Londres – O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, deu uma entrevista de 90 minutos a quatro jornalistas russos independentes no domingo (27), provocando a fúria do Kremlin.

Antes mesmo de a entrevista ser gravada, o Roskomnadzor, órgão regulador estatal de mídia da Rússia, proibiu a imprensa do país de publicar e repercutir as falas do rival ucraniano.

Zelensky comentou a censura prévia durante a conversa com os jornalistas e, mais tarde, publicou um vídeo criticando a decisão do governo de Vladimir Putin: “[A proibição] seria ridícula se não fosse tão trágica”, disse. “Bem, se houve tal reação, então estamos fazendo tudo certo e eles estão nervosos.”

Zelensky dá 1ª entrevista a russos desde início da guerra

Com o passado de profissional em TV, Zelensky tem boas habilidades com a mídia e tem lançado mão delas para dar visibilidade a seu país durante o conflito com a Rússia.

O presidente ucraniano participou de uma videochamada com três jornalistas russos dos principais meios de comunicação independentes: Meduza, Dozhd e Kommersant.

Mikhail Zygar, jornalista e autor do livro “All the Kremlin’s Men”, também participou da discussão. Ele fez uma pergunta em nome de Dmitry Muratov, editor-chefe da Novaya Gazeta e ganhador do Prêmio Nobel da Paz.

Segundo o Moscow Times, que publicou no YouTube o texto e vídeo da entrevista na íntegra, os veículos Meduza e Dozhd foram listados como “agentes estrangeiros” no ano passado.

Neste mês, eles foram bloqueados na Rússia pelo Roskomnadzor por “divulgar notícias falsas” sobre a “operação militar especial” na Ucrânia — a nova legislação russa contra fake news proíbe que o conflito seja chamado de guerra.

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Até agora, o Kommersant evitou as sanções russas, mas, na segunda-feira (28), o Novaya Gazeta anunciou que “suspenderia as operações” até o fim da guerra.

O jornal do vencedor do Nobel não informou o teor da notificação ou qual reportagem teria motivado a abordagem do órgão oficial. Limitou-se a avisar sobre a suspensão.

Apesar da lei que pune a divulgação de “fake news” sobre a invasão russa à Ucrânia com até 15 anos de prisão, Meduza e Dozhd optaram por publicar a entrevista, de acordo com o Moscow Times.

A entrevista está disponível nos sites e canais dos veículos no YouTube, que ainda é acessível na Rússia.

Outras plataformas de mídia social, no entanto, já foram bloqueadas no país desde o início do conflito, incluindo Twitter, Facebook e Instagram.

O Washington Post informou que a maioria dos jornalistas que sabatinaram Zelensky não estavam na Rússia. É o caso de Ivan Kolpakov, editor do Meduza, que tem sede na Letônia.

Zygar, que fez perguntas de Dmitry Muratov, também vive no exterior: em entrevista recente à Vanity Fair, ele disse que está em exílio na Alemanha desde o início da guerra.

O jornalista Tikhon Dzyadko, editor do canal de televisão independente Dozhd, participou da conversa com Zelensky da Géorgia. Vladimir Solovyov, repórter do Kommersant, é o único dos entrevistadores que continua na Rússia.

Zelensky deu entrevista de 90 minutos a jornalistas russos (Foto: Reprodução/YouTube)

Zelensky fala em entrevista sobre neutralidade da Ucrânia 

Na conversa de 90 minutos, Zelensky disse que estava em contato com algumas pessoas na Rússia e agradeceu aos russos que estão protestando contra a invasão, embora tenha admitido que ficou desapontado com o fato de uma porcentagem tão alta de russos apoiá-la.

Grande parte da entrevista abordou as negociações entre a Ucrânia e a Rússia para o fim do conflito. O presidente ucraniano se mostrou disposto a assumir uma neutralidade para garantir o cessar-fogo.

“Garantias de segurança e o status de neutralidade e não nuclear do nosso Estado. Estamos prontos para aceitar isso e isso é o ponto mais importante.”

Ele acrescentou que a Ucrânia estava interessada em transformar esse acordo em “um tratado internacional sério” que garantiria a segurança do país. 

A entrevista foi encerrada com uma pergunta de Ivan Kolpakov, editor-chefe da Meduza, que questionou o líder da Ucrânia sobre o que ele achava da motivação de Putin para iniciar a guerra.

Zelensky disse que o rival russo aparentemente agora considera a Ucrânia um “perigo”, conforme reportou o Moscow Times:

“Não acho que os planos de Putin sejam estratégicos. Estratégia é sobre o que acontecerá com um país em 100  anos. Não estou em posição de dar conselhos aos russos, mas isso é o que chamo de estratégia. O que acontecerá em cinco gerações? Onde estaremos?”

“Estou interessado no que vai acontecer com a Ucrânia, como cidadão, como pai. Meus filhos vão morar aqui.

Putin tem uma abordagem diferente. Ele está focado no dia de hoje. Eu acho que é um erro. Mas não só o seu erro. É também um erro de sua equipe. A festa foi ótima, mas quem vai limpar a bagunça?”.

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Jornal de vencedor de Nobel suspende as operações

Um dia após a entrevista de Zelensky para os jornalistas russos, o Novaya Gazeta, veículo do vencedor do Nobel da Paz Dmitry Muratov, publicou um comunicado no site informando que estava suspendendo a edição impressa, online e publicações nas redes sociais depois de receber outra notificação do Roskomnadzor, órgão regulador de telecomunicações russo.

O informe diz que as operações serão retomadas após o final da “operação especial no território da Ucrânia”. 

Dois avisos do Roskomnadzor por ano podem valer uma suspensão da licença de mídia. Uma outra notificação tinha sido recebida no dia 22 de março. 

Apesar de não participar da videochamada com o presidente ucraniano, Muratov enviou perguntas para a entrevista e, em seu jornal, repercutiu a entrevista de Zelensky.

A matéria citava o secretário de imprensa do Presidente Putin, Dmitry Peskov, dizendo que o Kremlin não tem medo da entrevista, mas que o Roskomnadzor (RKN) deveria verificar o material “para o cumprimento de nossa legislação”.

“O Roskomnadzor avaliará o conteúdo desta entrevista para assegurar o cumprimento de nossa legislação”, disse Peskov, segundo a agência de notícias russa Tass. 

A reportagem do Novaya Gazeta registrou a posição de um porta-voz do Kremlin, dizendo que a Rússia “não tem medo” das declarações de Zelensky, mas “há leis em vigor e é muito importante não publicar nenhuma informação que constitua uma violação dessas leis”. O próprio Peskov disse ao jornal que ainda não havia lido o conteúdo da entrevista.

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