Londres – Com a guerra da Ucrânia, os esforços para conter a propaganda pró-Kremlin veiculada pela mídia estatal russa levaram ao banimento de canais do governo como a emissora RT (Russia Today) em vários países e nas redes sociais. O Reino Unido cassou a licença da rede nesta sexta-feira (18).
No entanto, um efeito colateral é que a repressão está servindo como argumento para o sistema de comunicação do Kremlin alimentar teorias da conspiração que colocam o Ocidente como adversário do país, aprofundando as tensões já existentes.
A opinião é da analista do ISD (Institute for Strategic Dialogue), uma organização não-governamental britânica que acompanha a evolução de teorias conspiratórias na sociedade.
Na guerra da Ucrânia
“A máquina de comunicação do governo de Vladimir Putin vem se aproveitando dos banimentos para acusar o Ocidente de tentar esconder da população de outros países a verdade russa”, explica a especialista.
Thomaz afirma que as teorias da conspiração associando o banimento a uma perseguição ao país encontram mais eco sobre audiências marginais, justamente as mais fanáticas.
A analista aponta posts disseminando os supostos motivos ocultos pelos quais os veículos russos teriam sido banidos das plataformas ocidentais.
A RT, um dos principais braços da mídia estatal, foi uma a usar esse discurso depois de seu banimento do YouTube.
O veículo mudou para a plataforma de vídeo Odysee, que abriga abriga uma série de adeptos de teorias de conspiração e extremistas de direita, que como ela foram banidos de outras plataformas.
“Isso consolidou ainda mais a audiência da RT entre as comunidades propensas a acreditar em teorias de conspiração”, diz a analista.
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Propaganda pró-Kremlim influencia percepção da guerra da Ucrânia
Elise Thomas destaca uma pesquisa publicada em 5 de março pelo influenciador da Cânon Inevitable ET para demonstrar como a repressão da mídia estatal russa tem ajudado a aumentar o impacto pró-Kremlin na percepção sobre a guerra da Ucrânia entre os membros dos grupos de teorias de conspiração ocidentais.
Confrontados com dois posicionamentos sobre os bombardeios em alvos civis durante a guerra da Ucrânia, 97% dos respondentes (de mais de 29 mil entrevistados) responderam que a culpa era dos “neonazistas ucranianos”, por se esconderem atrás de civis. Só 3% atribuíram a culpa à Rússia.
Com base em posts nas redes sociais, Thomas demonstra que essa percepção equivocada está ligada às alegações da mídia estatal russa de que os ucranianos estão usando civis como escudos humanos, como a da matéria distribuída pela agência de notícias Sputnik.
Outra matéria selecionada é a da agência noticiosa russa Tass, que informou no dia 7 de março que radicais ucranianos estariam mantendo estrangeiros como reféns para usá-los como escudos humanos.
“Tais alegações, assim como as de que a Ucrânia é um país governado por nazistas ou de que a guerra da Ucrânia foi justificada e necessária, vêm sendo repetidas acriticamente por grandes grupos de teorias de conspiração ocidentais no Telegram”, diz a analista do ISD.
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Telegram: onde a mídia estatal russa conquista os adeptos das teorias de conspiração
Thomas observa que essa influência vem aumentando desde 2020, quando muitos grupos de teorias de conspiração mudaram das plataformas convencionais para o Telegram, o que deu à mídia estatal russa um impulso adicional em relação a outras fontes de notícias.
Ela elenca os vários motivos que foram reforçando essa influência.
Enquanto a maioria dos principais meios de comunicação ocidentais não é tão ativa no Telegram, a mídia estatal russa tem uma forte presença na plataforma, tornando seu conteúdo prontamente acessível e mais fácil de compartilhar.
Além disso, ao longo da pandemia, os meios de comunicação estatais russos – particularmente a Russia Today (RT) – souberam construir uma audiência significativa entre esses grupos de teorias de conspiração, principalmente os antivacinas e os antibloqueio.
Esse esforço chegou a um ponto inusitado: enquanto a cobertura da pandemia da RT feita em russo apoiava as vacinas e endossava as restrições de movimento para conter a covid, sua cobertura em inglês transmitia visões céticas sobre os efeitos das vacinas e denunciava o ‘autoritarismo’ do bloqueio.
As eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2020 fizeram surgir outra grande oportunidade, quando a mídia estatal russa amplificou as alegações de fraude eleitoral, conquistando assim muitos adeptos entre os seguidores de Trump.
Influência demonstrada na acusação de produção de armas biológicas pelos EUA na Ucrânia
Thomaz cita um episódio recente para demonstrar a força da influência conquistada sobre os adeptos das teorias de conspiração, quando a mídia estatal russa divulgou que, com a guerra da Ucrânia, o governo russo obteve documentos provando que os EUA estavam desenvolvendo armas biológicas no país invadido.
Em poucas horas, esses documentos estavam sendo amplamente compartilhados pelos adeptos das teorias de conspiração ocidentais no Telegram.
Entre as principais fontes compartilhadas estavam canais RT (o veículo está usando vários canais ‘espelho’ no Telegram para evitar uma proibição na Europa) e capturas de tela da Ria Novosti, outro importante meio da mídia estatal russa.
Propaganda pró-Kremlin com menos alcance, porém mais influente e difícil de rastrear
A analista conclui que, depois de construir um forte relacionamento com as comunidades de teorias de conspiração, a influência da mídia estatal russa já parece funcionar tão bem entre esses grupos ocidentais conspiratórios como entre boa parte do público interno russo.
Mas Elise Thomaz alerta que, à medida que as democracias ocidentais procuram enfrentar essa ameaça que a mídia estatal russa agora representa, o domínio que a propaganda pró-Kremlin desenvolveu sobre os adeptos de teorias de conspiração continuará a representar um desafio significativo:
“A repressão que está sendo feita para diminuir o alcance de larga escala da mídia estatal russa provavelmente não a tornará menos influente entre os grupos marginais e de teorias de conspiração. Além disso, ela ficará mais difícil de rastrear.”
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