Londres – De onde vem a inspiração para o expansionismo de Vladmir Putin? A resposta pode estar em um livro publicado em 2006, que antecipa com surpreendente precisão as últimas manobras do Kremlim e vem sendo apontado como peça-chave para entender os movimentos do líder russo.
A obra chama-se “Terceiro Império: A Rússia como deveria ser”, e previu com anos de antecedência a semi-anexação das regiões separatistas da Geórgia, Abkhazia e Ossétia do Sul, a anexação da Crimeia, a incursão nas regiões de Donetsk e Luhansk e a atual invasão da Ucrânia.
Até o Brasil entrou na história, que se passa em 2054. O narrador é um historiador brasileiro, que conta a vitória de “Vladimir II, o Restaurador”, culminando com um delirante desfile da vitória na Praça Vermelha, recheado de celebridades norte-americanas derrotadas e algemadas.
Adivinhação ou plano de expansionismo para Putin?
O jornal britânico The Times escreve que alguns acham que o livro pode ser visto tanto como uma impressionante peça de adivinhação, mas também como um plano de ação para o Kremlin. Seu autor, Mikhail Yuriev, conhecia Vladimir Putin pessoalmente.
Falecido em 2019, Yuriev era empresário, foi vice-presidente da câmara baixa do parlamento russo e era membro do conselho político do Partido da Eurásia, que prevê uma ordem social feudal controlada por uma classe política governando pelo medo.
O livro se tornou conhecido fora da Rússia ao ser mencionado em 2014 por Maria Snegovaya, uma cientista política norte-americana, depois de a previsão da anexação da Crimeia se concretizar.
Terceiro império começaria com Putin, ou Vladimir II, o Restaurador
Na obra, o historiador brasileiro que faz o papel de narrador começa explicando como o mundo passou a ser dominado pela Rússia, depois de o país ter vencido os Estados Unidos e a Europa e estabelecido uma nova ordem mundial.
A Terceira Guerra Mundial é apresentada no livro como uma consequência da invasão da Ucrânia –com a vitória da Rússia, é claro, graças a uma arma secreta que a tornaria invencível num confronto nuclear.
O Terceiro Império antecipa o uso da chantagem nuclear e da dependência energética da Europa para que a Rússia atinja seus objetivos de expansionismo.
As conquistas russas dão origem ao Terceiro Império do título – sucedendo o primeiro, dos czares, e o segundo, do período da União Soviética. E tudo graças às ações de “Vladimir II, o Restaurador”.
Expansionismo para reunificar Rússia
O narrador conta que no início do Terceiro Império, uma revolta pró-Rússia patrocinada pelo Kremlin ocorreu na Ucrânia. Seus objetivos eram “a reunificação com a Rússia e o abandono da integração com a Europa, bem como a rejeição do bloco anti-russo da OTAN”.
Essa revolta resulta em uma guerra não declarada, com tropas russas marchando para a Ucrânia, história semelhante à que o mundo assiste há pouco mais de um mês.
Isso faz com que nove regiões no leste e sul da Ucrânia – incluindo Crimeia, Donetsk, Luhansk e outras áreas sob ocupação russa hoje – anunciem seu “não reconhecimento das autoridades e do estado ucraniano” e proclamem uma “República Donetsk-Mar Negro” pró-Rússia.
A expansão é endossada por um referendo das áreas tomadas, onde 82% da população vota a favor da adesão. E na Rússia, 93% votam pela “admissão do leste da Ucrânia”.
O livro também antecipava uma passividade do Ocidente em relação à invasão da Crimeia e das regiões separatistas. De fato, as sanções impostas à Rússia em 2014 foram leves.
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Como resultado da Primeira Expansão, o narrador informa que Vladimir II aproveitou para criar a União Russa, que inclui também a Bielorússia, partes da Ásia Central e várias regiões separatistas das antigas repúblicas soviéticas.
O narrador explica que o ressurgimento da Rússia assim iniciado por Vladimir II foi complementado por seu sucessor, Gavriil, o Grande.
No livro, Gavriil recusa categoricamente aos ucranianos e aos bielorrussos o status de nações separadas. No seu entender, as tentativas de considerá-los como etnias separadas da russa são “parte do plano ocidental para destruir a Rússia”.
Num artigo intitulado “Putin está apenas seguindo o manual” publicado no The Atlantic, a diretora do programa de estudos russos da Georgia Tech’s School of Modern Language, Dina Khapaeva, lembra que essas afirmações não são nada diferentes do que o líder do Kremlin vem dizendo desde 2008, de que a Ucrânia “nem mesmo é um estado”.
Putin usou argumento do livro para justificar anexação da Crimeia
Na anexação da Crimeia em 2014, a Rússia utilizou a mesma estratégia do referendo mencionado no livro para justificar a tomada do território.
E tanto na Crimeia como na incursão em Donetsk e Luhansk, as forças russas assumiram o território ucraniano sob o pretexto de apoiar movimentos separatistas locais, conforme mencionado no livro.
Em seu artigo, Khapaeva ressalta que a Rússia reconheceu previamente a independência das repúblicas separatistas três dias antes de invadir a Ucrânia. E repetindo a receita da Crimeia, um líder rebelde dessas repúblicas disse que espera realizar em breve um referendo sobre a questão.
Khapaeva classifica tanto o livro como a guerra de Putin com a Ucrânia como expressões do “neo-medievalismo pós-soviético”:
“São fruto de uma ideologia antiocidental e antidemocrática que atribui à ‘civilização ortodoxa russa’ um papel dominante sobre a Europa e a América.”
Chantagem nuclear para facilitar expansionismo
No livro, Yuriev não previu a reação em bloco do Ocidente e as pesadas sanções em consequência da invasão da Ucrânia que estão ocorrendo na vida real, mas antecipou o uso da chantagem nuclear como arma no expansionismo de Putin.
Em O Terceiro Império, a Rússia vence a Terceira Guerra Mundial por causa do temor de uma hecatombe nuclear pelas nações ocidentais .
“Os líderes americanos hesitaram em ordenar um ataque”, escreve Yuriev, “enquanto os russos mostraram claramente sua vontade de ir até o fim”.
Khapaeva analisa que Putin conta com a precisão desse prognóstico de Yuriev em seu expansionismo.
Logo após o início da guerra da Ucrânia, ele ameaçou usar armas nucleares caso outros países tentassem se envolver.
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Yuriev também antecipou que a dependência da Europa em relação ao fornecimento de gás e petróleo da Rússia poderia ser utilizada como um trunfo contra reações ao expansionismo de Putin.
Numa passagem de O Terceiro Império que relata uma entrevista à televisão francesa, Vladimir II diz:
“Você não gosta de nós?” o imperador zomba do entrevistador. “Tudo bem. Então, guerreie e nos conquiste… Ou não compre nossos produtos energéticos, para tentar nos matar de fome.”
Khapaeva diz que é difícil distinguir esses argumentos que aparecem no livro dos discursos contemporâneos de expansionismo de Putin.
E que mais uma vez a ficção de Yuriev se mostrou certeira, quando o chanceler alemão Olaf Scholz, resistindo à pressão internacional por um boicote às importações russas, falou da “importância essencial” do petróleo e do gás da Rússia para a economia europeia.
Expansionismo de Putin além da Ucrânia
Um dos pontos mais alarmantes do livro é que autor prevê que a Rússia não ficará satisfeita com a anexação parcial da Ucrânia, contentando-se apenas com a Crimeia e as regiões separatistas do leste.
O narrador do livro faz menção a um suposto acordo que se tentou firmar para encerrar a guerra, mostrando que o autor se divertia com a capacidade da Rússia de tirar proveito da diplomacia ocidental:
“Embora a anexação da Ucrânia Oriental não tenha sido oficialmente reconhecida, foi estipulado que a Rússia renunciaria a qualquer invasão no território a oeste do limite demarcado.
Foi pura jogada de relações públicas por parte dos Estados Unidos, porque eles sabiam perfeitamente que a Rússia não tinha isso em mente.”
Em O Terceiro Império, as ambições geopolíticas russas forçam os Estados Unidos e a União Europeia a declarar guerra.
Segundo Yuriev, a Rússia enfrentaria esse desafio com uma arma secreta capaz de tornar o país invencível num confronto nuclear.
Isso faz com que no final tanto americanos como europeus se rendam, submetendo o mundo ao domínio russo.
Desfile de políticos algemados na Praça Vermelha
O clímax do livro é tão alucinante que serve de alento para demonstrar que suas previsões não devem ser tomadas tão a sério.
Após o desfecho da guerra, é promovido um desfile da vitória na Praça Vermelha.
Os participantes, algemados e com placas penduradas no pescoço, são representantes da elite norte-americana: o então presidente George Bush III, ex-presidentes, políticos, empresários, cantores e artistas de Hollywood.
Com essa passagem, Khapaeva explica que a mensagem do livro é a de que a Rússia é capaz de derrotar não apenas o exército norte-americano, mas a própria civilização americana, indo além do expansionismo sobre os territórios vizinhos.
Apesar do exagero, para Khapaeva o livro oferece insights importantes sobre a mentalidade do Kremlin, a maneira como Putin pensa o Ocidente e suas atitudes em relação aos países vizinhos:
“Compreender a visão expansionista da Rússia é fundamental para as decisões ocidentais sobre a invasão atual: a Ucrânia não é o único alvo de Putin.”
Natalia Antonova, jornalista ucraniana-americana ouvida pelo The Times, tem a mesma opinião. Ela diz que a mensagem do livro de que a Rússia não se satisfará com uma vitória parcial e sua ênfase em humilhar os Estados Unidos contém um aviso sobre os planos do projeto de expansionismo de Putin:
“Este homem tem uma visão sombria e perturbadora – não apenas para a Ucrânia, mas para todos nós. A Ucrânia nunca poderia ser suficiente para ele. Não satisfaz seu desejo de vingança contra o Ocidente.”
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