Londres – Perseguida pelo governo de Narendra Modi, que tem investido regularmente contra a liberdade de imprensa na Índia, a jornalista indiana Rana Ayyub, de 37 anos, sofreu um novo ataque ao ter suas contas bancárias bloqueadas pela segunda vez em seis meses. 

O episódio motivou uma série de protestos internacionais. O jornal Washington Post, no qual ela assina uma coluna, divulgou em suas redes sociais no último domingo (20) um manifesto contra o ato como parte de seu programa Press Freedom Partnership.

A Coalition Against Online Violence (CAOV) emitiu uma nota assinada por 12 organizações internacionais da sociedade civil pedindo “o fim da intimidação da jornalista por parte do governo indiano”.

Rana Ayyub, perseguida pelo governo Modi 

Uma das mais conhecidas jornalistas do país, Ayyub é perseguida por autoridades da Índia há vários anos, mas a situação se agravou nos últimos meses. Sua situação é monitorada por entidades internacionais defensoras da liberdade de imprensa.

A justificativa do governo indiano para o congelamento da conta bancária e outros ativos da jornalista, que aconteceu no dia 11 de fevereiro, foi uma investigação de suposta lavagem de dinheiro e fraude fiscal relacionadas a campanhas de financiamento coletivo realizadas por ela para apoiar pessoas afetadas pela covid-19.

Rana Ayyub virou uma pedra no sapato do governo do primeiro-ministro Narendra Modi, como definiu uma reportagem da revista Time.

Ela ganhou destaque depois da publicação independente do livro “Gujarat Files”, de 2016, sobre a violência ocorrida no início dos anos 2000 no estado de Gujarat, que deixou pelo menos 790 muçulmanos e 254 hindus mortos.

No livro, Ayyub acusou Modi, então ministro-chefe de Gujarat, e seus aliados de serem cúmplices da violência antimuçulmana e incluiu gravações de áudio secretas de políticos do partido Bharatiya Janata (BJP na sigla em inglês, Partido do Povo Indiano), agora sob o domínio da Índia.

Segundo a Time, Modi nunca foi formalmente acusado e disse que seu governo usou “força total” para “fazer a coisa certa” em Gujarat.

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Ana Ayyub não conseguiu assinar um contrato com uma grande editora do país para publicar seu livro e acabou utilizando a plataforma de newsletters americana Substack. Ela também escreve uma coluna regular para o Washington Post e tem textos publicados na revista Time.

Ainda assim, por ser uma jornalista que trabalha na maior parte do tempo sozinha, sem apoio institucional de uma grande organização jornalística, está mais vulnerável a ataques, o que não tira a sua determinação: 

“O que estão fazendo comigo me fez perceber que minhas palavras contam e estão tendo impacto”, disse. 

Manifesto repudia violência contra jornalista indiana

No domingo (20), o jornal indiano para o qual Rana Ayyub colabora publicou um manifesto repudiando a violência contra ela em uma página inteira na versão impressa.

O texto também saiu na versão online e redes sociais por meio da Washington Post Press Freedom Partnership, uma iniciativa do veículo americano para promover a liberdade de imprensa em todo o mundo.

“Quase todos os dias Rana Ayyub enfrenta ameaças de morte e violência. Ela tem sido alvo de investigações preconceituosas e assédio online. Sua conta bancária foi congelada por causa de seu trabalho de caridade”, diz o manifesto.

“Jornalistas não devem temer perseguição e campanhas difamatórias. #NósEstamosComRana”, conclui a publicação, que também traz uma foto da jornalista.

ONU e outras entidades condenam ataques a Rana Ayyub

A publicação do manifesto que repudia a violência sofrida por Rana Ayyub pelo Washington Post alertou outras entidades sobre os riscos que a jornalista enfrenta na Índia.

A Coalition Against Online Violence (CAOV) divulgou uma nota assinada por 12 organizações internacionais da sociedade civil que exige o fim da intimidação contra a profissional de imprensa pelo governo indiano.

“A repórter investigativa independente baseada em Mumbai, na Índia, tem sido alvo de uma campanha de intimidação grosseira visando silenciá-la. Os ataques aumentaram muito nas últimas semanas, com uma combinação de ameaças legais e abuso online brutal, criando uma situação de alto risco que ameaça se transformar em violência física.”

“Exigimos que o governo da Índia pare de instigar e inflamar ataques a Ayyub, que correm o risco de transformar o linchamento digital em uma horda assassina. Ela teve seus dados pessoais expostos, foi repetidamente ameaçada de estupro e assassinato e teme legitimamente por sua vida. Isso deve parar.”

O documento da CAOV tem entre seus signatários organizações que defendem a liberdade de imprensa, incluindo a Repórteres Sem Fronteiras, o Women’s Media Center, o Comitê de Proteção a Jornalistas, a Free Press Unlimited e o Centro Internacional para Jornalistas.

A ONU (Organização das Nações Unidas) também criticou as ameaças e ataques misóginos sofridos por Rana Ayyub, e cobrou que o assédio judicial contra ela pare imediatamente.

“Em resposta aos esforços de Ayyub para esclarecer questões de interesse público e responsabilizar o governo por meio de suas reportagens, ela foi alvo de ameaças anônimas de morte e estupro por grupos organizados online.”

“A falta de condenação e investigação adequada por parte do governo, juntamente com o assédio legal que ele próprio infligiu à jornalista, só serviu para legitimar falsamente os ataques e agressores e colocou ainda mais em risco sua segurança”.

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Especialistas em direitos humanos da ONU já escreveram ao governo da Índia em diversas ocasiões para expressar preocupação em relação às ameaças e assédio legal contra Rana.

“O governo não está apenas falhando em sua obrigação de proteger Rana Ayyub como jornalista, mas através de suas próprias investigações contra ela também está contribuindo e exacerbando essa situação perigosa.

É imperativo que as autoridades tomem medidas urgentes para protegê-la dos ataques de ameaças e ódio online e encerrem a investigação contra ela”.

Jornalista é perseguida há anos 

A condenação internacional revela a importância que as entidades internacionais estão dando para a segurança de Rana Ayyub, perseguida há anos de várias formas. 

Em 2018, apoiadores do BJP compartilharam nas redes sociais um vídeo pornô adulterado para incluir o rosto da jornalista, em uma  tentativa de desacreditá-la.

Ao longo desses últimos anos, ela recebeu uma enxurrada de ameaças anônimas de morte e estupro em seus perfis online.

Em junho de 2021, a polícia do estado de Uttar Pradesh abriu uma investigação contra Ayyub e outros jornalistas muçulmanos depois que eles tuitaram um vídeo mostrando um ataque violento contra um homem muçulmano.

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De acordo com a revista Time, a polícia e funcionários do governo disseram que a alegação do homem era falsa. Por isso a jornalista e outros profissionais de imprensa foram acusados de tentar “criar animosidade entre hindus e muçulmanos”, pois “não fizeram uma tentativa de estabelecer a verdade no caso”.

Na mesma época, Rana Ayyub também recebeu uma intimação do órgão do governo federal responsável pelo imposto de renda. No documento, era questionada a arrecadação de fundos promovida pela jornalista nas redes sociais para ajudar vítimas e demais afetados pela pandemia.

A jornalista relata que, além da intimidação judicial, foi perseguida por carros ao circular pelas ruas. Após uma dessas perseguições, que durou 90 minutos em Mumbai, ela escreveu uma carta para um de seus familiares publicar caso morresse.

“[A carta] apenas diz que, caso algo aconteça comigo, não quero minha morte seja em vão.

Quero que a futura geração de jornalistas, escritores e ativistas saibam que, mesmo que minha vida seja curta, é uma luta que vale a pena lutar. Enquanto eu estiver viva, continuarei falando.”

Liberdade de imprensa na Índia não é assegurada

Embora a Índia seja frequentemente vista como a “maior democracia do mundo”, a ONG norte-americana Freedom House rebaixou o país de “livre” para “parcialmente livre” em março, citando um declínio nas liberdades civis desde que Modi chegou ao poder em 2014, incluindo a intimidação de jornalistas e ativistas.

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A Repórteres Sem Fronteiras (RSF) observa que a Índia “é um dos países mais perigosos do mundo para os jornalistas que tentam fazer seu trabalho corretamente”. O Índice Mundial de Liberdade de Imprensa do grupo classifica a Índia em 142º de 180 países.

O governo de Modi criou um comitê em 2020 para melhorar a classificação da Índia. Em março, o comitê disse que a metodologia RSF carecia de transparência e identificou um “viés ocidental” no índice. 

Assédio a mulheres jornalistas é recorrente 

A perseguição e assédio a jornalistas mulheres na Índia é um problema crônico, com registros de assédio, abuso e ameaças de estupro. Em 2017, a repórter Gauri Lankesh, conhecida por suas críticas ao governo nacionalista hindu, foi morta a tiros em Bangalore.

Em janeiro passado, algumas das mais famosas jornalistas do país estavam entre as mulheres oferecidas para venda em falsos leilões por meio de um aplicativo de celular.

A plataforma de hospedagem de código-fonte para programadores GitHub, onde o aplicativo que colocou mulheres “à venda” estava hospedado, pertence à Microsoft. A empresa americana o removeu assim que o escândalo explodiu. 

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Maria Ressa e Patrícia Campos Mello, outras jornalistas perseguidas 

Não é só na Índia que a liberdade de imprensa está sob crescente ameaça. Em outubro, a jornalista Maria Ressa, das Filipinas, ganhou o Prêmio Nobel da Paz, que dividiu com Dmitry Muratov, da Rússia.

Assim como Rana Ayyub, ela enfrenta intimidação e assédio judicial por parte do governo filipino por denúncias feitas no site de notícias Rappler, do qual é co-fundadora e editora. 

Outro caso que se tornou referência de assédio a mulheres jornalistas é o da brasileira Patrícia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Ela tornou-se alvo do que classifica como “máquina de ódio” em 2018, quando escreveu sobre o uso político do WhatsApp por parte do governo de Jair Bolsonaro.

Em junho de 2021, foi convidada pelo Instituto Reuters para Estudos de Jornalismo, em Oxford, para apresentar a conferência anual Reuters Memorial Lectures.

Na palestra, intitulada “Como resgatar o jornalismo na era da mentira, ela relatou as ameaças e campanhas de difamação sofridas, que chegaram a envolver sua família, e falou sobre a desinformação propagada nas redes sociais. 

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