Londres – A jornalista afegã Zahra Joya, de 29 anos, foi escolhida como uma das 12 Mulheres do Ano pela revista Time. A profissional de imprensa aparece na lista ao lado de nomes como a atriz Kerry Washington, a cantora-compositora Kacey Musgraves e a advogada dos direitos humanos Amal Clooney, mulher do ator George Clooney.
Joya é fundadora da Rukhshana Media e uma das poucas mulheres jornalistas do Afeganistão — justamente por isso, ela teve que deixar o país e, agora, vive em Londres.
Apesar disso, ela e sua equipe de repórteres, algumas ainda na nação controlada pelo Talibã, continuam a relatar como o regime fundamentalista islâmico afeta as mulheres afegãs.
Jornalista afegã se vestiu como menino para estudar
“Não fazemos simplesmente jornalismo hoje em dia”, disse Joya, em entrevista à atriz Angelina Jolie para a Time. “Estamos tentando escrever para nossa liberdade.”
Zahra Joya tinha 5 anos quando o Talibã assumiu o poder no Afeganistão pela primeira vez e proibiu meninas de irem às escolas.
Ela conta à Angelina Jolie que, com o apoio da família, se vestia como menino e caminhava duas horas todos os dias para conseguir estudar.
“Eu não tinha permissão para ir à escola, mas amava aprender.
Meus pais disseram: ‘você é uma menina, não tem permissão para ir à escola’. Mas depois disso, um dos meus tios me disse: ‘você pode se vestir como eu e podemos ir para a minha escola juntos’.”
Na escola, Zahra usava o nome Mohammed. “Alguns parentes ainda me chamam de ‘Mohammed Zahra’ de brincadeira. E, sim, é um bom nome para mim”, diz.
Após a ocupação do país pelos Estados Unidos em 2001, Zahra abandonou o disfarce, terminou os estudos e se matriculou como estudante de Direito, até descobrir sua vocação de jornalista.
O Afeganistão tornou-se um país extremamente perigoso para ser uma jornalista. Segundo a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF), 80% das mulheres jornalistas perderam seus empregos desde a queda do governo afegão, em agosto do ano passado (leia mais abaixo).
Rukhshana Media: jornalismo feito por mulheres sobre mulheres
Mas antes do Talibã retomar o poder no país, Joya fundou a Rukhshana Media, em 2020. O veículo tem foco em histórias de e sobre mulheres afegãs — a inspiração para o nome veio de uma vítima do próprio grupo fundamentalista.
“Fui jornalista por uma década. Na redação, muitas vezes eu era a única mulher.
Eu costumava perguntar aos meus colegas por que não havia outras mulheres, e eles diziam que a maioria das jornalistas não tinha boa capacidade ou habilidades. Eu disse que deveríamos ensiná-las.”
“Então, em 2020, comecei minha própria empresa, chamada Rukhshana. Ela era uma garota de 19 anos na zona rural do Afeganistão e, em 2015, o Talibã a apedrejou e ela morreu. Cirei a agência de notícias como um lembrete para não esquecê-la.”
O site conta histórias dramáticas, como a de duas jovens atingidas em um bombardeio. Uma delas, Latifa, que sonhava em ser ortodontista, não resistiu aos ferimentos depois de dois meses.
https://twitter.com/RukhshanaMedia/status/1501127042498277382?s=20&t=HpgIEymo8gLHf_3s8yCgVw
Fuga do Afeganistão após retorno do Talibã
Na entrevista à revista Time, Zahra Joya disse que se viu forçada a deixar o Afeganistão com o retorno do Talibã ao poder. Agora, ela vive em um hotel no centro de Londres, local que abriga centenas de outras famílias afegãs que aguardam a confirmação de seu status de asilo.
Do Reino Unido, a jornalista afegã ainda mantém uma rede de repórteres no país natal. “Recebo histórias das minhas colegas muito corajosas no Afeganistão. Mesmo que estejam escondidas, elas estão trabalhando. Porque é nosso objetivo trabalhar para o nosso futuro.”
“Não fazemos simplesmente jornalismo hoje em dia; estamos tentando escrever para nossa liberdade. Não podemos mais trabalhar como jornalistas. Não temos acesso à informação. Mas mesmo assim estamos trabalhando.”
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Durante a conversa com Angelina Jolie, Zahra criticou a postura do governo de Donald Trump diante da crise no Afeganistão.
“Logo ficou claro que as demandas das mulheres afegãs não eram muito importantes para os EUA e seus aliados. Foi a última consideração. Agora, todas as mulheres afegãs perderam seus direitos, liberdade e esperança.”
Questionada sobre como a comunidade internacional poderia ajudar as mulheres afegãs, a jornalista foi clara: “Deveriam falar com o Talibã sobre os direitos das mulheres no Afeganistão.”
“E até os direitos das mulheres serem assegurados, o Talibã não deveria ser reconhecido como um governo pela comunidade internacional.”
“Eles não mudaram. Eles são um grupo extremista e fundamentalista. Eles não acreditam em direitos humanos. As pessoas podem ver que não mudaram. Eles estão torturando jornalistas e matando policiais.”
Imprensa afegã vive ‘quadro catastrófico’, diz Federação de Jornalistas
Em fevereiro, o Afeganistão completou seis sob o domínio do grupo extremista islâmico Talibã vivendo uma crise humanitária severa, e com a imprensa do país praticamente destruída.
Um levantamento feito pela Federação Internacional de Jornalistas (IFJ) confirmou a extensão da crise que já vinha se desenhando quando o Talibã tomava várias cidades antes de ocupar a capital, Cabul, mas se acentuou depois de 15 de agosto de 2021.
Pela primeira vez a situação das 33 províncias do país foi examinada, revelando um quadro devastador: 318 meios de comunicação fecharam e mais da metade dos jornalistas perderam o emprego — a maioria mulheres.
A pesquisa divulgada pela IFJ foi conduzida pela União Nacional de Jornalistas do Afeganistão (ANJU), que reúne os profissionais de imprensa locais.
“O quadro é catastrófico não apenas para jornalistas desempregados ou que foram forçados a fugir para outros países, mas também para os cidadãos que não têm acesso à informação”, alertou Anthony Bellanger, secretário-geral da IFJ.
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O fechamento dos veículos é decorrente de duas situações combinadas: a crise econômica e o que Bellanger classificou como “restrições draconianas para a reportagem” impostas pelo Talibã.
Nas 33 províncias, apenas 205 dos 623 meios de comunicação que funcionavam antes de 15 de agosto de 2021 seguem ativos.
Os jornais foram os mais afetados: apenas 20 de 114 que existiam antes de o Talibã assumir o comando do país continuam operando.
Ao todo, 51 emissoras de TV, 132 de rádio e outras 49 mídias de notícias digitais também encerraram suas operações, de acordo com o relatório.
Jornalistas afegãs são as mais afetadas
O colapso da imprensa no Afeganistão e as ameaças contra jornalistas fizeram com que 2.735 profissionais perdessem seus empregos. Dos 5.069 que estavam empregados na era pré-Talibã, apenas 2.334 seguem trabalhando.
O impacto maior foi entre as mulheres: 72% dos que perderam o emprego são do sexo feminino.
Embora não sejam formalmente proibidas de trabalhar, muitas passaram a ser perseguidas, como Zahra Joy. Atualmente, apenas 243 mulheres ainda estão empregadas como jornalistas, segundo o relatório da Federação.
O levantamento apontou que 66% dos profissionais de imprensa trabalhando atualmente no Afeganistão são homens.
Apenas 34% das jornalistas são do sexo feminino. Algumas estão se mantendo nos empregos apesar do relato de assédio e ameaças.