Londres – A invasão da Ucrânia pela Rússia e o medo de um ataque nuclear podem ter surpreendido alguns, mas não os cientistas responsáveis pelo Relógio do Juízo Final, que todos os anos quantificam as ameaças ao planeta e à humanidade empregando a metáfora de quanto tempo falta para a meia-noite – mantida em 100 segundos este ano.
A análise publicada em janeiro pelo painel do Doomsday Clock destacava a Ucrânia como “um potencial ponto de inflamação, com o envio de tropas russas para a fronteira ucraniana aumentando as tensões”.
No último domingo, os cientistas emitiram uma nota reiterando a probabilidade do uso de armas nucleares na região. Eles classificaram o momento como “perigoso, fluido e instável”, utilizando mais uma vez a eficiente ideia de marketing em que o relógio se transformou para aproximar a ciência do público.
Guerra nuclear motivou criação do Relógio do Juízo Final
Criado em 1945 por Albert Einstein e cientistas da Universidade de Chicago que ajudaram a desenvolver as primeiras armas atômicas no Projeto Manhattan, o Bulletin of the Atomic Scientists (Boletim de Cientistas Nucleares) estabeleceu o Doomsday Clock dois anos depois, usando as imagens do apocalipse (meia-noite) e o idioma contemporâneo da explosão nuclear (contagem regressiva para zero) para simbolizar as ameaças à humanidade e ao planeta.
O horário do Relógio do Juízo Final é definido todos os anos pelo Conselho de Ciência e Segurança, um grupo de especialistas que inclui 11 ganhadores do Prêmio Nobel.
O Doomsday Clock tornou-se um elemento da cultura pop e um indicador universalmente reconhecido da vulnerabilidade do mundo diante das mudanças climáticas, de tecnologias disruptivas e do que os autores chamam de “catástrofe de armas nucleares”.
Essa catástrofe, que nos últimos dias ganhou espaço nas análises sobre os planos de Vladmir Putin em sua ofensiva contra a Ucrânia, foi prevista pelos cientistas na edição de 2022 , que manteve o relógio em 100 segundos para a meia-noite do juízo final, já que “nenhum progresso significativo foi feito em 2021 para reduzir os perigos enfrentados pelo mundo”.
No domingo (27), a presidente do conselho, Rachel Bronson, assinou um manifesto em nome dos cientistas condenando a invasão da Ucrânia pela Rússia:
“Reiteramos a situação precária na Ucrânia.
Também relatamos repetidamente sobre os perigos de escaladas não intencionais à medida que posturas e investimentos militares, juntamente com declarações políticas, aumentam a probabilidade de que armas nucleares possam ser usadas.
Isso é exatamente o que 100 segundos para a meia-noite transmite. É perigoso, fluido e instável.”
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Hora do juízo final mais próxima por tendências negativas de segurança internacional
O Boletim deste ano, publicado antes de que sinais mais concretos da invasão estiverem à vista, dizia que a mudança no comando dos EUA em 2020, com a saída de Donald Trump, deu esperança de que o que parecia uma corrida global em direção à catástrofe pudesse ser interrompida e até revertida:
“De fato, em 2021, o novo governo americano mudou algumas políticas que tornaram o mundo mais seguro: concordou com uma extensão do novo acordo de controle de armas START, iniciou negociações de estabilidade estratégica com a Rússia; anunciou a tentativa de retornar ao acordo nuclear com o Irã; e reintegrou-se ao acordo climático de Paris.
[…] Uma abordagem mais moderada e previsível à liderança e ao controle de um dos dois maiores arsenais nucleares do mundo marcou uma mudança bem-vinda em relação aos quatro anos anteriores.”
No entanto, o painel do Relógio do Juízo Final julgou que isso não foi suficiente para equilibrar “as tendências negativas de segurança internacional que demoravam a se desenvolver e continuaram ao longo do horizonte de ameaças em 2021”.
E a Rússia fazia parte do roteiro.
As relações dos EUA com a Rússia e a China permanecem tensas, com os três países envolvidos em uma série de esforços de modernização e expansão nuclear – incluindo o aparente programa de larga escala da China para aumentar sua implantação de mísseis nucleares de longo alcance baseados em silos; a pressão da Rússia, China e Estados Unidos para desenvolver mísseis hipersônicos; e o teste contínuo de armas anti-satélite por muitas nações.
Os cientistas afirmaram que se esses movimentos não fossem contidos o mundo poderia entrar em uma “nova e perigosa corrida armamentista nuclear”, como a que muitos temem agora.
A ‘corda bamba nuclear’ do Doomsday Clock
O capítulo do Boletim de 2022 que explica os riscos atômicos ganhou o nome de “a corda bamba nuclear”.
Para os cientistas, durante o ano de 2021, alguns riscos nucleares diminuíram, enquanto outros aumentaram. “E as próximas decisões sobre políticas nucleares podem gerar modificações salutares ou perigosas de uma situação de segurança já incerta e preocupante”, escreveram.
Um dos pontos positivos destacados foi justamente um acordo firmado em fevereiro do ano passado entre os Estados Unidos e a Rússia de Vladimir Putin para renovar o programa New START.
“Essa extensão cria uma janela de oportunidade para negociar um futuro acordo de controle de armas entre os dois países que possuem 90% das armas nucleares do planeta.
Os Estados Unidos e a Rússia também concordaram em iniciar dois conjuntos de diálogos sobre a melhor forma de manter a “estabilidade nuclear” no futuro: o Grupo de Trabalho sobre Princípios e Objetivos para o Controle de Armas Futuro e o Grupo de Trabalho sobre Capacidades e Ações com Efeitos Estratégicos.
Esses grupos se reuniram [em 2021] e no início de 2022 devem relatar os resultados iniciais das consultas, com o objetivo de moldar futuros acordos de controle de armas.”
A previsão feita em janeiro não se confirmou, com a possibilidade de um ataque nuclear no conflito entre a Rússia e a Ucrânia sendo seriamente considerada.
A Rússia também foi destacada na análise dos cientistas, ao lado da China, pelos testes com armas anti-satélites:
“Os chineses começaram a construir novos silos de ICBM em larga escala, levando a preocupações de que a China possa estar considerando uma mudança em sua doutrina nuclear.
A China e a Rússia testaram armas anti-satélite recentemente, aumentando as preocupações sobre a rápida escalada em qualquer conflito convencional com os Estados Unidos.
Os esforços dos três países para lançar mísseis hipersônicos estão começando a produzir resultados, intensificando a competição. Embora não haja consenso tanto das causas quanto das consequências desses programas, eles marcam claramente o início de uma nova competição de armas.”
Os riscos nucleares em relação à Coreia do Norte foram igualmente apontados pelos cientistas.
“Embora nenhuma conversa entre a Coreia do Norte e os Estados Unidos tenha ocorrido em 2021, os norte-coreanos não retomaram os testes de armas nucleares ou mísseis balísticos intercontinentais de longo alcance (ICBMs), mas os testes de mísseis de curto alcance continuaram.”
O boletim afirma que os norte-coreanos continuam a testar mísseis de curto e médio alcance com capacidade nuclear, incluindo veículos de cruzeiro, balísticos e planadores, e que há evidências de que estão reiniciando a produção de plutônio.
E registra que Índia e Paquistão continuam a avançar em suas capacidades nucleares, de mísseis e outras capacidades militares “sem diminuição de possíveis pontos de inflamação que possam levar a um conflito nuclear”.
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Possibilidade “assustadora” de armas nucleares no Oriente Médio
O Irã foi classificado como “o lado negativo” do ano no relatório que serviu para definir a hora do relógio do juízo final em 2022.
O Irã continua a construir um estoque de urânio enriquecido, insistindo que todas as sanções sejam removidas antes de retornar às negociações com os Estados Unidos.
“A janela de oportunidade parece estar se fechando. Com o tempo, os vizinhos do Irã, principalmente a Arábia Saudita, podem se sentir compelidos a adquirir capacidades semelhantes, prenunciando a possibilidade assustadora de um Oriente Médio com vários países com experiência e material para construir armas nucleares.”
“Como demonstrou a insurreição de 6 de janeiro de 2021 no Capitólio dos EUA, nenhum país está imune a ameaças à sua democracia e, em um estado com material utilizável em armas nucleares e armas nucleares, ambos podem ser alvos de terroristas e fanáticos.
Os invasores chegaram perto de capturar o vice-presidente Mike Pence e o “comando nuclear” que acompanha o vice-presidente como sistema de backup para autorizar lançamentos nucleares.”
Os cientistas do Doomsday Clock disseram em janeiro esperar que a redução do papel das armas nucleares nas políticas de dissuasão e defesa dos EUA afetasse positivamente as posturas de armas nucleares de outros países, tornando o mundo mais seguro.
Mas ainda assim, as previsões não eram otimistas, levando o Relógio do Juízo Final a continuar marcando os mesmos 100 segundos para a meia-noite, o ponto mais próximo que já esteve do “apocalipse do fim da civilização, porque o mundo permanece preso em um momento extremamente perigoso”:
“Em 2019, chamamos isso de novo anormal e, infelizmente, persistiu.”
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