Londres – O julgamento do suspeito de tentar matar um jornalista paquistanês obrigado a se refugiar na Holanda depois de sofrer violência em seu país está sendo acompanhado de perto por entidades como a Repórteres Sem Fronteiras, que acha que o caso pode abrir um precedente global na luta contra a impunidade de crimes cometidos contra jornalistas no exílio.
Gohir Khan, cidadão britânico de 31 anos nascido no Paquistão, está sendo julgado desde quinta-feira (13/1) em Londres por “conspirar para cometer assassinato” em 2021, tendo como alvo Ahmad Waqass Goraya.
O jornalista tem um blog crítico ao governo paquistanês, e sugere envolvimento de agentes do serviço secreto na violência que sofreu no Paquistão, e que o fez partir para o exílio. A RSF disse esperar que o julgamento esclareça atos do serviço secreto para silenciar jornalistas dissidentes.
Violência fez jornalista deixar Paquistão
Observadores da RSF acompanham o julgamento, previsto para durar duas semanas. Goraya vive na Holanda, mas está escondido sob proteção do governo do país que o abrigou quando deixou o Paquistão.
Os assuntos sobre os quais Goraya escreve em seu blog incluem violações de direitos humanos e casos de tortura por parte dos militares paquistaneses. Ele também apóia a revogação das leis de blasfêmia.
Em janeiro de 2017 ele foi um dos cinco profissionais de mídia pró-direitos humanos sequestrados em diferentes partes do Paquistão com poucos dias de diferença, em uma sequência de violência contra jornalistas críticos.
Na época, a Human Rights Watch, legisladores da oposição e ativistas disseram que os sequestros quase simultâneos apontavam para o envolvimento do governo em um país com histórico de desaparecimentos forçados.
Goraya, que como outros ativistas criticava o extremismo religioso e o establishment militar, recusou-se a dizer qualquer coisa sobre seus captores ou descrever o que aconteceu durante sua provação enquanto vivia no país.
Mas ele rejeitou com raiva as acusações de que era um traidor por ousar falar sobre supostos abusos de poder no Paquistão, insistindo que era um verdadeiro patriota.
“Nada era contra o Paquistão, nada era contra o Islã, eu criticava as políticas porque quero ver um Paquistão melhor”, disse ele após o sequestro, acrescentando em uma mensagem posterior: “Queremos um Paquistão com estado de direito”.
Exílio do jornalista na Holanda
Libertado depois de várias semanas, Goraya fugiu imediatamente para a Holanda, de onde disse à BBC que havia sido torturado “além dos limites” e identificou seus sequestradores como uma “instituição governamental” ligada aos militares.
Em março de 2019, ele foi um dos seis jornalistas acusados em um memorando interno da Agência Federal de Investigação (FIA), uma ramificação do Ministério do Interior paquistanês, de postar fotos do jornalista saudita assassinado Jamal Khashoggi antes de uma visita do príncipe herdeiro saudita Mohammad Bin Salman para Islamabad.
A FIA disse que os jornalistas deveriam ser “investigados” pelos serviços de inteligência, o que, neste contexto, presumivelmente significava sofrer assédio e intimidação, segundo a Repórteres Sem Fronteiras.
Na Holanda, mais violência contra o jornalista
Há quase um ano, Ahmad Waqass Goraya está escondido em um local secreto na Holanda, depois que a polícia holandesa o informou, em 12 de fevereiro de 2021, sobre sérias ameaças à sua vida.
Na mesma época, de acordo com a promotoria, Gohir Khan pegou o trem Londres-Amsterdã e alugou um carro para observar a região perto da casa de Waqass Goraya, supostamente preparando o seu assassinato.
Gohir Khan foi preso pela Scotland Yard em junho de 2021. Em julho compareceu a uma audiência preliminar no Tribunal Criminal de Old Bailey, no centro da capital britânica.
Antes da prisão, porém, o jornalista já vinha sendo ameaçado em solo holandês.
Ahmad Waqass Goraya relatou ter sido agredido em fevereiro de 2020 por dois homens do lado de fora de sua casa em Roterdã enquanto falava ao telefone.
“Um homem apareceu e começou a me dar socos no rosto enquanto outro homem filmava o ataque”, disse Goraya à RSF.
O homem que o agrediu ameaçou o blogueiro de morte e disse que sabia exatamente onde ele e sua família moravam.
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Goraya apresentou uma queixa na delegacia de polícia perto de Marconiplein, no distrito de Roterdã e disse que “o ataque se encaixa no modus operandi das agências de espionagem paquistanesas.
“Juntamente com outros dissidentes paquistaneses, eu tinha informações de que uma lista de alvos potenciais estava circulando”.
Em outro aspecto preocupante do caso, segundo a RSF, Goraya também disse ser sido informado que eles teriam como alvo “alguém de etnia pashtun”.
Esse ataque aconteceu dia em que as manifestações estavam sendo realizadas no Paquistão e na diáspora paquistanesa em apoio ao Movimento Pashtun Tahafuz, que defende a minoria pashtun, alvo das agências de inteligência do Paquistão.
Serviço secreto e a violência contra jornalistas dissidentes
O gerente do escritório da Repórteres Sem Fronteiras para a região Ásia-Pacífico, Daniel Bastard, disse:
“O julgamento de Muhammad Gohir Khan claramente tem significado histórico.
Desde o assassinato atroz do jornalista saudita Jamal Khashoggi pelo serviço secreto de seu país, esta é a primeira vez que se pode sinceramente esperar que o suposto patrocinador do assassinato de um jornalista exilado tenha que pagar por suas ações”.
Bastard disse esperar que o tribunal procure todos os indivíduos que possam estar envolvidos nesta tentativa de assassinato.
“A organização espera que este julgamento sirva de exemplo e esclareça as ações do serviço secreto paquistanês destinadas a silenciar as vozes dos jornalistas dissidentes”.
Jornalismo sob risco no Paquistão
O Paquistão está classificado na 145º posição entre 180 países no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa publicado pela RSF.
As perseguições à mídia e a jornalistas cidadãos e blogueiros vem se intensificando. Em julho de 2021, vários órgãos de defesa dos direitos humanos reuniram-se em para assinar uma nota conjunta expressando sérias preocupações com o crescente número de ataques a jornalistas paquistaneses que criticam o governo, e pediram às autoridades que investiguem tais incidentes de forma imediata e imparcial.
O apelo conjunto da Human Rights Watch, da Anistia Internacional e da Comissão Internacional de Juristas ocorreu em meio a uma série de golpes dirigidos à mídia independente do Paquistão.
Vários repórteres paquistaneses veteranos deixaram o jornalismo após serem ameaçados. A Geo TV privada foi retirada do ar e as autoridades interromperam a distribuição do Dawn, o mais antigo jornal de língua inglesa do Paquistão.
Os principais colunistas reclamaram que matérias consideradas críticas ao Exército passaram a ser rejeitadas por veículos sob pressão dos militares.
“Os ataques recentes e a crescente pressão sobre jornalistas que criticam o governo do Paquistão são motivo de séria preocupação”, disseram os três órgãos de vigilância em comunicado conjunto em 3 de junho, acrescentando que “os suspeitos de responsabilidade criminal devem ser processados prontamente e com justiça”.
Reagindo às pressões, o país aprovou uma lei de proteção aos jornalistas, que foi recebida com reservas pelo setor.
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