foi estudada pelas professoras Celeste González de Bustamante e Jeannine E. Relly, da Escola de Jornalismo da Universidade do Arizona (EUA).

Elas passaram os últimos dez anos em uma pesquisa de campo viajando pelo México e entrevistando mais de cem pessoas para analisar a violência contra a imprensa.

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A pesquisa descreve o ambiente de ameaça e censura imposta por políticos corruptos e pelo crime organizado, e como isso afeta as práticas nas redações, assim como a saúde mental e o bem-estar social e econômico dos jornalistas.

Em algumas partes do México, relatam as pesquisadoras, há uma política chamada de “sinal vermelho, sinal verde”, em que jornalistas precisam pedir autorização do crime organizado para publicar matérias.

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