Londres – Há quase seis meses, quando o Talibã tomou o poder, a promessa de que os jornalistas do Afeganistão poderiam continuar a realizar o seu trabalho com alguma liberdade foi recebida com desconfiança. A realidade está mostrando que os céticos tinham razão.

O episódio mais recente de repressão foi o bloqueio a uma conferência de imprensa convocada pela Federação de Jornalistas do Afeganistão para expor os problemas enfrentados pela mídia no país, que aconteceu na última quarta-feira (25/1).

O local foi invadido por 60 membros armados da polícia de Cabul, controlada pelo Talibã, e da Direção Geral de Inteligência (GDI), a agência de investigações do grupo extremista, segundo a organização internacional Centro de Proteção a Jornalistas (CPJ). 

13 grupos de jornalistas do Afeganistão participavam do encontro

O encontro teria a participação de 13 associações de imprensa, de acordo com o Free Speech Hub, um dos grupos de defesa da liberdade de imprensa no país. 

Pouco antes do início, homens armados entraram no local onde a entrevista coletiva seria realizada, identificaram-se como integrantes da polícia e da GDI e inicialmente disseram que estavam lá para garantir a segurança da reunião, como relatou o Free Speech Hub. 

Um dos homens armados questionou os participantes sobre o tema da coletiva e ameaçou retaliação se eventos dessa natureza fossem realizados sem permissão do Talibã, disse Sayed Ali Asghar Akbarzadeh, membro do comitê de liderança da Federação, que falou com o CPJ por telefone. 

Outro homem, que não deu seu nome ou cargo, ordenou o cancelamento da conferência, segundo um jornalista que estava no local e conversou com o CPJ sob condição de anonimato por medo de represálias. O jornalista disse acreditar que o homem era membro da GDI.

“As autoridades do Talibã precisam garantir que a polícia e os agentes de inteligência não interfiram na operação da mídia e das organizações de liberdade de imprensa”, disse Steven Butler, coordenador do programa do CPJ na Ásia para o Afeganistão.

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A polícia e os agentes de inteligência detiveram três jornalistas que planejavam cobrir a conferência, segundo o Free Speech Hub, que identificou esses repórteres como Masoor Lutfin (assessor de imprensa da Federação), Fardin Attai e Zarif Karimi. Eles foram libertados em seguida. 

Ahmadullah Wasiq, porta-voz adjunto do Talibã no Afeganistão, não respondeu ao pedido de comentário do CPJ sobre o bloqueio. 

Jornalismo no Afeganistão dizimado 

O ato é mais um em uma longa série de investidas do Talibã sobre os jornalistas e veículos de imprensa no Afeganistão, que em menos de seis meses desmantelaram o setor de mídia e suprimiram quase que inteiramente o acesso da população a informações oriundas de  fontes independentes. 

Poucos dias antes da tomada de Cabul e com a repressão a jornalistas já em curso em outras cidades do Afeganistão dominadas pelo Talibã, a organização Repórteres sem Fronteiras reuniu-se com líderes do grupo, recebendo deles promessas de que a mídia seria respeitada. 

No entanto, eles se recusaram a assinar o compromisso.

Dias depois da ocupação da capital, uma coletiva de imprensa com a presença de várias jornalistas afegãs mulheres procurou dar impressão de que a nova fase do grupo extremista no poder seria diferente da primeira, encerrada em 2001 com a invasão do país pelos EUA. 

A sessão foi conduzida pelo porta-voz do governo, Zabihullah Mujahid, uma figura que saiu das sombras depois de ter passado anos falando com a imprensa sem mostrar o rosto, de forma tranquila e com os novos líderes do país apresentando-se bem-trajados e serenos. 

Uma jornalista da Al-Jazeera foi a primeira a fazer perguntas, em um sinal de que as mulheres não estavam sendo discriminadas devido às restrições impostas a elas pelo grupo extremista.

Naquele mesmo dia, repórteres mulheres do TOLOnews, um dos principais canais do país, voltaram ao ar.

Afeganistão, líder em mortes de jornalistas em 2021

Mas a prática foi diferente, com uma sequência de assassinatos e perseguições, levando o Afeganistão a registrar nove mortes de jornalistas em 2021, segundo a Repórteres Sem Fronteiras.

E a ver seu jornalismo que havia florescido no período de ocupação pelas forças ocidentais ser novamente submetido ao regime do Talibã e às restrições impostas por ele. 

Um dos momentos mais contraditórios foi a invasão de um estúdio de TV por homens armados, que fizeram um aterrorizado apresentador ler um comunicado pedindo à população para não ter medo. 

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Logo após a ocupação do Talibã, a Federação Internacional dos Jornalistas chegou a questionar que tipo de jornalismo poderia ser feito sob a Sharia, a lei islâmica. 

Em setembro, a resposta veio. O Talibã baixou um pacote de 11 normas incluindo a proibição de matérias contrárias ao Islã e a recomendação de “cuidado” ao publicar notícias não confirmadas pelo governo, o que foi entendido como censura prévia.

Em seguida publicou novas restrições para o setor audiovisual, proibindo mulheres de aparecerem sem véu na TV e vetando inteiramente sua presença em programas de entretenimento ou novelas

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Mulheres jornalistas foram as mais atingidas  

Em dezembro, a organização Repórteres Sem Fronteiras fez um relatório sobre a situação, revelando que 231 veículos de comunicação haviam fechado até aquele momento no país, levando 6,4 mil  jornalistas a perderam seus empregos desde 15 de agosto, quando as tropas do grupo extremista chegaram a Cabul.

As mulheres foram as mais atingidas. Embora não proibidas formalmente de trabalhar, muitas passaram a ser perseguidas, sobretudo as mais conhecidas, e tiveram que sair do país.

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Ao produzir o relatório, a RSF questionou o porta-voz do governo, o mesmo que em agosto havia comandado a entrevista coletiva assegurando que a mídia poderia trabalhar livremente.

Ele disse que o Emirado Islâmico do Afeganistão apoia “a liberdade para a mídia na estrutura definida para preservar os interesses superiores do país, com respeito à Sharia e ao Islã”.

Na prática, a preservação dos interesses superiores está se traduzindo na imposição de restrições severas, agressões, perseguições e  bloqueio a notícias sobre os problemas que o país enfrenta, como a fome. 

TOLOnews segue funcionando no Afeganistão 

Um dos poucos veículos que segue transmitindo notícias com alguma tolerância do Talibã é o TOLOnews, que tem um site na internet e um canal de TV cobrindo todo o país.

Na versão digital em inglês e também em árabe há um bloco dedicado a noticiar problemas relacionados à  liberdade de imprensa, repercutindo manifestos de entidades internacionais como Federação Internacional de Jornalistas, CPJ e Repórteres Sem Fronteiras. 

Em matéria publicada no dia 4 de janeiro, o TOLO registra uma reunião de jornalistas em Cabul para tratar de problemas financeiros e restrições no acesso a informações, com um relato imparcial mostrando os dois lados da história, sem demonstrar posição favorável ou contrária. 

A reportagem dá voz a alguns representantes de órgãos de imprensa presentes ao encontro, como Zahid Engar, chefe da Radio Sulh-e-Paygham, que reclamou da receita baixa e altos custos operacionais. 

Houve também manifestações de representantes de outras rádios de províncias que disseram não serem autorizadas a ter jornalistas mulheres em seus quadros nem permissão para apurar notícias nos departamentos de segurança ou governo local. 

Ao fim da reportagem, o TOLOnews publica a posição dos representantes do Talibã presentes ao encontro, que enfatizaram que “a mídia deve considerar os valores nacionais e islâmicos na cobertura”, e refletir a voz do povo, “de forma que os ganhos positivos do governo e do povo sejam preservados”.

A fala do representante do Talibã também é exibida no vídeo. 

Jornalistas estrangeiros relatam crise no Afeganistão 

No ambiente de censura e medo, resta à imprensa internacional documentar a crise em que o Afeganistão mergulhou sob o domínio do Talibã, mostrando que os ganhos a que o Talibã se refere estão longe de positivos para boa parte da população, afetada pela insegurança e pela interrupção de ajuda internacional. 

Na semana passada, a emissora britânica SkyNews exibiu uma série de reportagens feitas pela correspondente Alex Crawford, narrando  o drama de pessoas obrigadas a vender o rim por US$ 1,5 mil para sobreviver. Ela mostrou também jovens casais vendendo os filhos para poderem alimentar os outros. 

Crawford afirma que esse comércio sempre existiu, mas que agora se acentuou,  e que os órgãos vão para o Irã. Imagens de mulheres e homens com cicatrizes abdominais foram reproduzidas em vários veículos globais. 

No domingo (30/1), a capa do jornal britânico Sunday Times traz um artigo da correspondente em Cabul, Christina Lamb, que resume a crise humanitária que assola o Afeganistão menos de seis meses depois de o Talibã assumir o poder: 

“Em meus 35 de anos como repórter, nunca vi nada com essa magnitude”.

Ela destaca o drama de um homem que há seis meses vendeu a filha para casar com um paquistanês a fim de comprar comida, e agora tenta vender outros filhos para alimentar 30 pessoas da família. 

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